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CAPÍTULO V POR UMA EPISTEME PARA O ENSINO DE LITERATURA

5.2. Análise das relações entre o ponto de centricidade e os elementos da quintessência

5.2.2. Relações da micropolaridade com o ponto de centricidade

Agora lançaremos olhar sobre a relação do ponto de centricidade com o eixo das micropolaridades, de modo a observar a relação entre o acontecimento da obra, a(s) instância(s)-sujeito e os processos de memória discursiva.

É essencial reforçarmos que, em relação à denominação da instância-sujeito que se instaura na quintessência, não tomaremos como foco todas as facetas sujeitudinais elencadas. Assim, essa amplitude de sujeitos representa o universo de enfoques possíveis para analisar a obra enquanto um acontecimento discursivo, a partir de uma ótica do ensino de literatura. Nesse sentido, em muitos casos, a análise oscilará entre instâncias-sujeito diferentes, mas sempre como foco nas vozes que emergem da instância-sujeito narrador (personagem ou onisciente).

Acontecimento - Instância-sujeito

Axioma - O enfoque busca compreender como o acontecimento discursivo significa a

partir da clivagem da(s) instância(s)-sujeito.

No acontecimento - Aqui tomaremos diferentes instâncias-sujeito como foco, uma vez

que cada inscrição sujeitudinal também representa uma outra tomada de posição no interior do acontecimento38. Assim, a instância-sujeito narrador-personagem (IS-NP) representa a voz que retoma e reestabelece o episódio de morte vivido numa dada anterioridade histórica do personagem e, por isso, costura as entranhas do acontecimento discursivo a partir de lembranças e reminiscências ressignificadas no momento instaurado pela narrativa.

Em relação à instância-sujeito narrador-onisciente (IS-NO), provavelmente devido à onisciência instaurada, existe uma sobreposição das dores e tristezas vividas pelas personagens na voz do narrador. Assim, a IS-NO, ainda que não seja personagem em alguns contos (Sol,

Aqui perto, Poente, Adão, Coração), corporifica a dor da perda por meio da compreensão

profunda das inscrições e da referencialidade polifônica das instâncias narradas.

Projeções para a episteme - Essa associação permite que o professor de literatura

mobilize um recorte que focalize a enunciação da IS-NP, de modo a reconhecer qual é o papel dessas tomadas de posição na construção dos sentidos que emergem do acontecimento da obra. Por exemplo, no trato com o já citado romance realista Dom Casmurro, essa associação

38 Ainda que o professor de literatura possa estabelecer um recorte sujeitudinal específico para desenvolver sua

prática de letramento, é importante que compreenda a multiplicidade de facetas inerentes a qualquer situação de letramento literário. Isso permitirá a construção de caminhos diferentes, caso a instância-sujeito em foco seja outra.

permitiria que o professor pinçasse a IS-NP Dom Casmurro como a voz que enuncia e insinua, por meio de memória cindidas, a traição de Capitu. Para o aluno, tal reflexão facilitaria a compreensão de que as verdades enunciadas por uma IS-NP podem representar tomadas de posição escusas e ocultas que buscam ludibriar a instância-sujeito leitor.

Se o recorte sujeitudinal for a instância-sujeito narrador-onisciente (IS-NO), o professor de literatura deverá esquadrinhar elementos da narrativa que somente são acessíveis a partir da voz onisciente dessa instância-sujeito. Poderá também estabelecer se há certa equivalência e equipolência (pretensa polifonia) nas vozes narradas por essa instância-sujeito ou se existe uma tomada de posição discursivo-afetiva que vincule o narrador a algum personagem.

Se a abordagem estiver relacionada à instância-sujeito personagem (IS-P), o professor poderá estabelecer compreensões acerca da diversidade de personagens que compõem a narrativa, de modo a reconhecer como a referencialidade polifônica dos mesmos significa no interior do acontecimento. Nesse caso, os elementos histórico-sócio-ideológicos que compõem essas personagens serão essenciais para que o aluno-leitor de literatura compreenda o papel de cada personagem na narrativa.

Importante reforçar que as instâncias-sujeito aqui pinçadas são somente um recorte, uma possibilidade de leitura que se configura a partir das infindáveis possibilidades de abordagens do sujeito no acontecimento, ao se pensar o ensino de literatura pelo viés de nossa episteme discursiva. A instância-sujeito aluno-leitor de literatura, por exemplo, pode ser tomada como enfoque no batimento com o acontecimento discursivo da obra. Nesse caso, o professor engendraria um diálogo entre a referencialidade polifônica dos alunos e os sentidos que se configuram no/do acontecimento.

Acontecimento - Memória discursiva

Axioma - O enfoque dessa relação busca reconhecer como o acontecimento discursivo

se configura a partir da clivagem dos processos de memória discursiva.

No acontecimento - O acontecimento Espinhos e Alfinetes se configura a partir de

instauração de processos de memória discursiva relacionados à morte. Esses processos reestabelecem e retomam os implícitos e pré-construídos acerca da morte (causa dor; processo inevitável; instaura um luto e provoca sentimento de perda, entre outros), no entanto também contemplam movimentos de descolamento, movência e descontinuidade desses processos (instaura novos caminhos para a vida; provoca amores outros; resgata reminiscências boas, entre outros). Nesse sentido, como já explanado, a organização de contos que compõem o

acontecimento é configurada a partir da clivagem dos processos de memória denominados A

dor da perda, A descoberta da efemeridade da vida, O encontro com o trágico e O aprendizado/amadurecimento pela dor. Isso representa dizer que todos os contos em análise

são interpelados por esses processos e, por isso, fazem emergir uma estética da morte no interior do acontecimento. No entanto, é sempre importante relembrar que essas memórias não representam a amplitude total da constitutividade do acontecimento (da ordem do nunca- acabar), mas uma tomada de posição a partir do crivo da referencialidade polifônica da instância-sujeito pesquisador.

Projeções para a episteme - Vale retomarmos Pêcheux (2010) para reforçarmos que as

redes de memória discursiva não representam a memória individual, mas sim uma memória de natureza coletiva e social. Assim, essas redes de memória funcionam como subsídio para a interpretabilidade de textos, por meio da retomada dos pré-construídos e do balizamento dos discursos que contradizem esses já-ditos. Nesse sentido, em termos didáticos, as memórias podem ser tomadas pelo professor de literatura como historicidades traduzidas em construções discursivas já consolidadas que, de certa forma, podem contribuir para que os alunos construam interpretações e inferências de acordo com os objetivos do docente. Por exemplo, é possível estabelecer que existe uma rede de memória discursiva que interpela e criva a tríade realista de Machado de Assis (Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro), no que tange uma crítica irônica e pessimista em relação à sociedade burguesa do final do século XIX.

Podemos exemplificar ainda com o famoso enunciado de Os Sertões de Euclides da Cunha. O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Esse enunciado emerge como um axioma representativo de uma rede de memória que, de certa forma, reestabelece pré-construídos e interpela todo o acontecimento da referida obra, bem como atravessa e dialoga com outras obras literárias, como Vidas Secas de Graciliano Ramos ou Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. Nessas obras, existem configurações relacionadas às instâncias-sujeito personagens que permitem pinçarmos uma memória discursiva do homem sertanejo retratado pela literatura brasileira do início do século XX.

Dessa forma, o professor de literatura poderia mobilizar uma reflexão sobre o homem sertanejo, ou ainda sobre o trabalhador urbano dos dias atuais39, a partir da clivagem dessa rede de memória nas obras citadas. Os caminhos potencializados por essa relação de duplessência são infinitos, uma vez que cada obra, sob o crivo de cada professor de literatura, poderá

39 É perfeitamente viável a associação entre o sofrimento e as dificuldades encontradas pelo sertanejo nas obras

mobilizar redes de memória específicas, ao depender não somente da conjuntura histórico- sócio-ideológica de produção da mesma, mas também da referencialidade polifônica das instâncias-sujeito que se configuram na aula de literatura.

Instância-sujeito - Acontecimento - Memória discursiva

Axioma - O enfoque dessa triplessência é investigar como a instância-sujeito que emerge

no interior do acontecimento enuncia pela clivagem dos processos de memória discursiva.

No acontecimento - Aqui é relevante estabelecer uma reflexão tanto para as instâncias-

sujeito que se configuram somente como personagem, quanto para as que emergem também enquanto narrador. Nos contos, as IS-NP, IS-NO e IS-P enunciam seus dizeres sob o crivo da interpelação que se configura a partir dos episódios de morte. Esses episódios são revestidos de um conjunto de historicidades traduzidas em interdiscurso por meio do que denominamos memória discursiva.

Quando IS-NP, enunciam de uma posterioridade histórica que ressignifica o episódio de morte enquanto uma reminiscência interpelada pela memória: as lembranças de alguém que falecera ou o retorno aos momentos vividos ao lado do moribundo (Espinho, Mar, Dora,

Alfinete, Só uma corrida). Quando IS-NO, enunciam a consciência e as dores de um

personagem que sofre em silêncio (Sol, Aqui perto, Poente, Adão, Coração). Assim, o narrador é que emana elementos da memória discursiva em seus dizeres.

Já as IS-NP estabelecem uma relação de silenciamento submisso frente à morte. Não parece haver uma indignação expressa em seus dizeres e atitudes. Esse processo de revolta, de luto frente ao trágico são de responsabilidade enunciativa do narrador, que enunciativa a partir de uma compreensão posterior do episódio ou de uma onisciência privilegiada do momento vivido.

Projeções para a episteme - A partir dessa relação, é possível que o professor busque

uma interpretação sistemática das personagens em foco na obra, por meio de uma leitura das construções discursivas consolidadas que gravitam em torno do acontecimento (memórias). Compreender como as instâncias-sujeito enunciam interpeladas pelos processos de memória é uma importante forma de construir interpretação para o texto literário.

Memória discursiva - Acontecimento - Instância-sujeito

Axioma - Configura-se uma relação entre os processos de clivagem da memória

discursiva que se instauram no interior do acontecimento e a constituição da referencialidade- polifônica da instância-sujeito.

No acontecimento - As análises de Espinhos e Alfinetes estabelecem que os processos

de memória discursiva que se configuram a partir dos episódios de morte desencadeiam efeitos de sentido peculiares, responsáveis pela constituição das instâncias-sujeito personagens. Assim, podemos afirmar que, em todos os contos que compõem o acontecimento, existe essa clivagem dos processos de clivagem da memória discursiva na constituição das dessas instâncias-sujeito. Por exemplo, no conto Dora, as memórias discursivas (A dor da perda; A descoberta da

efemeridade da vida; O encontro com o trágico; O aprendizado/amadurecimento pela dor)

constituem a IS-NP, uma vez que balizam/interpelam os momentos vividos com Dora e o luto antecipado de sua morte iminente. Da mesma forma, no conto Espinho, esses mesmos processos de memória constituem a IS-NP, uma vez que igualmente interpelam toda a construção de sentidos relacionada às memórias que o mesmo tem de André.

Projeções para a episteme – Aqui o foco é na sistematização dos processos de memória

que atravessam a obra, de modo a relaciona-las à composição das personagens. É importante que o professor compreenda que não é necessário sistematizar um grande número de processos de memória que interpelam o acontecimento. Para fins didáticos, o levantamento de um processo de memória que, eventualmente, coloque em batimento os personagens principais da obra já é um grande trabalho. Afirmamos isso porque, via de regra, as personagens de uma narrativa gravitam em torno de uma problemática instaurada, a partir da interação entre posicionamentos convergentes ou divergentes. Por isso, além de contemplar em suas redes esse antagonismo, o caráter coletivo e social que possui a memória discursiva deve ser potencializado como peça chave na construção de práticas de letramento literário, uma vez que interpretar o sujeito em uma dada historicidade, por meio dos discursos coletivos e sociais que o interpela, é também uma forma de compreender a si próprio no mundo.