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Silvestre Pinheiro Ferreira anotando Vattel

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 69-72)

3. Colonialismo e anti-colonialismo no pensamento político dos sécs XVIII/XIX.

3.3. Silvestre Pinheiro Ferreira anotando Vattel

Em Portugal, é sobretudo nas obras de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) que encontramos pensados os problemas enunciados pelo Direito das Gentes. Também este publicista português se ocupou dos direitos do primeiro ocupante (“A terra é património comum de todos os

homens e pode portanto converter-se em propriedade do primeiro ocupante”) 199. Também ele

apontou aquele conjunto de restrições que podiam funcionar contra os direitos dos primeiros ocupantes (“Não podendo porem ser ocupada senão a bem do interesse de todos, a posse desta propriedade envolve a condição de se usar dela do modo mais vantajoso possível para a

Brought Macpherson (ed.), Property; Mainstream and critical positions, Oxford, Blackwell, 1978; sobre propriedade e colonialismo, v., em geral, embora com especial referência à Índia, Dharma Kumar,

Colonialism, Property and the State, Oxford, Oxford. University Press, 1998, maxime pp. 1-18.

196 Vattel contrapôs, por isso, o exemplo da América do Norte com o que achava ter sido a

usurpação ocorrida no Peru e no México, v. Emerich de Vattel (ed. M. P. Pradier-Fodéré), Le Droit des Gens

ou Principes de la Loi Naturelle [...], cit., p. 259. Também esta imagem das políticas usurpadoras prosseguidas pelos impérios peninsulares na América era corrente, encontrando-se, por exemplo, na obra de Guillaume-Thomas Raynal.

197 A obra desse autor que temos vindo a citar foi parcialmente traduzida por Francisco Bernardo de

Lima na Gazeta Literária em notícia exacta dos principaes Escriptos, que modernamente se vão publicando

na Europa e conforme a Analysis, que delles fazem os melhores críticos, e Diaristas das naçoens mais civilizadas, Porto, 1761, Vol. I, pp. 163-174, cit. em Pedro Barbas Homem, Iluminismo e Direito em

Portugal, Lisboa, 1987, polic., p. 66.

198 V. Pietro Costa, Civitas, Storia della Cittadinanza [...], cit., vol. 3, p. 484.

199 V. Silvestre Pinheiro Ferreira, Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão,

sociedade”)200. Aquelas restrições podiam também, na sua opinião, tornar frágil a legitimidade de

outros possíveis ocupantes, que não o primeiro:

“É deste modo que, por exemplo, um povo que venha a apropriar-se de um país só se pode designar como o legítimo proprietário se o explorar com meios suficientes, no interior dos limites positivos e capazes de garantir eficazmente a sua posse e segurança. Estas tomadas de posse, que os governos por vezes se permitiram fazer nos países desertos ou ocupados por selvagens, ainda que só tenham aí plantado um marco com as armas da sua nação, são risíveis pretensões, que a força fez muitas vezes prevalecer, mas acerca dos quais a razão e o bom senso, qualquer que seja hoje a conduta dos

governos a este respeito, fizeram justiça há muito tempo”201.

Porém, se nenhuma Nação era obrigada a respeitar uma propriedade ilusória, “[…]privando-se de tirar partido dos dons do Criador pelo simples motivo do detentor actual, não podendo ou não querendo tirar daí proveito, ter o capricho de pretender dele excluir todos os outros[…]”, em contra-partida, o primeiro ocupante preservaria sempre o direito de reclamar a

restituição dos valores deixados no país por ele abandonado202. Eram estes, para Silvestre

Pinheiro Ferreira, os princípios em que se devia basear a lei das nações em matéria de propriedade territorial.

Acontece que, para o jurista português, havia outros factores a ponderar quando o que estava em causa era a apropriação de terras ocupadas por povos “selvagens”. Em primeiro lugar porque, no caso particular destes povos, ainda que a terra não fosse explorada do modo mais vantajoso, os seus direitos não eram nulos. Questionado sobre “Como deverá proceder uma nação civilizada a respeito de um país ocupado por selvagens ?” Pinheiro Ferreira respondeu: “É certo que ocupado por selvagens o país não será aproveitado como em geral convém à humanidade; mas não se segue dai que todos os direitos dos indígenas devam ser considerados pelos advenas como absolutamente nulos. Pelo contrário, estas nações, por isso que são civilizadas, devem-se aplicar a conciliar os seus próprios direitos com o dos antigos

possuidores” 203. Em segundo lugar, porque o homem “civilizado”, o homem já sociabilizado, tinha,

em relação ao “bárbaro”, alguns deveres que decorriam da fragilidade antropológica dos

200 Idem, ibid., p. 44.

201 V. Silvestre Pinheiro Ferreira, Précis d’un Cours d’Économie Politique, Paris, Édouard Garnot,

1840, p. 13-14 (C‟est ainsi que, par exemple, un peuple venant à s‟emparer d‟un pays, ne peut s‟en dire le légitime propriétaire, qu‟autant qu‟il l‟exploitera avec une masse des moyens suffisante, en dedans des limites positives et propres à garantir efficacement sa possession et sécurité. Ces prises de possession, que les gouvernements se sont permis quelquefois de vouloir faire valoir sur des pays déserts ou occupés par des sauvages, bien qu‟ils n‟eussent fait qu‟y planter un poteau portant les armes de leur nation, sont autant de risibles prétentions que la force a souvent fait prévaloir, mais dont la raison et le bon sens, quelque soit encore aujourd‟hui la conduite des gouvernements à cet égard, ont fait justice longtemps”).

202 Idem, ibid., pp. 13-14.

203 V. Manual do Cidadão em um Governo Representativo ou Princípios de Direito Público

Constitucional, Administrativo e das Gentes, Paris, Rey e Gravier, 1854, t. II: “Direito Administrativo e das Gentes”, p. 526.

segundos. Comentando directamente as observações definitivas de Vattel em relação ao assunto, Silvestre Pinheiro Ferreira introduziu, nesse domínio, um raciocínio de uma assinalável relativização: de acordo com o seu parecer, os deveres dos homens deviam medir-se pela capacidade que tinham de conhecer as suas obrigações, premissa que desculpabilizava o homem “bárbaro” ao mesmo tempo que responsabilizava o homem “civilizado”. Este usufruía de grande vantagem sobre o primeiro no que dizia respeito ao “uso dos direitos naturais do homem” (“O homem social leva grande vantagem ao bárbaro ou selvagem, pois ainda que este tenha menor número de precisões do que aquele, todavia também tem menos meios de a satisfazer. Mais exposto do que o homem social aos ataques dos homens e dos animais, assim como falto de meios para vencer a intemperançadas estações e os incómodos que lhe oferece a natureza do terreno, o selvagem tem menos segurança pessoal; contrariado a cada passo por estes diversos obstáculos, em último resultado também tem menos liberdade; e finalmente quanto à propriedade,

é geralmente reconhecido que ela não se pode conservar sem a constante protecção das leis”)204.

Ao “homem social” correspondia, por esses motivos, uma obrigação maior, a de pôr a sua inteligência ao serviço da humanidade “selvagem”, educando-a. Essa era a única forma de pôr fim aos excessos que o homem no estado “selvagem” cometia em virtude da sua condição de barbárie. Contudo, incapaz de cumprir a sua obrigação, o homem já “civilizado” tinha preferido forçar o “bárbaro”, atacando-o, exterminando-o, ocupando as suas terras. Na sua pequena nota a Vattel, Silvestre Pinheiro Ferreira demonstrou a ilegitimidade destes actos em termos próximos da filosofia kantiana e da doutrina de Martens, pois a “incivilidade” não fundava direitos de ocupação. Salientou também a sua inconveniência política: o desrespeito pelos direitos dos povos nativos de terras não europeias era uma má opção porque privava os colonos “dos socorros importantes que podiam receber destes homens habituados ao clima, e em estado de os ajudarem a aproveitar as riquezas do país, e até de lhas fazerem. Depois porque maltratados se tornam em inimigos

irreconciliáveis” 205. A “missão civilizacional” como um dever e a eficácia da colonização uniam-se,

assim, para justificar o respeito pelas formas nativas de propriedade da terra

Porém, a estes princípios Silvestre Pinheiro acrescentou um outro, inesperado, que deixava numa situação de absoluto impasse as relações a estabelecer entre os diferentes graus de humanidade, o de que tão pouco o homem “bárbaro” estava obrigado a ceder às investidas civilizacionais dos europeus. Não em virtude da noção liberal da ausência de um dever de aperfeiçoar os outros, como em I. Kant, mas em virtude da ideia de uma certa liberdade de escolha, mesmo quando essa liberdade, condicionada pela ignorância, envolvia a opção por projectos de vida considerados “menores”.

“[…]não têm qualquer obrigação de ceder às nossas investidas, pela simples razão de não possuírem os nossos hábitos, nem as nossas luzes, para reconhecer que seria do seu interesse conceder a hospitalidade a homens que lhes trazem os benefícios

204 v. Manual do cidadão [...], cit., t. II, p. 9. 205 Idem, Ibidem, p. 527.

da civilização. Assim, agem no seu direito agindo segundo as luzes da sua razão; e como não pode haver direito contra o direito, não temos nenhum que os obriga a ceder-nos o lugar[…]”206.

O pensamento de Silvestre Pinheiro no que aos “povos bárbaros” dizia respeito pode ser o resultado da influência da literatura francesa mais radical, com a qual contactou durante os longos

períodos em que viveu em Paris (1797; 1825-1842)207. Mas o tom quase “libertário” das suas

palavras, concedendo aos povos bárbaros o direito - a liberdade “negativa”, no sentido berliniano -

de rejeitar as Luzes da Razão e, ao mesmo tempo, a relativização do conceito de Razão humana, era, no seu contexto, muito singular.

No documento A cidadania no Ultramar português (páginas 69-72)