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CAPÍTULO III – LEITURA E VIDA NA ESCOLA

3.2 A leitura no espaço escolar

A aprendizagem da leitura tem por ancoragem as chamadas práticas de linguagem, as quais, por sua vez, são totalidades indissociáveis e, portanto, de difícil sequenciação, porque têm muitos componentes implícitos que não podem ser transmitidos oralmente e que só podem ser comunicados quando elas são exercidas. Assim, a aprendizagem da leitura inscreve-se no próprio ato de ler, razão pela qual é do saber partilhado o fato de que se aprende a ler lendo - no fluxo - da mesma forma que se aprende a escrever escrevendo.

Dessa forma, a explicitação dos conteúdos envolvidos nas práticas de leitura de textos escritos, bem como nas práticas de composição de textos escritos ou “redação” devem ser objeto de documentos curriculares oficiais: aqueles mesmos textos que são propostos para o exercício de prática de leitura. Por conseguinte, quando se reconhece que se aprende a ler lendo ou escrever escrevendo, é preciso que uma matriz curricular esclareça o que é que se aprende quando se lê ou se escreve no espaço escolar responsável por essa aprendizagem, ou seja, quais são os conteúdos que estão sendo ensinados e, ao mesmo tempo, aprendidos, no fluxo das atividades dessas práticas.

A explicitação de conteúdos, portanto, deve ter por objetivo reduzir as incertezas experenciadas pelos professores quando são orientados a dedicar grande parte de suas atividades de docência à orientação de práticas de leitura. Em outras palavras, os documentos oficiais devem facultar aos docentes saber quais os conhecimentos que precisam ser mobilizados para exercer tais práticas e quais são os conteúdos

que possibilitam aos alunos aprimorarem habilidades que permitam o desenvolvimento das respectivas competências leitoras.

É preciso considerar, porém, a existência de aspectos impossíveis de serem verbalizados, por isso, o comportamento do leitor deve estar ligado aos conteúdos, razão pela qual o professor precisa saber o que um leitor proficiente faz, que seu aluno não faz, e o que precisa fazer para superar dificuldades. O professor, para dominar esses saberes procedimentais, precisa ser um leitor proficiente. Ler e escrever são as palavras que marcam a função da instituição escolar. Hoje sabemos que ler e escrever são desafios que transcendem amplamente a alfabetização. De acordo com Lerner (2002), o maior desafio da escola, hoje, é incorporar todos os alunos à cultura da escrita, é conseguir que todos seus alunos, ao sair dela, sejam membros plenos da comunidade de leitores e escritores.

Segundo a autora, para concretizar o propósito de formar todos os alunos como praticantes da cultura escrita, é necessário reconceitualizar o objeto de ensino e construí-lo, tomando como referência fundamental as práticas sociais de leitura e de escrita. Isso requer que a escola funcione como uma “microcomunidade” de leitores e escritores.

O necessário é fazer da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando resposta para os problemas que necessitam resolver, tratando de encontrar informação para compreender melhor algum aspecto do mundo que é objeto de suas preocupações, buscando argumentos para defender uma posição com a qual estão comprometidos, ou para rebater outra que consideram perigosa ou injusta, desejando conhecer outros modos de vida, identificar-se com outros autores e personagens ou se diferenciar deles, viver outras aventuras, inteirar-se de outras histórias, descobrir outras formas de utilizar a linguagem para criar novos sentidos (LERNER, 2002, p. 20).

Dessa forma, segundo Lerner (2002), ler e escrever são práticas que, reconceitualizadas, se transformam em instrumentos poderosos que permitem repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento – e onde interpretar e produzir textos se tornam direitos legítimos.

A ausência de significados dessas aprendizagens tem contribuído para que a leitura e a escrita constituam, ainda hoje, obstáculos, muitas vezes, instransponíveis no cenário escolar, conduzindo a índices elevados de insucesso e dificultando os processos de transferência de saberes para a vida social. Na escola, os exercícios de leitura, cuja proposta envolve interpretação, compreensão ou entendimento, nada mais fazem do que levar o aluno a repetir o que o próprio texto já disse. Não incitam a reflexão, o pensamento e a busca pelas informações implícitas; em suma, não contribuem com uma leitura significativa.

No ensino de Língua Portuguesa, é necessário, ainda, que se criem oportunidades para que os próprios alunos possam controlar sua interpretação e criar suas próprias estratégias de leitura. É preciso delegar às crianças que revisem seus escritos para que elas mesmas identifiquem e corrijam seus problemas de escrita, ao contrário do que comumente acontece, quando esse papel é assumido exclusivamente pelo professor. É imprescindível, então, que o aluno retorne ao seu texto para que, refletindo sobre ele, faça, ele próprio, as adequações necessárias.

Nessa direção, o Programa Ler e Escrever, em conformidade com a sua concepção de aprendizagem, busca romper com um ensino de leitura pautado exclusivamente na decodificação, como já explicitado neste mesmo estudo, orientando a realização de um trabalho em que a linguagem é utilizada de maneira que as crianças percebam que farão uso dela em outras situações, fora do espaço escolar, respeitando a ideia de que a versão escolar da leitura não deve se afastar demasiado da versão social não-escolar.

Compreende a escola como instituição cuja função é a de comunicar o conhecimento elaborado pela sociedade. Portanto, o objeto de conhecimento, o saber científico, acaba se transformando em “objeto de ensino” e, ao se transformar em objeto, o saber ou a prática a ensinar modificam-se. Assim, o professor, apoiado pelo Guia de Planejamento e Orientações Didáticas, tem a incumbência de prever atividades e/ou fazer intervenções pedagógicas que favoreçam a presença, na sala de aula, do objeto de conhecimento, tal como foi socialmente produzido, assim como refletir permanentemente sobre sua própria prática. A cada etapa do trabalho, ele procederá às adequações necessárias e possíveis.

É sob essa perspectiva que o Programa concebe a leitura na escola, qual seja, antes de tudo, como um objeto de ensino, orientando os professores a criarem oportunidades para que o aluno construa sentidos sobre o texto lido, conheça e valorize os propósitos de leitura, a fim de que essa concepção se materialize na ação pedagógica. Procura, então, colocar em cena um tipo particular de situação didática que, por sua natureza, propicie o encontro do aluno com um problema que deve resolver por si mesmo, ou com seus pares, num movimento didático no qual o professor, embora intervenha de diversas maneiras para orientar a aprendizagem, não torna público o saber que permite resolver o problema posto. Essa dinâmica torna possível ao aluno criar um projeto próprio e permite mobilizar o desejo de aprender de forma independente do desejo do professor.

Há, entretanto, o desafio enfrentado pela escola brasileira e pelos professores em formar leitores e em formar sujeitos que consigam decifrar o sistema de escrita e sujeitos que saibam assumir uma posição própria e crítica diante dos textos e dos autores, com os quais irão se deparar ao longo da vida. Para Lerner (2002), enfrentar esse desafio, antes de tudo, significa abandonar atividades mecânicas e desprovidas de sentido, que só levam as crianças a distanciar-se da leitura. É necessário se combater a discriminação observada no ambiente escolar em relação aos que fracassam na alfabetização aos que se alfabetizam, mas que não se tornam leitores competentes e autônomos. Ainda de acordo com Lerner (idem), “acreditamos que o desafio maior está em assegurar que a oportunidade de se apropriar da leitura como ferramenta essencial do progresso cognoscitivo e de crescimento pessoal seja garantindo a todos os que estão na escola”.

As inovações de práticas pedagógicas têm sérias dificuldades para se instalar no sistema escolar, e novos procedimentos didáticos costumam ser passageiros, o que faz com que as velhas práticas retornem às salas de aula. É importante distinguir as propostas de mudanças que realmente buscam soluções rigorosas para os graves problemas educativos daquelas que pertencem a um modismo. As propostas, porém, apresentam muita dificuldade de expansão, pois, normalmente, afetam o núcleo da prática vigente, diferentemente dos modismos, que se irradiam com maior

facilidade por tratarem de aspectos menos profundos da ação docente, mas são substituídas com certa facilidade.

Segundo orientações do Programa Ler e Escrever, o professor deve, durante as aulas, proporcionar ao aluno situações de leitura efetivas e diversificadas, incentivando-o a procurar o significado do texto e levá-lo a descobrir as próprias estratégias de leitura, diferentemente do que observamos nas salas de aula ao longo de nossa pesquisa. Partindo do pressuposto de que ler é atribuir sentido ao escrito, orienta que as atividades, passando primeiramente pelo estágio da decifração e, em seguida, pelo da oralização, devem envolver o questionamento, o levantamento de hipóteses e leitura de escritos reais. Essas atividades, quando bem adequadas aos estágios de desenvolvimento do educando, são imprescindíveis para formação de um leitor crítico e conhecedor de seus direitos e deveres.

Todavia, se a preocupação é formar leitores críticos, não basta elencar as atividades a serem desenvolvidas na sala de aula; é necessário também prever procedimentos estratégicos capazes de motivar o aluno a ler e a questionar o texto e, ao final da leitura, atribuir sentidos ao que leu.

Por meio dos encontros de formação continuada, os professores são inseridos em discussões que envolvem as recentes teorias de aprendizagem, de alfabetização e de leitura, uma vez que estas embasam o Programa Ler e Escrever. Trabalha-se com o pressuposto de que os conhecimentos teóricos devem estar alinhavados aos conhecimentos práticos, de tal modo que o Programa, quando materializado na sala de aula, reflita essa indissociabilidade. Sob essa perspectiva, o Programa sugere as seguintes práticas de leitura

- Leitura diária, para os alunos, de contos, lendas, mitos e livros de história em capítulos de forma a repertoriá-los ao mesmo tempo em que se familiarizam com a linguagem que se usa para escrever, condição para que possam produzir seus próprios textos.

- Rodas de leitores em que os alunos possam compartilhar opiniões sobre os livros e textos lidos (favoráveis ou desfavoráveis) e indicá-los (ou não) aos colegas.

- Leitura, pelos alunos, de diferentes gêneros textuais (em todas as séries do Ciclo) para dotá-los de um conhecimento procedimental sobre a forma e o modo de funcionamento de parte da variedade de gêneros que existem

fora da escola. Isto é, conhecerem sua forma e saberem quando e como usá-los.

- Montar um acervo de classe com livros de boa qualidade literária para uso dos alunos: tanto em sala de aula como para empréstimo. É a partir deste acervo que podem realizar as rodas de leitores13.

-Momentos em que os alunos tenham que ler histórias – para os colegas ou para outras classes – para que melhorem seu desempenho neste tipo de leitura, possam compreender a importância e a necessidade de se preparar previamente para ler em voz alta.

-Atividade em que os alunos consultem fontes em diferentes suportes (jornal, revista, enciclopédia, etc.) para aprender a buscar informações. - Montar um acervo de classes com jornais, revistas, enciclopédias, textos informativos copiados da internet, que sirvam como fontes de informação, como matérias de estudo e ampliação do conhecimento, ensinando o s alunos a utilizar e manuseá-los. Este acervo deve ser renovado em função dos projetos desenvolvidos na classe14.

- Atividades de leitura com diferentes propósitos (para se divertir, se informar sobre um assunto, localizar uma informação específica, para realizar algo), propiciando que os alunos aprendam procedimentos adequados aos propósitos e gêneros.

- Atividades em que os alunos, após a leitura de um texto, comuniquem aos colegas o que compreenderam, compartilhem pontos de vista sobre o texto que leram, sobre o assunto e faça a relação com outros textos lidos.

- Leitura de textos, com o propósito de ler para estudar, em que os alunos aprendam procedimentos como reler para estabelecer relações entre o que está lendo e o que já foi lido, para resolver uma suposta contradição o um mesmo para estabelecer a relação entre diferentes informações vinculadas pelo texto, utilizando para isto: anotações, grifos, pequenos resumos, etc. ( SEE, 2008, p.12-13).

Para tanto, o professor, além de ter clareza acerca dos objetivos propostos e das estratégias didáticas que o levarão ao alcance dos objetivos, deve estar teoricamente embasado, como já mencionamos anteriormente. É preciso que, na condução do funcionamento diário da sala de aula, ele mantenha, em suas atitudes, a postura coerente com a opção intencionalmente feita, quando o trabalho é iniciado com sua turma. Somente dessa forma, após os primeiros passos, não retornará,

13 Entende-

se que “montar um acervo” não se constitui numa prática de leitura, mas uma condição para que esta se realize. Todavia, foi mantida conforme consta nas orientações oferecidas aos docentes.

automaticamente, às velhas fórmulas, ainda que lhe pareçam coerentes com seu novo pensamento.