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A palavra do professor: resgate de sua profissionalidade

CAPÍTULO III – LEITURA E VIDA NA ESCOLA

3.5 A palavra do professor: resgate de sua profissionalidade

Contribuir com a melhoria da qualidade da educação na rede pública estadual está entre os objetivos explícitos do Programa Ler e Escrever, como já discutido anteriormente. Para tanto, aposta na formação continuada de seus profissionais, visando, dessa forma, atingir, prioritariamente, mas, de forma indireta, o professor e a sala de aula, onde as mudanças de concepção e de práticas pedagógicas devem, de fato, se concretizar.

Esses processos de formação continuada, hierarquicamente estruturados, ocorrem na própria unidade escolar, em reuniões semanais de HTPC, sob a liderança do PC, a quem cabe replicar os conteúdos “recebidos” junto ao órgão regional ou central. Essas reuniões semanais têm a duração de cinquenta minutos, quando, de acordo com a recomendação oficial, devem ser discutidas as questões conceituais e organizacionais relacionadas ao Programa.

Nesse contexto, o Programa Ler e Escrever foi apresentado aos professores da rede estadual que atuam nas classes de Ciclo I do Ensino Fundamental, os quais foram institucionalmente incumbidos, de implementá-lo em 2008, na Grande São Paulo, e em 2009, no interior. A proposta chegou então à rede estadual, como uma alternativa para os problemas relacionados à alfabetização, no interior da qual os materiais, incluindo os chamados “Cadernos de alunos” e “Guias de Orientação Didática aos professores”, têm papel estratégico, embora os docentes, no início do Programa, não tenham recebido, de imediato, orientação específica sobre os mesmos.

Por meio do estudo documental e das vivências como docente em turma de Ciclo I, portanto, atuante no Programa Ler e Escrever, este pesquisador pode, durante o ano de 2009, constatar que aos professores não foram oportunizadas condições para discussão do Programa e suas implicações no cotidiano da escola e na própria prática docente, ou, no mínimo, para validação da proposta que os mesmos deveriam executar.

O trabalho na unidade escolar, que se implantava naquele ano, seguiu nessa linha, buscando, por meio das reuniões de HTPC, incumbir, formalmente, o professor de aplicar as sequências didáticas e atividades contidas no material, sem, de fato, analisar e discutir seus pressupostos e conteúdos, instrumentalizar o professor, técnica e conceitualmente, para concretização do Programa junto aos alunos. Assim, a estratégia adotada não se configurou como uma oportunidade para que esse professor fosse reconhecido e se reconhecesse como um profissional, o que Nogueira (2007), considera de especial importância:

Os professores que atuam no ensino fundamental muitas vezes não se sentem profissionais, pois não são vistos como tal, seja na representação que a sociedade faz deles, seja na caracterização das suas situações de trabalho. Ainda existe uma forte idéia de que ensinar é tarefa fácil, que qualquer pessoa dedicada e paciente pode realizar sem grandes dificuldades. Não é considerada a complexidade que tal tarefa envolve: necessidade de conhecimentos, capacidades e práticas específicas (p.19)

Para a autora, considerar o professor como profissional significa pautar o trabalho formativo nesse fato, no que se refere tanto à metodologia, quanto aos espaços que são dedicados a essa formação, explicitando que, no âmbito metodológico, isso implica reconhecer os saberes dos professores e realizar um trabalho que inclua esses saberes, independentemente de serem, ou não, coerentes com os conteúdos da formação e, ainda, tomar como base suas práticas profissionais reais. Quanto aos espaços dedicados à formação, referem-se especialmente a situações em que os professores, reunidos com outros profissionais, reflitam e debatam sobre questões de seu trabalho, colocando-se, nesses momentos, como protagonistas.

A SEESP, entretanto, responsável primeira pela estratégia adotada para a execução do Programa Ler e Escrever, no qual a formação continuada dos professores é declarada como de capital importância, ao deixar de criar esses espaços de legítima interação dos professores, impediu que avanços mais rápidos acontecessem. O órgão central, partindo do pressuposto de que o modelo de formação continuada, transmissivo e hierárquico, por meio do qual o professor “recebe” do PC os conteúdos considerados adequados ao desenvolvimento do Programa, investiu

nessa estratégia e não auscultou os sinais de ineficiência que esse modelo logo apresentou.

A pauta do último “Encontro de Formação” de 2010 para Supervisores de Ensino, PCOP e PC, exemplifica bem esse fato, uma vez que propôs como atividade final do ano, que os PC apresentassem uma prática de leitura desenvolvida na unidade escolar, buscando com isso destacar a importância de que os professores falassem sobre seu próprio trabalho, registrando, na própria pauta esta intenção: “Falar sobre o que se faz – esta é uma estratégia formativa de grande valia para a formação profissional, uma vez que se desloca do lugar cotidiano da sala de aula para uma situação de interlocução com colegas parceiros, especializados no assunto.”

Assim, apesar de as propostas dessa natureza serem frequentemente apresentadas nos processos de formação – central e regional –, essa prática ainda não se integrou às ações formativas da escola, impedindo, até o momento, que os professores atuantes no Ler e Escrever assumissem a palavra, como profissionais, no espaço escolar, uma vez que não tiveram oportunidade para falar sobre suas práticas docentes, entre elas as práticas de leitura, para, a partir delas e do contato com as sugestões do Programa, aprimorar o trabalho em sala de aula.

Dessa conjuntura emergiram, entre os professores, algumas posturas em relação ao Programa que não contribuem para sua adequação de aplicação, que vão desde a sua rejeição explícita, manifestada pela recusa em utilizar os materiais de apoio (cadernos de alunos e professores), até a não aceitação velada, evidenciada pela adoção de um discurso pedagógico coerente com o Ler e Escrever, permeado por uma prática de docência que vai de encontro à linha pedagógica do Programa. Foram identificadas, ainda, algumas variantes desses comportamentos, como é o caso dos professores que desenvolvem as sequências didáticas sugeridas pelo Programa sob uma perspectiva que se assenta em pressupostos contrários ao Ler e Escrever – neste caso, geralmente, a perspectiva tradicional. Há também professores que optam por uma prática pedagógica que contempla tanto as estratégias sugeridas pelo Programa, como aquelas já utilizadas anteriormente, a qual intitulam “mista”, procurando explicitar que combinam procedimentos didáticos relacionados a correntes pedagógicas tradicionais e sócio-interacionista. Os

formadores do PROFA/Letra e Vida, programa que antecedeu ao Ler e Escrever, já eram alertados para essa questão:

Outros preferem misturar ou mesclar um pouco do que fazem com o que estão conhecendo, sem perceber que os fundamentos teóricos que orientam cada tipo de prática são incompatíveis quando analisadas as concepções de educação, de ensino, e de aprendizagem, do papel do professor, etc. Outros discordam de tudo o que é novo e preferem manter seu trabalho como sempre realizaram, desprezando todo avanço das pesquisas e dos estudos sobre os processo de ensino e de aprendizagem (no caso da alfabetização). (BRASIL. Guia do Formador- Letra e Vida, p. 3).

Embora as situações descritas sejam esperadas em contextos profissionais que exigem mudanças de paradigmas, como é o caso do Programa Ler e Escrever, delas emergem questões que devem ser te matizadas e devidamente discutidas, a fim de não comprometerem os objetivos perseguidos. Essa seria mais uma forma de reconhecer a condição de profissionais dos professores que atuam no Programa e de possibilitar que se conectem com a comunidade educacional.

No cotidiano escolar, durante as reuniões de HTPC, porém, uma parcela significativa dos professores não se manifestava acerca de questões que se revestiam de fundamental importância para o desenvolvimento do Programa Ler e Escrever. Esses professores silenciavam, por exemplo, sobre fatos que se relacionavam às dificuldades de compreender as concepções de alfabetização e aprendizagem que sustentavam a proposta do Ler e Escrever, à pertinência das orientações didáticas contidas nos “cadernos dos professores”, à gestão do tempo em sala de aula e às inseguranças oriundas das mudanças nas rotinas de sala de aula, usando, no entanto, dos momentos de descontração, não controlados institucionalmente, para, de alguma forma, levantar essas questões, que, todavia, deixavam de se constituir objeto de reflexão do grupo.

Segundo Nogueira (2007), espaços institucionais que dão voz aos professores do Ciclo I devem ser criados, restaurados ou ampliados, para que, no e pelo diálogo, possam romper esses silêncios, ainda que a criação deles, na escola pública, reconhece a autora, dependa, em altíssimo grau, de vontades políticas e condições

econômicas. Dessa forma, numa relação equitativa, os professores, sentindo-se respeitados na sua profissionalidade, poderiam contribuir com as mudanças necessárias à educação, cuja planificação geralmente se materializa sob a modalidade de projetos ou programas, como o Ler e Escrever.