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A má-fé

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3. EXISTENCIALISMO SARTREANO E SAPIENCIALIDADE COELETIANA:

3.1 A má-fé

A inserção de Deus nas situações humanas está mais para um ato de má-fé do que uma ação de boa-fé e crença no ser perfeito e poderoso, por parte de Coélet em sua consciência sapiencial113. Não se nega Deus, mas se afirma que ele não é decisivo nas questões do homem diante da realidade que o cerca se o homem não Lhe intenciona.

111“Segundo os cálculos de H. Th. Willers, das 305.441 palavras da bíblia hebraica e aramaica, o livro de Coélet abrange só um por cento, com suas 2.987 palavras e 222 versículos. E, no entanto, diante desses 12 descarnados e pequenos capítulos todos os comentadores se sentiram atemorizados e sempre tomaram da pena com sentimento de importância: ‘Só uma singular vaidade ou uma rara inconsciência pode levar alguém a escrever sobre o Eclesiastes’, afirmava o ensaísta francês Jac- ques Ellul, no começo de seu livro sobre Coélet, La raison d’être (Paris, 1987)” (RAVASI, 1988, p. 07).

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1,12;2,24-26;3,10-17;4,17;5,1-7.17-19;6,2;7,14.18.26-29;8,2.12-13.15-16;9,1.7;11,5.9;12,7.13. 113 “Nossoautorobserva a realidade comsabedoria” (COLUNGA, 1962, p. 809).

Na existência, o homem O sapiencia; precede à essência. O homem vem an- tes do ser, de Deus, dos objetos presentes no mundo, até mesmo do próprio mundo; é o ser existencial do homem autor das descobertas dos encantos que já se encon- tram no mundo; para suas angústias diante do perceptível é ele mesmo que as ali- via.

Enquanto a isto, Coélet interroga, pois antes de qualquer decisão ele sapien- cia a realidade da seguinte forma: “Que proveito tira o homem de todo o seu trabalho com que se afadiga debaixo do sol?” (Ecl 1,3). Vê-se que o ato humano é sapiencial, Deus não se torna existente, ele se torna essência para este ato.

A ideia de que Deus é autor de todos os feitos humanos e de que é criador de um mundo é pura manifestação de um ato de má-fé, pois tanto o homem quanto o mundo e Deus, no visar de Coélet, estão em positividades; eles são um vazio um para o outro se não houver relações intencionais humanas.

Dado a esta situação, o homem por si só permanecerá despossuído do nada, ou seja, não exerce o seu nada, ele se torna em sua sapiência por ocasião de signi- ficar as coisas que se encontram no mundo, inclusive na ideia de Deus.

Sendo assim, no Eclesiastes não há um ser que gera todos os objetos, não há um criador para todas as coisas e nem para o mundo; há o homem, o mundo e a ideia de Deus em positividade, em situação de ser o que é.

Já, reinterpretando Sartre (1978, p. 221), na dimensão de que o homem deve legislar por aquilo que escolheu para si mesmo, vê-se que a consciência intencional do homem existencialista é que cria momentos de descobertas, porque ela é nadifi- cada face a qualquer situação aparente.

Em semelhança ao que defende Sartre no opúsculo O existencialismo é um

humanismo (1978, p. 273) e na obra de maior expressão filosófica O Ser e o Nada

(2007, p. 491), o ser existencial do homem, denominado de ser sapiencial em Coé- let, também está no Eclesiastes só e desamparado neste mundo, mas com possibili- dades de legislar por aquilo que escolhe. Não há entidades a priori que o protejam, não há um Deus que o proteja. Ele é quem se projeta diante da situação em munda- nidade, ou seja, como o ser existencial do homem se refaz no mundo, ora face à dominação - governos dos Ptolomeus, 333 a 180 aC., ora na condição de dominado, como ser humano projetado no mundo.

Resistente à má-fé, Coélet, diante desta situação de dominação, se coloca como um sábio. O sábio é aquele que se reconhece e reconhece no outro em condi-

ções de projetar-se diante da realidade. Negar esta condição é negar a própria con- dição de ser autêntico no processo de intencionar a consciência, e Coélet não se nega a isto. Ao contrário, este processo poderá ser denominado de má-fé, sartrea- namente situando ou, coeletamente observando, negando viver a vida em sapiencia- lidade também se equivale a um ato de má-fé.

Fato é que nadificar a sabedoria114 é ir além das aparências, é buscar neste ato vivenciar situações aparentes conflituosas, porém conciliatórias a partir dos obje- tos perceptíveis presentes no mundo reconhecido - até mesmo a ideia de Deus -, contudo, aqui há possibilidades de em essência estes objetos serem conhecidos; consequentemente, não permitindo a atuação má-fé, diante da consciência do ho- mem, do ser existencial do homem.

A saber, em Sartre, este impedimento da má-fé não acontece dentro da consciência, dá-se na relação consciência - mundo, mundo - consciência, aqui nadi- fica -se, esvazia-se de todos os dogmas, preconceitos e supera as facticidades co- muns à consciência do ser existencial do homem.

E, em Coélet, o impedimento da má-fé se passa pelo ato do homem em ser sábio, pelo ser existencial do homem em sabedoria, “[quem] é como o sábio? Quem sabe a interpretação das coisas? A Sabedoria do homem faz sua face brilhar, e abranda a dureza da sua face” (Ecl 8,1); haja vista, não praticar a má-fé é saber in- terpretar as coisas.

A má-fé é posta diante do pensamento como algo intencional, fruto da consci- ência sapiencial e existencial do homem. Para este propósito, Sartre diz:

Aceitamos que a má-fé seja mentir a si mesmo [...]. Por certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou apre- sentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência, portan- to, a estrutura da mentira. Só que - e isto muda tudo - na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo. Assim, não existe neste caso a duali- dade do enganador e do enganado (SARTRE, 2007, p. 93-4).

Como bem enfatiza a passagem acima, a prática da má-fé se concretiza quando se negar uma realidade passível de ser nadificada. O ser humano se projeta na realidade negando o que de fato já lhe é verdade.

Se o homem comete alguma ação como cantar, ler, participar de uma asso- ciação, ministrar aulas, dirigir, desejar e acariciar outro ser, enfim, praticar qualquer

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ato, este ato é essencialmente intencional. Omitir-se é fazer uso da má-fé. Isto se efetiva por três razões.

Primeiro, no contexto da sua existência o homem é um ser de projetos. Faz- se presente, razão pela qual as coisas perceptivas no mundo estão para além do seu existir, elas não são aparência, assim, o homem se posiciona; negar a existên- cia de algo além da aparência é alimentar a má-fé.

Segundo, ao falar, ao propor, ao se apresentar diante de uma situação o homem constrói e reconstrói o ciclo de projeção no mundo. Não percebê-la é fazer uso da má-fé, pois a própria visão de mundo e dos demais, mesmo que ninguém assuma outra postura, não transforma a realidade, é preciso lançar-se.

Terceira razão se presta à condição do homem, com a consciência nadifica- da ou não, apropriando-se da perspectiva de que o ser existencial do homem é um ser que está no mundo.

Negar a vivência com as coisas que estão no mundo é fazer uso da má-fé. Portanto, para Sartre o ser humano se determina na sua escolha numa relação do Para-si com o Em-si. A má-fé é uma constante nesta relação na medida em que o Para-si esconde a importância do Em-si em seu nada (SARTRE, 2007, p. 544).

A má-fé é evitada quando a consciência existencial leva o homem a perce- ber a realidade com objetividade, como as coisas de fato são. Partindo deste princí- pio, há algo para ser vivenciado, mesmo que seja o não aceito; esta situação é re- sultante da manifestação do ser-Para-si em direção ser-Em-si, em busca da essên- cia deste último; ou seja, do “conjunto organizado de qualidades” (SARTRE, 2007, p. 19) que está no Em-si que já é ser, que já é fenômeno. Sendo assim, a consciência existencial irá ocupar-se da essência, das manifestações fenomenológicas da reali- dade.

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