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Corpo em desfavor do ateísmo idealista freudiano

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1. A GÊNESE DA CONSCIÊNCIA EXISTENCIALISTA A PARTIR

1.4 Sartre e o ateísmo em Freud

1.4.6 Corpo em desfavor do ateísmo idealista freudiano

O homem se lança no mundo com o propósito de que a cada instante se des- cobre que de fato é lançado neste mundo. O corpo, então é este canal de descober- ta para a consciência,“[meu] corpo, ao mesmo tempo, é co-extensivo ao mundo, es- tá expandindo integralmente através das coisas e concentrado nesse ponto único que todas elas indicam e que eu sou sem poder conhecê-lo”(SARTRE, 2007, p.402).O homem está só e abandonado, porque é livre. Sempre livre se dá conta de que está no mundo com uma consciência universal das coisas mediante o corpo, que lhe é estranho, mas que ainda vive. Para tanto, a sensibilidade e a razão aqui só são instrumentos desta percepção do mundo.

A cegueira, o daltonismo, a miopia representam originalmente o modo co- moháum mundo para mim, ou seja, definem meu sentido visual enquanto facticidade de meu surgimento. Por isso meu sentido pode ser conhecido e definido objetivamente para mim, mas no vazio, a partir do mundo: basta que meu pensamento racional e universalizador prolongue no abstrato as indicações que as coisas me revelam sobre o meu sentido e reconstrua o sentido a partir desses sinais, assim como o historiador reconstitui uma per- sonalidade histórica conforme os vestígios que a indicam. Mas, nesse caso, reconstruí o mundo no terreno da pura racionalidade, abstraindo-me do mundo pelo pensamento: sobrevôo o mundo sem vincular-me a ele, coloco- me na atitude de objetividade absoluta, e o sentido torna-se objeto entre ob- jetos, um centro de referênciarelativo que pressupõe coordenadas. Mas, por isso mesmo, estabeleço em pensamento a relatividade absoluta do mundo, seja, a equivalência absoluta de todos os centros de referências. Destruo a mundanidade do mundo, sem me dar conta disto. Assim, o mundo, ao indi- car perpetuamente o sentido que sou e convidando-me a reconstruí-lo, inci- ta-me a eliminar a equação pessoal que sou, restituindo ao mundo o centro de referência mundano com relação ao qual o mundo se organiza. Mas, ao mesmo tempo, escapo – pelo pensamento abstrato – ao sentido que sou, ou seja, corto meus vínculos com o mundo, equivalência absoluta de suas infinitas relações possíveis. O sentido, com efeito, é nosso ser-no-mundo enquanto termos-de-sê-lo em forma de ser-no-meio-do-mundo (SARTRE, 2007, p.404).

O corpo, então, torna-se o ser capaz de desvelar ao homem o sentido da do- ença, pois ele é portador da comunicabilidade com a consciência. Ele permite per- ceber que quando o homem manuseia algo com a própria mão fica mais evidente este ato para si mesmo do que ver o outro manuseando algo. Isto acontece porque o ser que se manifesta no corpo já tem uma conexão próxima com a consciência que se lança mediante a sensação e a razão, mesmo que estejam fora da consciência. “Então, que é a dor? Simplesmente, a matéria translúcida da consciência, seu ser-aí, sua vinculação ao mundo” (SARTRE, 2007, p. 420).

O corpo acometido pelo mal, a partir da compreensão existencialista, é um serjá contemplado na consciência; ele é transcendente, ou seja, já está em forma de percepção; quando é acometidopor algo, o corpo se efetiva na consciência em mani- festação, há“[...] uma espécie de cisão no momento da projeção reflexiva: para a consciência irrefletida, a dor era o corpo; para a consciência reflexiva, o mal é distin- to do corpo, tem sua forma própria, vem e vai”(SARTRE, 2007, p. 424).

O corpo é portador dos estímulos. Entretanto, a consciência o percebe em ação e entra e se interage com o mesmo. Não que a consciência está separada do corpo como queriam os racionalistas, ou que os estímulos são partes necessárias para a sobrevivência da aprendizagem da consciência como queriam os empiristas ou que é no interior da consciência que se alojam os problemas humanos como de- fende Freud (1948,p.119), segundo ele, a consciência é a essência do psíquico.

Para Sartre, a consciência é um nada43, e ela se propõe a projetar no objeto, inclusive no corpo, passando assim a existir em decorrência das manifestações dos estímulos que estão no corpo. Para tanto, aconsciência só se manifesta com um corpo em estímulos, em operacionalidade reflexiva e irreflexiva.

Para o existencialismo, o desejo do corpo e seus estímulos são o que leva à descobertado “ser-aí” do outro. Constitui-se um ato de nadificaçãoda consciência que se efetiva pelo olhar e em carícias face ao outro que se apresenta em corpo. Posto isso,

O corpo do outro é originalmente corpo em situação; a carne, ao contrário, aparece como contingência pura da presença. Comumente, acha-se disfar- çada por maquilagem, roupas etc [...] O desejo é uma tentativa de despir o corpo em seus movimentos, assim como de suas roupas [...] A carícia não quer ser simples contato; parece que o homem sozinho pode reduzi-la a um contato, e, então, perde o sentido próprio da carícia [...] Acariciando o outro, faço nascer sua carne pela minha carícia, sob meus dedos. A carícia é o conjunto das cerimônias que encarnam o outro [...] A carícia faz nascer o Outro como carne para mim e para ele [...] Assim, a carícia de modo algum difere do desejo: acariciar com os olhos e desejar são a mesma coisa. O desejo se expressa pela carícia assim como o pensamento pela linguagem. E, precisamente, a carícia revela a carne do Outro enquanto carne, tanto para mim como para o outro (SARTRE, 2007, p. 484-5).

Como se vê, o desejo - a libido para Freud - não se encontra alojado na cons- ciência do homem. Ele está tão somente na dimensão do encontro dos seres pre- sentes no mundo, e o corpo é este ser presente no mundo; no caso do desejo por

outro ser que vive, semelhante portador de uma consciência que se encontra, en- contra-se no vazio. Então qual o motivo do desejo para Sartre já que para Freud es- tá na libido?

Para Sartre o motivo do desejo reside no fato de que,

em cada carícia, sinto minha própria carne e a carne do outro através da minha, e tenho consciênciade que esta carne que sinto e da qual me apro- prio por minha carne é carne-sentida-pelo-outro [...] a verdadeira carícia é o contato de dois corpos em suas partes carnais, o contato de ventre e peitos [...] Todavia, o próprio desejo está condenado ao fracasso [...] Com efeito, o prazer – tal como uma dor muito aguda – motiva a aparição de uma consci- ência reflexiva que é “atenção do prazer”(SARTRE, 2007, p.493).

O outro, ser-Em-si, quando não se satisfaz em seu desejo, pode gerar no ho- mem, ser-Para-si-, em sua consciência, a intenção das práticas masoquistas e sa- distas. Assim, Sartre se posiciona:

[...] comumente, que este fracasso do desejo venha a motivar uma passa- gem ao masoquismo, ou seja, que a consciência, captando-se em sua facti- cidade, exija ser captada e transcendida como corpo-Para-outro pela cons- ciência do Outro: neste caso o Outro-objeto desmorona, o Outro-olhar apa- rece, e minha consciência é consciência desfalecida em sua carne ante o olhar do Outro (SARTRE, 2007, p. 294).

Quanto ao sadismo, Sartre argumenta que:

O sadismo é paixão, secura e obstinação. É obstinação porque é o estado de um Para-si que se capta como comprometido, sem compreender em que está comprometido e persiste em seu compromisso sem ter a consciência do objetivo a que se propôs nem lembrança precisa do valor que atribuiu a este compromisso. É secura porque aparece quando o desejo foi esvaziado de sua turvação [...] Na medida que obstina-se friamente e é ao mesmo tempo obstinação e secura, o sádico é um apaixonado. Seu objetivo é, tal qual o do desejo, captar e subjugar o Outro, não somente enquanto Objeto- outro, mas enquanto transcendência encarnada. Mas, no sadismo, a ênfase é dada à apropriação instrumental (SARTRE, 2007, p.495).

Tudo implica o inverso do que Freud teorizou sobre o masoquismo e o sadis- mo44 em quese discute a sexualidade, a punição, a repetição e a inversão, tendo como pano de fundo a dor e prazer em vista do corpo presente. O sadismo e maso- quismos estão alojados comoraízes de tais doenças no inconsciente. Em Sartre, o

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Segundo Carvalho; Peres (2012, p. 144-55), o masoquismo e sadismo são tratados por Freud nas obras: Interpretação dos sonhos (1990); Três Ensaios teoria sexual (1905); em seu caso clínico O homem dos lobos, de 1914; Além do princípio do prazer, de 1920; Eu e o Isso, de 1923; Problema econômico do masoquismo, 1924; Esboço de psicanálise, de 1938; Análise terminável e interminável, de 1937, e nas Novas conferências introdutórias de 1933.

corpo é um ser que se interage com a consciência que é um ser em liberdade, é um nada, contanto,

Queremos apenas mostrar que o sadismo está como um germe no próprio desejo, como sendo o fracasso do desejo: com efeito, a partir do momento que busco possuir o corpo do Outro, o qual levei aencarar por meio da mi- nha encarnação, rompo a reciprocidade de encarnação e transcendo meu corpo rumo às possibilidades e me oriento na direção do sadismo [...] o sa- dismo e o masoquismo são dois obstáculos do desejo, quer eu transcenda a turvação rumo a uma apropriação da carne do Outro, quer dê atenção so- mente à minha carne, inebriado que esteja por minha própria turvação, e nada mais exija do Outro senão sero olhar que me ajude a realizar minha carne (SARTRE, 2007,p. 501).

Assim sendo, o desejo provoca o prazer e nele encerra-se o seu fracasso de forma que o homem se liberta de atitudes masoquistas ou sadistas reconhecendo que estas não lhe são inerentes na consciência e nem como ato puro da sua inten- cionalidade, mas um ato do seu relacional com o outro. A libido pelo outro se acaba quando a consciência nadificada busca outro ser perceptível.

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