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Críticas à autoria salomônica e a questão do redator

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1. A GÊNESE DA CONSCIÊNCIA EXISTENCIALISTA A PARTIR

2.1 O Eclesiastes ou Coélet: atribuição da autoria a Salomão

2.1.1 Críticas à autoria salomônica e a questão do redator

Se Salomão não é autor do texto da bíblia hebraica, quem coloca as palavras em sua boca tem a pretensão em confundir os seus leitores? Aparentemente não, o redator - ou os redatores- deseja exercer também o seu direito de ser um sapiencial em uma época longínqua da era salomônica (970 aC.), apoiando-se em Salomão mesmo que, historicamente, ele seja uma contradição, construindo uma crítica con- tundente aos que detêm o domínio sobre o outro (CARRIÈRE, 1997, p. 469).

Posto isto, a sabedoria vivenciada por Salomão possui características diferen- tes que propõe o texto coeletiano.

Salomão possui bens e bastante sabedoria acumulada; Coélet, ao contrário, sapiencialmente, torna-se sábio quando se articula em comunidade, traz um perfil “de uma pessoa que viveu a vida intensamente e que, como singular livre-pensador, não pôde encontrar nele nem mesmo uma modesta confirmação dos pressupostos da sabedoria tradicional” (MORLA ASENSIO, 1997, p.165). Além disto, a sua men- sagem consiste em um protesto contra o espírito ambicioso do período helenístico (JONG, 1997, p. 164).

Conquanto, Salomão como autor do livro contradiz toda a mensagem em que se encaixe dentro de uma dimensão da consciência sapiencial de Coélet, em que se propõe “dedicar-se ao sentido das coisas” (RAVASI, 1993, p.186).

Certamente, o redator que coloca as palavras na boca de Salomão para, nas sequências das ideias, criticá-lo, tendo como âncora a frase de efeito de que tudo que se faz neste mundo é vaidade, expõe o cerne do pensamento sapiencial coele- tiano; pensamento este defensor de que o mundo, e nele tudo que é perceptível ao homem, está posto diante da consciência sapiencial; cabe ao homem conhecê-lo em porção.

Para o pensamento sapiencial, isto significa que este tudo é pura positividade, é totalidade. Salomão é dado a esta sabedoria da totalidade. No entanto, “as indica- ções são de que a atribuição salomônica é uma convenção literária típica da tradição da sabedoria” (WRIGHT, 2007, p. 967).

Enviesando pela tradição judaico-cristã, que posta argumentos contundentes, as dúvidas sobre a autoria salomônica se solidificam:

Os dois pilares em que se fundamenta a opinião tradicional, ou seja, a tradi- ção judaico-cristã e o próprio livro, começam a dissolver-se seriamente no século XVII com Hugo Grotius. Já antes se tinha escutado alguma voz dis- crepante entre os judeus, que, porém, logo se calou. Costuma-se citar tam- bém Lutero em suas Tischreden, como se fosse ele o primeiro a negar que Salomão foi autor do Eclesiastes [...] A verdadeira ruptura com a tradição começa com Hugo Grotius, que, em suas Annotationes de 1644, defendia abertamente que Qohélet não foi escrito por Salomão, mas por outros mais tarde. Assim o reconhecem todos os autores, e “desde então a verdade se impôs”. Para chegar aí foi preciso todavia passar por quase três séculos de controvérsias entre os defensores da autoria salomônica de Qohélet e os que a negavam (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 12-3).

Ademais,

Até o sec. XIX, não obstante o parecer [...] judeus e cristãos consideram Sa- lomão autor do Eclesiastes. Acreditava-se encontrar uma confirmação no tí- tulo do livro, o qual, porém, foi reconhecido, como pseudo-epígrafe e tardio, e nos numerosos acenos biográficos do autor (1,16;2,1-20;7,27;12,9s) (LAURENTINI, 1985, p. 237).

Estas discussões indicam que a autoria do Eclesiastes não é salomônica54 e, apontam para a pergunta: quem é Coélet? Para respondê-la, é necessário conside- rar a sua presença no próprio texto, com isso, tem-se se um redator - ou redatores- sapiencidando-se55 em seu contexto.

A Bíblia de Jerusalém (1985, p. 1165-6) aponta que o livro do Eclesiastes de- ve ser intitulado de Coélet; por questões de ordem cronológica jamais poderá ser atribuído a Salomão, é um texto pós-exílico56 da terceira metade do século III dC.

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De fato, a figura de Salomão tornara-se modelo para exprimir um certo tipo de sociedade. Esta figu- ra de Salomão aparece, principalmente, na síntese do Cronista: Salomão é a paz social numa socie- dade sem conflito e dominada pela potência persa. Entretanto, a resistência dos pobres começou a criticar esta figura de Salomão. [...] O processo de empobrecimento da Palestina e especialmente de Jerusalém na época grega leva o Eclesiastes a criticar essa figura triunfalista de Salomão, e a procu- rar novas raízes para uma reflexão da sociedade na sua totalidade. Em todo caso é preciso sair do otimismo elitista dessa figura dominadora e excludente de Salomão. Ela é mesmo figura de uma visão idolátrica da sociedade. Faz-se necessário redescobrir a sabedoria como discernimento da qualidade da justiça e da resistência da verdade. Este é o desafio que o autor procura enfrentar. Aí está para ele o eixo da libertação e da subsistência do povo dominado econômi- ca e culturalmente pelos gregos (FITZPATRICK, 1997, p. 34).

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Este neologismo firma-se na ideia de que se o homem está em sabedoria é possível conhecer a essência do objeto no mundo que se manifesta, até mesmo o próprio mundo.

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Períodos exílico e pós-exílico: Período Babilônio e Persa (586-333 aC.). Período Helenístico: (333- 180 aC.): domínio Ptolomaico.

Entretanto, o editor compreende que Salomão poderia ser o autor do livro e o fez assim para dar credibilidade ao conteúdo sapiencial (GORDIS; LOHFINK; DI FRONZO apud VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 11); mas que não o é, se encerrando a autoria salomônica em um pseudônimo, “já a partir do 3 cap. não se fala mais de Salomão e as sentenças posteriores a respeito do rei nos mostram o autor na sua qualidade de súdito” (ENST, 1977,p. 499).Salomão reinou em Jerusalém durante os anos 961-922 aC., após quinhentos anos é aceitável o hebraico57 empregado na redação do Eclesiastes, um hebraico tardio, como língua padrão porque sofre in- fluência do aramaico com a presença de palavras persas no texto; esta constatação evidencia a não autoria salomônica do Eclesiastes (GRACÍA-TRENTO, 1995, p. 90).

Contudo, Coélet passa a ser considerado “um dos primeiro intérpretes das tradições sobre Salomão” (ZAMORA, 2002, p. 22).

Aos poucos, a interpretação do texto coeletiano vai desvencilhando Salomão como o seu autor. “Na realidade, Salomão era considerado como sábio por excelên- cia e, por issopodia-se-lhe atribuir um livro deste gênero” (SELLIN; FOHRER, 1977, p. 499). O autor é “um pseudo-editor, um editor-autor [...] É um admirador de Salo- mão, relatando as lições da vida de Salomão, na tradição da sabedoria pela qual se tornara famoso” (EATON, 2011, p. 28).

Sutilmente, o redator - ou os redatores - do texto que se esconde por trás da autoria salomônica, estrategicamente, possui uma visão de que a situação experien- ciada é total, é positivada, é absoluta de essências e vazia de existência.

O redator é alguém focado na realidade, é alguém insistente em colocar o homem como causa maior do seu bem-estar em uma sociedade invertida; este deve subvertê-la em prol da própria humanização das relações com o outro e com o mun- do (TAMEZ, 1998, p.169); a figura de Salomão não corresponde a esta realidade embora seja referência de sapiencialidade no texto coeletiano. Mas,

Como poderia o sábio exemplificar melhor os limites da sabedoria, do pra- zer, do prestígio, da riqueza e das realizações humanas senão citando as experiências de Salomão? Por isto, em novo contexto, o sábio mais jovem se meteu na roupagem de Salomão para explorar a deficiência de um gêne- ro de vida baseado justamente nos valores salomônicos (HUBBARD, 1991, p. 10).

57“O hebraico, no qual o autor escreve, é diferente do hebraico clássico. Alguns biblistas dizem que se trata de um hebraico popular, diferente do hebraico clássico. Seria um hebraico de transição entre o hebraico bíblico e o rabínico” (MOREIRA, 2006, p.14).

Salomão se torna uma referência para Coélet de que é possível a qualquer ser humano conhecer e sapienciar as coisas presentes neste mundo58mediado pelo ato de pesquisar. Só que este ato é limitado, por mais que o seu resultado seja co- nhecimento profundo; com o tempo ele se estagna, torna-se uma positividade, não apresentando mudanças inovadoras, éum “correr atrás do vento” (Ecl 1,17). Para tanto Coélet, transfigurado em Salomão59, sintetiza a sua experiência relacionada à vida sapiencial; a vida é um recomeçar constante diante do outro, do mundo, de Deus.

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