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A modalidade das soluções 221 e o resultado do saber

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 83-91)

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana 12.1 A Filosofia e a máscara

1.2.4. O que é uma imagem do pensamento segundo Gilles Deleuze

1.2.4.6. A modalidade das soluções 221 e o resultado do saber

O postulado das respostas e soluções indica que o verdadeiro e o falso só começa m com as soluções ou quando qualificam as respostas. Na imagem do pensamento dogmática, os problemas aparecem como já feitos222, desaparecendo nas respostas, na solução apresentada. Desta forma, a actividade de pensar, o verdadeiro e o falso do pensar, só começa com a procura de soluções.

“Fazem-nos acreditar, ao mesmo tempo, que os problemas são dados já feitos e que eles desaparecem nas respostas ou na solução; sob este duplo aspecto, eles seriam apenas quimeras. Fazem-nos acreditar que a actividade, só começa com a procura de soluções, só diz respeito às soluções.”223

“A ilusão natural (que consiste em decalcar os problemas sobre as proposições) prolonga-se, com efeito, numa ilusão filosófica. (…) mantém-se a ideia de que a verdade de um problema reside tão-somente na possibilidade dele receber uma solução.”224

O pensamento é apenas a procura de soluções, pensar é resolver um problema cuja solução é de alguma forma dada ou subentendida nas premissas. Gera-se assim a ideia de que a verdade de um problema reside na possibilidade de ter uma solução, modela-se a forma dos problemas sobre as formas de solução, as formas de possibilidade lógica das

218

Deleuze, G., DR, op cit, p. 234. 219

O conceito é uma solução do problema filosófico cujas condições estão no plano de imanência que ele supõe. Por exemplo, um conceito como o de conhecimento só tem sentido, diz Deleuze, em relação a uma imagem do pensamento a que ele remete e a uma personagem conceptual de quem necessita. Uma solução não tem sentido fora de um problema que determine as suas condições e as suas incógnitas, porém, estas também não têm sentido independentemente das soluções que se determinam como conceitos. Cf. Deleuze, G. e Guattari, F., OQF, op cit, p. 73.

220

Deleuze, G., DR, op cit, p. 266. 221

Cf. Deleuze, G., DR, op cit, p. 268. 222

Sobre o papel das «soluções» no pensamento cf. Deleuze, G. e Guattari, F., OQF, op cit, p. 73. 223

Deleuze, G., DR, op cit, p. 267. 224

proposições do senso comum. De outra forma, os problemas são materialmente decalcados sobre as proposições ou formalmente definidos pela possibilidade de serem resolvidos.

“A interrogação não é senão a sombra do problema projectado ou antes reconstituído a partir das proposições empíricas; mas o problema em si mesmo é a realidade do elemento genético, o tema a complexo que não se deixa reduzir a nenhuma tese de proposição. É uma só e mesma ilusão que, sob um aspecto empírico, decalca o problema nas proposições que lhe servem de “respostas” e que, sob um aspecto filosófico e científico, define o problema pela forma de possibilidade das proposições “correspondentes”.”225 “Jamais o problema se parece às proposições que ele subsume, nem às relações que o exprimem.”226

Esta forma de conceber o pensamento é um preconceito visando manter o pensador como uma criança que se consola por ter resolvido o jogo. Daí que a imagem dogmática se apoie sempre em exemplos simples e socialmente reaccionários227.

Os problemas, tal como o sentido, não são dados, devem ser constituídos e investidos em campos simbólicos que lhes são próprios, pois o verdadeiro e o falso não dizem respeito às soluções mas aos problemas e à sua constituição, é isto que é preciso reverter. É nos problemas que se faz a génese da verdade no pensamento.

“O essencial é que, no seio dos problemas, se faz uma génese da verdade, uma produção do verdadeiro no pensamento. O problema é o elemento diferencial no pensamento, o elemento genético no verdadeiro.”228

O problema funciona como o elemento diferencial no pensamento que impulsiona o pensamento, logo «os problemas são as próprias Ideias»229. E uma Ideia é uma multiplicidade, um conjunto de problemas cujo maior perigo é serem criados segundo as soluções possíveis.

Resolver o problema é sempre engendrar as descontinuidades sobre o fundo de uma continuidade que é o problema que funciona como Ideia. Só ele é universal, as proposições são sempre particulares na medida em que são uma resposta que faz esquecer o problema. As Ideias problemáticas são multiplicidades de relações e de singularidades. Se

225

Deleuze, G., LS, S. Paulo, Perspectiva, 2003, p. 126. 226

Deleuze, G., LS, op cit, p. 127. 227

Como o exemplo do erro, Deleuze pergunta-se quem é que troca Teeteto por outro? Quem é que diz bom dia Teodoro a Teeteto? Só o míope. Este é o exemplo do erro? Como pode ser este o inimigo do pensamento?

228

Deleuze, G., DR, op cit, p. 272. 229

bem que um problema não exista fora das suas soluções, não deve desaparecer sob estas, «insiste e persiste nas soluções que o recobrem»230.

Por fim, o problema sustém duas instâncias: é transcendente pois «consiste num sistema de ligações ideais ou de relações diferenciais entre elementos genéticos»231; e «imanente porque estas ligações ou relações encarnam-se nas correlações actuais que não se assemelham a elas e são definidas pelo campo de solução»232.

Esta última característica ou postulado da Imagem do Pensamento é como que a apresentação do resultado, do encadear dos anteriores, o resultado da aplicação da Imagem do Pensamento gera um tipo de saber e um tipo de aprender.

A crítica indica a subordinação do aprender ao saber e da cultura ao método. Segundo a imagem do pensamento dogmática aprender é um acto subjectivo operado face ao problema, enquanto que saber designa a posse antecipada, implícita em pressupostos impensados, em axiomas, da regra das soluções.

Para Deleuze aprender e pensar não passa por aplicar fórmulas nem por reconhecer os mesmos problemas e suas respectivas soluções canónicas. «Aprender é penetrar no universal das relações que constituem a Ideia e nas singularidades que lhes correspondem»233.

Por outra ordem, os problemas estão em relação com os signos, são os signos que originam o problema desenvolvendo-se num campo simbólico. Por sua vez, as faculdades no seu uso paradoxal remetem às Ideias que percorrem todas as faculdades, despertando- as, e oferecendo o sentido à linguagem. Assim, aquele que aprende eleva as suas faculdades ao exercício transcendente, procurando fazer nascer na sensibilidade a possibilidade de apreender aquilo que só pode ser sentido.

Estes postulados formam a imagem dogmática do pensamento. Impedem o pensamento e, dessa forma, impedem a diferença e a repetição. A possibilidade de outra via seria a de um pensamento que nasce no próprio pensamento, esse pensamento é o pensamento sem imagem (isto é, sem pressupostos da doxa): o pensamento perspectivista. Esta análise que por resumir o modelo do pensamento em poucos postulados parece parodiar a sua própria complexidade serve de meio, de base para preparar uma resposta própria, a sua resposta ao que seria pensar.

230

Deleuze, G., DR, op cit, p. 275. 231

Deleuze, G., DR, loc cit. 232

Deleuze, G., DR, loc cit. 233

“(…) uma filosofia isenta de pressupostos de qualquer espécie em vez de se apoiar na Imagem moral do pensamento, ela tomaria como ponto de partida uma crítica radical da Imagem e dos «postulados» que ela implica. Ela encontraria a sua diferença ou o seu verdadeiro começo não num acordo com a Imagem pré-filosófica, mas numa luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosofia.”234

O que é pensar?

O postulado da recognição é apenas o primeiro passo na direcção do postulado muito mais amplo que é o da representação porque o Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes quatro elementos que definem a representação e é a unidade das faculdades. Esta estrutura do pensar sujeito à representação, que funciona como recognição obtida pelo acordo das faculdades e apresentada na organização conceptual da realidade construída pela forma da identidade no elemento da representação, é tida por Deleuze como impossibilitante do pensar. Esta crítica permite vislumbrar já a futura proposta de descentramento da figura do sujeito que o perspectivismo vai exigir. Esta crítica leva-nos também a perguntar o que será para Deleuze pensar.

O pensamento necessita de uma estranheza, de uma violência original de forma a ser empurrado para fora do seu estado natural. O pensamento tem portanto uma outra natureza, que tem origem no «arrombamento, do fortuito»235 e na contingência de um encontro com aquilo que o força a pensar. Desta forma, as condições da criação são a destruição da imagem do pensamento que se pressupõe a si própria e a génese do acto de pensar no próprio pensamento, nunca no elemento da representação.

A forma do senso comum mantém as faculdades num exercício convergente de recognição, todavia a violência que força a pensar quebra a forma que mantém o pensamento no elemento empírico da doxa, elevando o exercício das faculdades à sua enésima potência, ao elemento do paradoxo no seu exercício transcendente e não mais da representação. O paradoxo é portanto o modelo do pensar, o modelo do sentido e, antes de tudo, o modelo do real. O paradoxo é um movimento do sem sentido, do caos para a criação de um novo sentido. É a «máquina de guerra» contra a doxa236 do senso comum. Indica uma direcção única para o pensamento, a boa direcção, uma via única de colaboração das faculdades.

234 Deleuze, G., DR, op cit, p. 229. 235 Deleuze, G., DR, op cit, p. 240. 236

Viu-se que um dos postulados (o segundo) da imagem de pensamento clássica da doxa da filosofia é o do senso comum que consiste numa boa repartição, numa determinação do pensamento através duma repartição do empírico e do transcendental. Esta repartição das faculdades segundo a medida do senso comum segue o modelo da recognição que se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objecto como sendo o mesmo.

“Não é de surpreender que o paradoxo seja a potência do inconsciente: ele passa-se sempre no entre-dois das consciências, contra o bom senso ou às costas da consciência, contra o senso comum.”237

Porém, o paradoxo forma-se num pensamento que vai nas duas direcções em simultâneo (referência ao princípio de incerteza da física moderna). É uma máquina que permite afirmar destruindo, na medida em que implica um caos que é uma destruição de sentido e, a própria anulação do sentido é produtora de um novo sentido, remetendo para um plano, que não é o plano empírico dos conceitos de origem, imprime um outro movimento ao conceito (remete à dobra nietzschiana onde a afirmação de uma vontade tem um poder paradoxal porque o seu afirmar é a destruição de outra vontade, de outra força)

O paradoxo obriga o pensamento a ir nos dois sentidos, ao mesmo tempo, criando um sentido paradoxal em que cada uma das vertentes ou dimensões cria um novo sentido, ou seja, estes múltiplos criam séries de diferenças, séries diferenciais de sentido.

“De tal forma que a potência do paradoxo não consiste absolutamente em seguir a outra direcção mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direcções ao mesmo tempo. O contrário do bom senso não é o outro sentido (…)”238

O paradoxo gera séries diferenciais que são postas num acordo discordante pelo

percursor sombrio239. 237 Deleuze, G., LS, op cit, p. 82. 238 Deleuze, G., LS, op cit, p. 79. 239

O conceito de percursor sombrio ou atractor estranho é inspirado na física, especificamente na teoria do caos. Esta teoria, de modo simplificado, trata de sistemas complexos e dinâmicos deterministas que apresentam um fenómeno fundamental de instabilidade chamado sensibilidade às condições iniciais que, os torna imprevisíveis a longo prazo. A consequência desta instabilidade dos resultados é que mesmo sistemas determinísticos (os quais tem resultados determinados por leis de evolução bem definidas) apresentem uma grande sensibilidade a perturbações e erros, o que leva a resultados que são, na prática, imprevisíveis ou aleatórios, ocorrendo ao acaso. Mesmo em sistemas nos quais não há ruído, erros microscópicos na determinação do estado inicial e actual do sistema podem ser amplificados pela não-linearidade ou pelo grande número de interações entre os componentes, levando a um resultado aleatório. É o que se chama Caos Determinístico. Daí se gerou a expressão que postula: «o bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode desencadear um furacão em Nova Yorque». Um conjunto de objetos estudados que se inter-relacionem é um sistema, entre os sistemas consideram-se duas categorias: lineares e não-lineares, que divergem entre si na sua relação de causa e efeito. Na primeira, a resposta a um distúrbio é diretamente proporcional à intensidade deste. Já na segunda, a resposta não é necessariamente proporcional à intensidade do distúrbio, e é esta a categoria de sistemas que servem de objeto à teoria do caos, mais conhecidos como sistemas dinâmicos não-lineares. Esta teoria estuda o comportamento aleatório e imprevisível dos sistemas, mostrando uma faceta em que podem ocorrer irregularidades na uniformidade da natureza como um todo. Isto ocorre a partir de pequenas alterações que aparentemente nada têm a ver com o evento futuro, alterando toda uma previsão física dita precisa. Uma das ideias centrais desta teoria, é que os comportamentos casuais (aleatórios) também são governados por leis e que estas podem predizer dois resultados para uma entrada de dados. O primeiro é uma resposta ordenada e lisa, sendo que o futuro dos eventos ocorre dentro de margens estatísticas de erros previsíveis. O segundo é uma resposta também ordenada, onde porém a

“E, em primeiro lugar, qual é este agente, esta força que assegura a comunicação? O raio fulgura entre intensidades diferentes mas é precedido por um percursor sombrio, invisível, insensível, que lhe determina, de antemão, o caminho revertido, como no vazio. Do mesmo modo todo o sistema contém o seu percursor sombrio, que assegura a comunicação das séries que o debruam.”240

“Ao contrário, é o fortuito ou a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ela força a pensar. Não é uma amizade como a do semelhante com o Mesmo, ou ainda unindo opostos, que liga a sensibilidade ao sentiendum. Basta o percursor sombrio, que faz com que o diferente como tal se comunique e o faz comunicar-se com a diferença: o sombrio percursor não é um amigo.”241

Há uma Discordância das faculdades, no ponto em que há uma tripla violência sobre cada faculdade, inicialmente daquilo que a força a exceder-se, depois daquilo que ela é forçada a apreender e, finalmente, daquilo que só ela pode apreender - o inapreensível no exercício empírico do senso comum. Esta violência que leva as faculdades à sua enésima potência é uma intensificação: vai-se do intensivo ao pensamento. Este encontro só pode ser produzido com base num acordo discordante das faculdades, portanto, o uso transcendente das faculdades é um uso intensivo e paradoxal.

“É uma cadeia forçada e quebrada que percorre tanto os pedaços de um eu dissolvido como as bordas de um Eu fendido. O uso transcendente das faculdades é, propriamente falando, um uso paradoxal, que se opõe a que o seu exercício se dê sob a regra de um senso comum. Além disso, o acordo das faculdades só pode ser produzido como um acordo discordante, pois cada uma só comunica à outra a violência, que a coloca na presença da sua diferença e da sua divergência com todas.”242

Nestas condições é possível reverter os efeitos da submissão do pensamento ao elemento da representação, sendo que os quatro elementos da representação (a identidade no conceito, a oposição na determinação do conceito, a analogia no juízo e a semelhança no objecto) são entendidos agora como efeitos produzidos por uma forma de

resultante futura dos eventos é de superfície é áspera, caótica, ou seja, ocorre uma contradição neste ponto

onde é previsível que os resultados de um determinado sistema serão caóticos. Novamente se nota a influência da ciência no pensamento deleuziano pois esta referência aos fenómenos determinísticos e caóticos associada à metáfora de liso/estriado é por ele usada em Mil Planaltos (espaço liso/espaço estriado). Quando o conjunto limite positivo de várias trajetórias for o mesmo, esse conjunto limite designa-se atractor. As trajetórias caóticas não têm nenhum conjunto limite, mas costumam aparecer na proximidade de um conjunto de pontos de equilíbrio (ou ciclo) atrativos e repulsivos, designados atrator estranho. A conjugação de atração e repulsão dá origem ao comportamento caótico. Um atrator é um ponto (ou o conjunto dos pontos atratores, dependendo o contexto) para o qual toda órbita que passar por um ponto suficientemente próximo converge para o ponto, isto é, fica indefinidamente próximo bastando para isso esperar um tempo suficiente. Por exemplo, uma bola rolando por uma superfície plana com atrito pára. O atractor desse sistema dinâmico é o conjunto dos pontos (ou estados) em que a bola está parada. Analogamente o atractor estranho ou percursor sombrio em Deleuze é o elemento que serve de ligação entre as várias linhas do pensamento, aquilo que as coloca em ligação, que as faz ressoar, que as convoca a construir um sentido.

240

Deleuze, G., DR, op cit, p. 210. 241

Deleuze, G., DR, op cit, p. 249. 242

apresentação da diferença e não as condições reais que subordinam a diferença fazendo dela uma figura do representado.

Da sensibilidade à imaginação, da imaginação à memória, da memória ao pensamento - quando cada faculdade disjunta comunica à outra a violência que a leva ao seu limite próprio - é de cada vez uma livre figura da diferença que desperta a faculdade, e a desperta como o diferente desta diferença. Tem-se assim a diferença na intensidade, o diferencial no pensamento.

O meio do pensamento (le milieu) não é o da recognição onde voluntariamente funcionam as faculdades, mas é o involuntário que garante a necessidade daquilo que força a pensar. É o fortuito que origina o encontro e não o amigo do saber.

O personagem conceptual que permite o encontro é o percursor sombrio243, que permite que o diferente, como tal, se comunique com a diferença. O percursor sombrio pré- existe ao pensar e é independente dele, tem um estatuto transcendental, (o mesmo estatuto do esquema da imaginação em Kant) o poder de pensar contra a doxa depende desta condição pré-existente ao pensamento.

“(…) porque o invisível percursor se dissimularia a si próprio e ao seu funcionamento e, ao mesmo tempo, dissimularia o em-si como a verdadeira natureza da diferença. Dadas duas séries heterogéneas, duas séries de diferenças, o precursor age como o diferenciante destas diferenças. É assim que ele as coloca em relação imediatamente, por sua própria potência: ele é o em-si da diferença ou o «diferenciantemente diferente» (…)”244

As séries divergentes originadas pelo paradoxo, circulam num plano ou em vários planos, contudo, é preciso que não divirjam demasiado sob pena de não ser possível o encontro produtor de sentido. É necessário afirmar que as séries apenas produzem sentido, pois divergem e porque divergem em si mesmas, são séries de diferenças e produzem diferenças em si mesmas, contudo, se estão demasiado afastadas é impossível ao percursor sombrio operar. É uma questão claramente deleuziana: Como manter a consistência sem largar o infinito? Como manter a divergência sem esta ser demasiada?

O percursor sombrio descreve o percurso inverso ao das séries que divergem e divergem de si mesmas, percorre o percurso inverso, invisível, insensível fazendo rebentar o raio que repercute as séries e forma uma relação de não-relação entre uma diferença e outra. O percursor sombrio é o diferenciante das diferenças.

O paradoxo cria o movimento da diferença proliferante. Cada série de diferenças faz ecos sobre outras fazendo-as divergir mais (proliferação de simulacros e de perspectivas),

243

Deleuze, G., DR, op cit, p. 249. 244

o que faz divergir é que uma diferença no outro convenha com uma diferença na diferença. Desta forma, a identidade entre séries, entre conceitos, é apenas segunda, é apenas um efeito da diferença entre elas.

É, assim, que, por fim, o pensamento é concebido como criação e não como resultado da aplicação de um método. Evocando a correspondência de Antonin Artaud com Jacques Rivière, Deleuze apresenta o problema de Artaud245: não é orientar o pensamento, nem dar acabamento à expressão do que se pensa, nem adquirir aplicação e método, mas, chegar, sem mais, a pensar alguma coisa. Esta é a maior obra. O pensar não é inato mas deve ser criado, engendrado no pensamento e a filosofia é a teoria das multiplicidades pois é produtora de diferença, cada anel de diferenças remete e reenvia para outros tornando a diferença proliferante - eis a imagem de um perspectivismo segundo Deleuze.

“(…) pensar não é inato, mas deve ser engendrado no pensamento. Sabe que o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer com que nasça aquilo que ainda não existe (…). Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar, «pensar» no pensamento.”246

245

A referência a Artaud, que é feita por Deleuze e por Derrida, não é concordante. Em L´écriture et la

différence, Derrida dedica o capítulo Le Théatre de la cruauté et la clôture de la représentation, a Artaud, cf.

Derrida, J., L´écriture et la différence, Paris, Seuil, 1979, p. 341. Por sua vez, Deleuze em Diferença e

Repetição de alguma forma surge com outra perspectiva no seu capítulo intitulado Le vrai mouvement, le

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