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Platão os simulacros e o problema da representação

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 50-60)

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana 12.1 A Filosofia e a máscara

1.2.2. Platão os simulacros e o problema da representação

A questão do simulacro é claramente a génese da questão do perspectivismo em Deleuze (o seu início ou ensaio): se não há uma identidade e só há cópias que não representam, que não se referem à ideia, então só há perspectivas sobre o real. Esta é uma formulação, ainda desadequada e insatisfatória para Deleuze (a do simulacro), ainda assim uma primeira formulação da possibilidade das múltiplas perspectivas.

Vimos que o aspecto selectivo e ético do Eterno Retorno permite a produção da diferença que se «esconde» na semelhança da repetição que na verdade produz simulacros e não cópias.

“A simulação assim compreendida não é separável do eterno retorno; pois é no eterno retorno que se decidem a reversão dos ícones ou a subversão do mundo representativo. Aí, tudo se passa como se um conteúdo latente se opusesse ao conteúdo manifesto. O conteúdo manifesto do eterno retorno pode ser determinado conforme ao platonismo em geral: ele representa então a maneira pela qual o caos é organizado sob a acção do demiurgo e sobre o modelo da Ideia que lhe impõe o mesmo e o semelhante. O eterno retorno, neste sentido, é o devir-louco controlado, monocentrado, determinado a copiar o eterno. (…) Ele instaura a cópia na imagem, subordina a imagem à semelhança.”113

“E que, entre o eterno retorno e o simulacro, há um laço tão profundo, que um não pode ser compreendido senão pelo outro. O que retorna são as séries divergentes enquanto divergentes, isto é, cada qual enquanto desloca a sua diferença com todas as outras e todas enquanto complicam a sua diferença no caos sem começo nem fim.”114

Todavia o que significam estes simulacros numa ontologia da Diferença e não mais da Identidade lógica? Pensar-se-ia que falar de simulacro implicaria, antes de tudo, referir o que seria o seu oposto, o real, contudo não é esse o caso na medida em que não é essa a natureza do conceito de simulacro, este constitui uma realidade diferente daquela que simula.

O simulacro é um signo que só se refere a si mesmo, falar de simulacro é precisamente falar daquilo que não remete a um modelo original. A noção de simulacro deve ser entendida como uma construção destituída de um modelo original. O simulacro é uma diferença de diferenças, como uma ramificação, uma improvisação, talvez semelhante às características da Natureza que não produz duas gotas de água iguais. Por simulacro, não devemos entender uma simples imitação mas o acto pelo qual a ideia de modelo é revertida. 113 Deleuze, G., LS, op cit, p. 269. 114 Deleuze, G., LS, op cit, p. 270.

“Os simulacros são os sistemas em que o diferente se refere ao diferente pela própria diferença. O essencial é que não encontramos nesses sistemas qualquer identidade prévia, qualquer semelhança interior. Tudo é diferença nas séries e diferença de diferença na comunicação das séries. O que se desloca e se disfarça nas séries não pode e não deve ser identificado, mas existe, age como o diferenciador da diferença.”115

Ao inverter o papel da categoria de Identidade e de Diferença, Deleuze simbolicamente tentou operar a passagem para uma nova forma de pensar, criando uma nova imagem do pensamento. Esta subtil correcção ontológica permitiu-lhe realizar aquilo que pretendia assim como finalizar um projecto nietzschiano, o da inversão do platonismo116. O projecto de transmutação dos valores de Nietzsche inverte o platonismo ao negar a existência do mundo ideal e ao propor o mundo “sensível”, dos simulacros, na terminologia deleuziana, como único meio para conhecer, e justificar a realidade:

“ (…) (3) O oposto deste mundo fenomenal não é o «mundo real», mas o mundo amorfo e inajustável que consiste no caos das sensações - quer dizer, outro género de mundo fenomenal, um mundo que nos é «incognoscível» ”.117

“O ser e a aparência, encarados psicologicamente, não admitem qualquer «Ser-em-si», nenhum critério de «realidade», mas apenas graus de aparência, medidos segundo a força da simpatia que sentimos pela aparência.”118

O processo de inversão consiste em identificar e actualizar dois conceitos: niilismo e

vontade de poder. Identificar a causa da decadência da humanidade no niilismo e negar os

valores propostos por Platão, mediante a actualização do conceito de vontade de poder que possibilita a criação de novos valores. Nietzsche opõe-se aos juízos morais tradicionais, por entender que as suas regras reduzem a capacidade humana de conhecer o mundo, esta negação é fundamentada no facto do pensamento nietzschiano se opor fundamentalmente a uma redução das perspectivas que a vida oferece. Porém, no entender dos críticos, Nietzsche pretende inverter a metafísica platónica promovendo o

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Deleuze, G., DR, op cit, p. 471. 116

Em Nietzsche um trabalho de comentário à Filosofia, Deleuze indica que a relevância do pensamento de Nietzsche é ter criado uma nova imagem do pensador e do pensamento ao estabelecer o elemento da filosofia no eixo do sentido e do valor. Nietzsche integrou na filosofia, dois meios de expressão que são o aforismo e o poema que inauguram uma nova forma de filosofia, que parece assistemático e caótico, mas que na realidade operam mudanças radicais. Ao ideal do conhecimento e à descoberta do verdadeiro e das essências, Nietzsche opõe a interpretação e a avaliação (ferramentas que serão a base de um tipo de perspectivismo). A interpretação fixa o sentido, parcial e fragmentário de um fenómeno que é dominado por forças e a avaliação determina o valor hierárquico dessa interpretação, desse sentido, totalizando os fragmentos sem suprimir a sua pluralidade. O filósofo é o intérprete e o fisiólogo, é o médico que analisa os fenómenos enquanto sintomas das forças (activas ou reactivas) que se apoderam deles e lhes conferem uma tonalidade, um caminho. Enquanto avaliador, o filósofo é o artista que considera e cria perspectivas, o filósofo é o legislador. Desta forma Nietzsche, recupera a velha imagem grega do pensador pré-socrático, fisiólogo que é o artista, intérprete e avaliador do mundo.

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Nietzsche, F., Vontade de Poder, op cit, p. 290. 118

ente sensível, o mundo da vida e do devir, à posição do ente verdadeiro, e deprecia o ser ao nível da pura ilusão, do erro, do que não tem qualquer efetividade. Todavia, nesta inversão, Nietzsche continua determinado por aquilo que inverte, isto é, pela metafísica e pelo platonismo, pois mantém os conceitos operativos. A reviravolta do platonismo, no sentido conferido por Nietzsche, de que o sensível passa a constituir o mundo verdadeiro e o supra-sensível o não verdadeiro, permanece no interior da metafísica, ainda que Nietzsche pretendesse anular o sentido que a filosofia tomou a partir de Sócrates119, o sentido do niilismo e do ressentimento. Aceitando ou não esta crítica, Deleuze pretende com a noção de simulacro ultrapassar a prisão lógica dos conceitos metafísicos.

O tema do simulacro remete, naturalmente, a Platão, filósofo que estruturou o conceito de mimesis como imitação da natureza e para o dualismo e a sua fundacional oposição insuperável entre o mundo sensível e o mundo das Ideias. É conhecida a perseguição de Platão aos poetas no texto da República, exactamente devido a esta convicção no dualismo e no erro da função do sensível no conhecimento, Platão acusou os poetas dado que a arte produziria apenas imitação da imitação, aliás, toda a arte seria um desvio em relação à essência, uma mentira, que apontaria para o mero simulacro.

O que Deleuze propõe, questionando o modelo platónico da mimesis e do simulacro, é uma “reversão do platonismo”, promovendo o triunfo do simulacro, cuja natureza nega tanto o original quanto a cópia120. Porém o simulacro não permaneceria preso à lógica dualista metafísica, mas partiria para uma nova forma de pensamento pois não se fundaria na inadequação entre o simulacro e a representação; o simulacro não tem o seu fundamento na adequação do conceito a um dado puro uma vez que esse dado pode nem existir fora do pensamento que o concebe.

“O decisivo aqui é que Nietzsche com o nome de perspectivismo descobre o verdadeiro carácter escondido de todo o conhecer representacional”121

“A representação deixa escapar o mundo afirmado da diferença. A representação tem apenas um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade;

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Cf. Nietzsche, F., O Nascimento da Tragédia, op cit, p. 104, Nietzsche afirma que Sócrates ao desvalorizar a vida constitui um vortex de viragem da História Universal, sendo pois absolutamente necessário operar a reversão deste modelo de pensamento, uma reapreciação-transmutação total dos valores.

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Parte do interesse de Nietzsche, partilhado por Deleuze, de eliminar o dualismo se prende com uma vontade de verdade diferente daquela atitude que representa o real mediante a Ideia. Conceber um mundo perfeito é para Nietzsche uma forma de fuga criando um mundo glorioso que afaste o pensamento do presente e do real duro, assim, é uma forma de niilismo que pretende diminuir com esse movimento simbólico a tensão de viver no presente: “a temática do mimentismo como prática poiética leva-nos a considerá-la como uma resposta adaptada à resolução de tensões via um mecanismo de mediação necessariamente simbólico que retira o organismo deste estado de presente permanente que caracteriza a angústia.” Cf. Feron, O., O

intervalo de contingência - Hans Blumenberg e outros modernos, op cit, 2011, p. 26.

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mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento implica, por sua vez, uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de vista (…)”122

Assim, não é o afastamento da realidade que perverte a semelhança do simulacro com a ideia e sua fidelidade ao modelo, mas é a sua natureza, dado que o simulacro não é cópia de absolutamente nada123.

Sabendo que o simulacro surge do movimento selectivo e ético do eterno retorno e portanto da diferença, este torna-se numa diferença em si, toda a semelhança é abolida, sem que se possa indicar um original e uma cópia.

“É preciso que cada termo de uma série, sendo já diferença, seja colocado numa relação variável com outros termos e constitua, assim, outras séries desprovidas de centro e de convergência. É preciso afirmar a divergência e o descentramento na própria série. Cada coisa, cada ser deve ver a sua própria identidade absorvida na diferença, cada qual sendo apenas uma diferença entre as diferenças. É preciso mostrar a diferença diferindo.”124

É neste movimento do pensamento do simulacro que Deleuze procura as condições da experiência real e de um empirismo transcendental,125 que no seu entender:

“De modo algum o empirismo é uma reacção contra os conceitos, nem um simples apelo à experiência vivida. Pelo contrário, empreende a mais louca criação de conceitos, uma criação jamais vista ou ouvida. O empirismo (…) trata o conceito como o objecto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como um Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os «aqui» e os «agora» sempre novos diversamente distribuídos. Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas em estado livre e selvagem (…) Eu faço, refaço e desfaço os meus conceitos a partir de um horizonte móvel, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia.”126

Nesta perspectiva o empirista faz e desfaz os seus conceitos mediante um encontro entre diferentes127, um horizonte móvel que é a imagem do pensamento que cria nesse pensar.

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Deleuze, G., DR, op cit, p. 121.

123 Conclusão semelhante à deleuziana tem Vattimo: “Para o niilista completo, nem a liquidação dos valores supremos é o estabelecimento ou restabelecimento de uma situação de “valor”, no sentido forte; não é uma reapropriação porque o que se tornou supérfluo é exactamente o “próprio” (mesmo no sentido semântico do termo). “O mundo verdadeiro tornou-se fábula”- escreve Nietzsche no Crepúsculo dos Deuses. Não é porém o “pretenso” mundo verdadeiro, mas o mundo verdadeiro tout court. E se Nietzsche acrescenta que, assim, a fábula já não o é porque não existe nenhuma verdade que a revele como aparência e ilusão, a noção de fábula não perde todo o seu sentido. Ela proíbe, de facto, o atribuir às aparências que a compõem a força coerciva que pertencia ao ontos on metafísico.” Cf. Vattimo, G., O fim da Modernidade - Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 25.

124 Deleuze, G., DR, op cit, p. 122. 125 Cf. Deleuze, G., DR, op cit, p. 37. 126 Deleuze, G., DR, op cit, pp. 37-38.

127 Sobre a noção de «encontro»: “Une rencontre est un affect, autrement dit un signe qui fait communiquer les points de vue et les rend sensibles en tant que points de vue.” Cf. Zourabichvili, F., Deleuze, Une

Em Deleuze o empirismo torna-se transcendental quando:

“(…) apreendemos directamente no sensível o que só pode ser sentido, o próprio ser do sensível: a diferença, a diferença de potencial, a diferença de intensidade como razão do diverso qualitativo. É na diferença que o fenómeno fulgura, que se explica como signo, e é nela que o movimento se produz como «efeito»”128.

“Qual é o ser do sensível? De acordo com as condições desta questão, a resposta deve designar a existência paradoxal de «alguma coisa» que não pode ser sentida (do ponto de vista do exercício empírico) e que, ao mesmo tempo, só pode ser sentida (do ponto de vista do exercício transcendente).”129

“É a intensidade, é a diferença na intensidade que constitui o limite próprio de sensibilidade. Ela possui também o carácter paradoxal deste limite: ela é o que só pode ser sentido, aquilo que define o exercício transcendente da sensibilidade, na medida em que ela faz sentir e, por isso desperta a memória e força o pensamento.”130

Nesta forma de pensar e criar encontra-se a realidade vivida num domínio sub- representativo. Esta noção de um empirismo transcendental e de um imanentismo do sentido e do perspectivismo é uma fortíssima inspiração nietzschiana:

“Não temos categorias que nos permitam separar um «mundo como coisa em si» dum «mundo de aparência». Todas as nossas categorias racionais têm uma origem sensual: são deduções do mundo empírico. «A alma», «o ego» - a história destes conceitos revela que também aqui a mais velha distinção («spiritus», «vida») prevalece…

Se não há nada de material, tão-pouco pode haver algo de imaterial. O conceito já não significa nada.”131

Abordar a questão da representação132 é perceber a mecânica da reversão do platonismo que para alguns filósofos constituiu a tarefa da filosofia moderna, mesmo

Philosophie de L´Évenement, Paris, PUF, 1996, p. 43-44. Esta noção surge claramente na obra sobre

Proust : “Ce qui force à penser, c´est le signe. Le signe est l´object d´une rencontre ; mais c´est la contingence de la rencontre qui garanti la nécessité de ce qu´elle donne à penser.” Cf. Deleuze, G., PS, Paris, PUF, 2003, p. 118. 128 Deleuze, G., DR, op cit, p. 123. 129 Deleuze, G., DR, op cit, p. 382. 130 Deleuze, G., DR, op cit, p. 383. 131

Nietzsche, F., Vontade de Poder, op cit, p. 254. 132

A abordagem ao problema da representação começou numa obra inicial de comentário em que Deleuze apresenta a sua interpretação da filosofia de Hume: Empirismo e Subjectividade. A noção de representação segundo o empirismo de Hume devia ser analisada à luz da impossibilidade de haver uma representação como apresentação num conceito de um objecto exterior, muito simplesmente porque o entendimento não tem legitimidade para tomar decisões sobre a existência do dado. Este problema do exterior ou de se saber como o dado é dado (na percepção) é o fundamental para se compreender o empirismo: “Hume não faz uma crítica das relações, mas uma crítica das representações, justamente porque estas não podem apresentar as relações. Fazendo da representação um critério, colocando a ideia na razão, o racionalismo colocou na ideia aquilo que não se deixa constituir no primeiro sentido da experiência, aquilo que não se deixa dar sem contradição numa ideia, a generalidade da própria ideia e a existência do objecto (…) ele transferiu a determinação do espírito aos objectos exteriores, suprimindo, para a filosofia, o sentido e a compreensão da prática e do sujeito. De facto, o espírito não é razão; esta é que é afecção do espírito. Nesse sentido, a razão será chamada instinto, hábito, natureza.” Cf. Deleuze, G., ES, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 22.

conservando muitas características platónicas. Em Nietzsche, tal feito seria mediante uma filosofia do sentido e do valor e em Deleuze através do movimento da repetição que gera o diferente: «Então a mais exacta repetição, a mais rigorosa repetição, tem, como correlato, o máximo de diferença (…)»133

Na análise de Deleuze, a Ideia platónica funciona como uma presença que só pode ser evocada no mundo em função do que não é representável nas coisas, e é esta a sua força, pois é pela divisão ou participação nos objectos sensíveis que reúne toda a potência dialéctica em proveito de uma verdadeira filosofia da diferença e que mede, simultaneamente, o platonismo e a possibilidade de o reverter, porque as cópias imperfeitas ou simulacros são exactamente aquilo que é verdadeiro e não a ilusão abstracta da Ideia que os originaria. Platão assinalou que o objectivo supremo da dialéctica seria o estabelecer a diferença e, por sua vez, Deleuze precisa que a diferença não está entre a coisa e o simulacro. O simulacro é a forma superior e o difícil é atingir o seu próprio simulacro, o seu estado de signo na coerência do eterno retorno134.

“O eterno retorno é, pois, efectivamente o Mesmo e o Semelhante, mas enquanto simulados, produzidos pela simulação, pelo funcionamento do simulacro (vontade de potência). É neste sentido que ele subverte a representação, que destrói os ícones: ele não pressupõe o Mesmo e o Semelhante, mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única semelhança do desemparelhado. Ele é o fantasma único para todos os simulacros (o ser para todos os entes). (…) Pois o Mesmo e o Semelhante tornam-se simples ilusões, precisamente a partir do momento em que deixam de ser simulados.”135

Se todo o platonismo é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre a coisa em si mesma e os simulacros, subordinando a diferença em si mesma, relacionando-a com um fundamento, então reverter o platonismo significa «recusar o primado do original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem»136. Ora, se não há um modelo com base numa categoria metafísica de identidade, não há a possibilidade de reconhecer/representar o original e a sua predominância sobre a cópia, logo não faz sentido a figura da representação porque não há original nem cópias, apenas simulacros137.

133 Deleuze, G., DR, op cit, p. 39. 134 Deleuze, G., DR, op cit, p. 137. 135 Deleuze, G., LS, op cit, p. 270. 136 Deleuze, G., DR, op cit, p. 136. 137

A crítica à noção de representação não é propriamente uma novidade na filosofia, podemos recuar até ao sofista Górgias e ao seu escrito Sobre o não-ser, ou Sobre a natureza do qual se tem dois registos, um do Sexto Empírico e outro do pseudo-Aristóteles, Cf. Romeyer-Dherbey, G., Os Sofistas, Lisboa, Edições 70, 1986, p. 38. O tratado do Não-ser põe em questão a ontologia de Parménides não pretendendo demonstrar um niilismo radical mas antes a inutilidade da ideia de Ser parmenidiano, a inutilidade da ideia de unidade.

A leitura de Diferença e Repetição pode suscitar neste ponto uma perplexidade no que toca à proposta deleuziana de pensar sem recorrer a representações, porém a sua filosofia não é uma mera oposição à metafísica clássica: se atentarmos que Deleuze chama representação à relação entre o conceito e o seu objecto e que quando critica a ideia de representação está a designar o tipo de movimento do pensamento de uma filosofia que ele pretende rebater (a filosofia da identidade que tem origem na filosofia platónica e no conceito platónico de Ideia), podemos perceber que a natureza do conceito de simulacro evita a crítica.

O simulacro é a única noção que pode funcionar numa filosofia construtivista pois sugere que não havendo uma identidade, um sentido objectivo único do real mas apenas tentativas, construções de conceitos por pensadores mais interessantes138, mais apaixonados, mais democráticos, nenhum serve decisivamente como referência para a identidade ou para uma verdade fixa que teria mais uma função moral e domesticadora do

Para isso Górgias, desenvolve uma série de antinomias da ontologia que se estruturam com base em três

teses: 1 Nada existe. 2 Mesmo que o ser exista é incognoscível. 3 Se porventura o ser é cognoscível então é dado num modo de conhecimento que é incomunicável a outrem (e portanto, depreende-se, é inútil tanto tentar obtê-lo como trará pouca utilidade a quem o possuir). O relevante aqui situa-se na segunda tese que diz respeito precisamente à representação, esta pretende que se um tal Ser (Uno) existisse, seria incognoscível, dado que, argumenta Górgias, as coisas que vemos e ouvimos são existentes apenas porque as representamos em imagens, nomes e ideias, portanto existem porque são representadas, porém a própria representação não garante a realidade daquilo que representa, não é um espelho ou uma cópia traduzida para a linguagem ou para o pensamento do que é o real. Górgias dá o exemplo de se poder representar mesmo aquilo que não existe tal como um combate de carros (puxados por cavalos, entenda-se) em pleno mar, logo a representação do ser não proporciona o ser, e o conhecimento é assim impossível. Segundo a teoria do conhecimento de Górgias, o que temos disponível é-nos dado na percepção que só garante uma certa dimensão das coisas e não aquilo que elas são. Pensa-se que esta ideia segue a teoria de Empédocles dos eflúvios, cada coisa irradia eflúvios e cada sentido disso que é emanado constitui uma certa dimensão da coisa. O mecanismo assim explicado justifica que haja uma grande diversidade de mensagens sensoriais

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 50-60)