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Cogitatio natura universalis

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 67-69)

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana 12.1 A Filosofia e a máscara

1.2.4. O que é uma imagem do pensamento segundo Gilles Deleuze

1.2.4.1. Cogitatio natura universalis

O primeiro postulado apresenta-se sob a forma do princípio da Cogitatio natura universalis, no qual o pensamento, enquanto exercício natural de uma faculdade tem uma afinidade natural com o verdadeiro. O princípio revela-se sob um duplo aspecto: há uma boa vontade do pensador (o pensador quer a verdade) e uma natureza recta do pensamento (o pensamento dirige-se naturalmente para a verdade)167.

“Este elemento consiste somente na posição do pensamento como exercício natural de uma faculdade, no pressuposto de um pensamento natural, dotado para o verdadeiro, em afinidade com o verdadeiro, sob o duplo aspecto; aspecto de uma boa vontade do pensador e de uma natureza recta do pensamento. (…) A forma mais geral da representação está, pois, no elemento de um senso comum como cogitatio natura universalis, a partir do qual a filosofia tem o seu ponto de partida.”168

É porque todos pensam naturalmente que se presume que todos saibam o que significa pensar. Este pressuposto pertence ao senso comum que representa todos os pensadores sob o princípio da natureza recta e da boa vontade, permitindo assim o ponto de partida da filosofia.

A crítica de Deleuze revela os postulados como temas que permanecem implícitos e que sendo entendidos de forma pré-filosófica permitem construir uma imagem do pensamento pré-filosófica e natural fundada no mais puro elemento do senso comum. A partir desta imagem do pensamento têm-se estabelecido as várias filosofias.

166

Deleuze, G., DR, op cit, p. 228. 167

Esta suspeita de Deleuze sobre a relação do pensador com a verdade, a ilusão de que o pensador quer a verdade independentemente das suas consequências é uma suspeita que foi introduzida por Nietzsche [N 7] em vários pontos do seu trabalho quando procura derivar a suposta vontade de verdade da apropriação que a Vontade de Poder faz das forças reactivas do niilismo. Segundo aquele, o homem dominado pelo niilismo, o fraco não suporta a verdade dura do real pelo que tem de criar um mundo falso, um além para que a sua passagem pela vida seja suportável, essa é a verdade que é escondida por essa «suposta» vontade de verdade que aposta na metafísica. A Vontade de Poder num momento niilista, fraco leva o homem a interpretar o seu esforço de conhecer como um desejo de verdade, isto porque a Vontade de Poder visa crescer, ampliar o seu poder e isso não poderia ser feito mediante um tipo de humano que não quer ou não suporta viver. Além desta reflexão que está no seu trabalho Vontade de Poder, que analisaremos à frente, esta suspeita sobre a vontade de verdade surge significativamente em Para Além de Bem e de Mal: “A

vontade de verdade, que ainda nos irá atrair a inúmeras e arriscadas iniciativas; essa célebre veracidade da

qual até hoje todos os filósofos têm falado com veneração (...) O que será que verdadeiramente em nós deseja a «verdade»?- detivemo-nos, de facto muito tempo perante a pergunta sobre a origem desta vontade - até que acabarmos finalmente por parar por completo diante de uma pergunta ainda mais fundamental. Interrogamo-nos sobre o valor desta vontade. É certo que queremos a verdade: porque não antes a inverdade? E a incerteza? Até mesmo a ignorância? - (...) por fim quase acabou por nos parecer que este problema nunca foi colocado - que fomos os primeiros a vê-lo, a fixar o nosso olhar nele, a arriscarmo-nos face a ele? Pois contém um risco e talvez não exista risco maior.” Cf. Nietzsche, F., Para Além de Bem e de

Mal, op cit, p. 11.

168

“Os postulados em Filosofia (…) temas de proposições que permanecem implícitos e que são entendidos de um modo pré-filosófico. Neste sentido, o pensamento conceptual filosófico tem como pressuposto implícito uma Imagem do pensamento pré-filosófica e natural, tirada do elemento do puro senso comum. Segundo esta imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o que significa pensar.”169

A Imagem do Pensamento varia ao longo dos séculos segundo as filosofias, pois cada filósofo procura acrescentar-lhe um traço esperando ver-se livre dela, contudo ela resiste no implícito, é desta forma que Deleuze justifica não ter apresentado esta ou aquela imagem, mas uma só Imagem geral que constitui o pressuposto subjectivo da filosofia no seu conjunto.

“Eis porque não falamos desta ou daquela imagem do pensamento, variável segundo as filosofias, mas de uma só Imagem em geral, que constitui o pressuposto subjectivo da filosofia no seu conjunto. Quando Nietzsche se interroga sobre os pressupostos mais gerais da filosofia, diz serem eles essencialmente morais, pois só a Moral é capaz de nos persuadir de que o pensamento tem uma boa natureza, o pensador, uma boa vontade, e só o Bem pode fundar a suposta afinidade do pensamento com o Verdadeiro.”170

A Imagem do Pensamento é uma imagem dogmática ou ortodoxa, uma imagem moral pois só a moral pode persuadir que o pensamento tem uma boa natureza; o pensador tem uma boa vontade; e só mesmo o Bem pode fundar a afinidade do pensamento com o Verdadeiro; é uma crítica puramente nietzschiana [N 8]:

“471.-A hipótese de que, no fundo, as coisas procedem de modo tão moral que a razão humana só pode estar correcta é apenas fruto da bonacheirona e simplória credulidade (…) ”171

“Com Platão éramos como os ex-habitantes dum mundo inteligível de bondade, ainda na posse dum legado dos tempos antigos (…) Até Descartes tinha a noção de que, segundo uma fundamentação Cristã e moral, que incluiria a crença num bom Deus como Criador de todas as coisas, o Deus verídico garantia do juízo dos nossos sentidos. Mas para esta sanção religiosa e garantia dos nossos sentidos e da nossa razão, onde fomos desencantar o direito de confiar na existência? Que pensar tenha de ser medida da realidade - que aquilo que não poder ser matéria de pensamento não existe (…) A «verdade» é portanto mais fatal do que o erro e a ignorância porque paralisa as forças que levam ao esclarecimento e ao conhecimento. (…) é mais fácil obedecer do que examinar; é mais gratificante pensar «Eu possuo a verdade» do que ver escuridão em todas as direcções; «Paz espiritual», uma «consciência tranquila» - estas coisas são invenções

169 Deleuze, G., DR, op cit, p. 228. 170 Deleuze, G., DR, op cit, p. 229. 171

apenas possíveis desde que a «Verdade tenha sido encontrada». (…) O processo continua: toda a bondade e todo o sucesso são creditados à «verdade».172

É no contexto da crítica em Diferença e Repetição que surgem as primeiras condições de uma filosofia sem pressupostos: a necessidade de uma identificação e crítica radical de todos os pressupostos; uma luta com a imagem moral do pensamento (exemplo da luta que Nietzsche travou contra o cristianismo) e a procura de um pensamento sem imagem que teria como aliado o paradoxo e não o senso comum ou a representação. Há pensadores que escapam a essa estrutura identificada, que escapam à Imagem do Pensamento da doxa da filosofia na medida em que construíram a sua própria Imagem do Pensamento filosófica, dado que um novo plano de pensamento, é isso que interessa a Deleuze mostrar.

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 67-69)