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Qual a relação entre a repetição e a diferença? A ética do Eterno Retorno

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 34-41)

Partindo da proposta de uma filosofia crítica que se assume como um empirismo transcendental, que entende o real como fundado na figura (i)lógica do paradoxo, urge agora perguntar como se articula a ontologia ética de inspiração nietzschiana para produzir uma imagem de pensamento, uma proposta nova e libertadora.

Se a repetição é forçada logicamente a justificar a identidade como pode permitir o diferente e; se o nosso pensamento foi formado nesse jogo como podemos vislumbrar uma alternativa à explicação única da constituição do real lógico?

Deleuze propõe a figura do «entre». Entre uma repetição nua (a repetição do mesmo, vazia, a repetição da identidade) e outra dá-se uma mudança imperceptível: aquilo que é repetido já não é absolutamente igual, é um semelhante, um simulacro que progressivamente se vai afastando do original, a cópia de cópia torna-se noutra coisa de forma tão progressiva que não se dá conta até já não haver original, apenas simulacros58.

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Nietzsche, F., Vontade de Poder, op cit, p. 263.

58Vattimo menciona esta problematização deleuziana da seguinte forma: “Deleuze move-se com base nas mesmas premissas de Derrida, mas num sentido que pretende liquidar toda a possibilidade de um regresso equívoco às estruturas e à metafísica. Dos dois polos entre as quais a diferença derridiana se move, o da

“Eis que a própria diferença está entre duas repetições: entre a repetição superficial dos elementos exteriores idênticos e instantâneos que ela contrai e a repetição profunda das totalidades internas de um passado sempre variável da qual ela é o nível mais contraído.”59

Dado que cada repetição segue não numa linha recta unidimensional de cópias mas em ramificações imprevisíveis de simulacros que se combinam e multiplicam como uma raiz (o pensamento em forma de raiz que será exposto em - Rizoma 1976) de tal maneira que já há tantos simulacros de simulacros que não se pode retroceder em linha recta até ao original. A repetição é assim diferença60.

“(…) o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com o seu ponto de vista. Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o de Filebo em que “o mais e o menos vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante (…)”61

“O simulacro é o sistema em que o diferente se refere ao diferente por meio da própria diferença. Tais sistemas são intensivos; repousam, em profundidade, sobre a natureza das quantidades intensivas, que entram precisamente em comunicação através das suas diferenças.”62

“(…) por simulacro não devemos entender uma simples imitação, mas sobretudo o acto pelo qual a própria ideia de um modelo ou de uma posição privilegiada é contestada, destruída. O simulacro é a instância que compreende uma diferença em si (…)”63

arquiestrutura e do simulacro, Deleuze isola o segundo. A repetição não é a repetição de uma diferença

originária, isto é, às sempres diversas diferenças dos simulacros. A princípio a diferença tem para Deleuze o mesmo sentido que tem para Derrida: significa que toda a pretensa imediatidade é sempre já duplicação, e duplicação de um original que não existe. (…)”. Cf. Vattimo, G., As Aventuras da Diferença, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 79.

59

Deleuze, G., DR, op cit, p. 453. 60

Esta forma de explicar a diferença como resultado de um movimento selectivo de repetição afigura-se como uma tentativa de Deleuze de fugir à Dialéctica hegeliana, isto é, a noção de movimento produtor da diferença o movimento dialéctico que produz a superação ou o diferente. Não creio haver nesta estratégia de Deleuze uma inovação ou uma clara ultrapassagem do conceito hegeliano, saliento apenas que a origem desta renúncia terá talvez um propósito de afastar a ideia de metafísica; as noções de absoluto, de espírito, e de Deus. Deleuze mantém o movimento do pensamento, a ferramenta conceptual, porém retira-lhe o horizonte metafísico concedendo-lhe um horizonte humano, demasiado humano, talvez materialista dialéctico dada a sua inspiração em Marx e nos movimentos políticos e culturais que resultaram de Maio de 68. Em Hegel temos a relação de opostos da qual resulta a superação dialéctica, em Nietzsche-Deleuze temos a repetição de proposições existenciais que são filtradas, selecionadas mediante o devir, mediante uma ideia de selecção ética dado o poder «centrífugo» do eterno retorno que afasta o vil, o baixo, os valores pesados. Porém este movimento de selecção que insere a diferença numa camada subterrânea da repetição nunca se vê bem esclarecida no seu mecanismo interno, aspecto que está, por oposição, bem resolvido na dialéctica hegeliana.

61

Deleuze, G., LS, Logique du sens, Minuit, Paris, 2002,, p. 264. 62

Deleuze, G., DR, op cit, p. 440. 63

“(…) a repetição é simbólica na sua essência; o símbolo, o simulacro, é a letra da própria repetição. Pelo disfarce e pela ordem do símbolo, a diferença é compreendida na repetição.”64

A repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao constituir-se e o que só se constitui ao disfarçar-se. «Uma repetição material e nua (como repetição do Mesmo) só aparece no sentido em que uma outra repetição nela se disfarça, constituindo-a e constituindo-se a si própria ao disfarçar-se»65.

“(…) o que há de mecânico na repetição, o elemento de acção aparentemente repetido, serve de cobertura para uma repetição mais profunda que se desenrola noutra dimensão”66.

“Uma destas é a repetição do mesmo e não tem diferença a não ser subtraída ou transvasada; a outra é repetição do Diferente e compreende a diferença. Uma tem termos e lugares fixos, enquanto a outra compreende essencialmente o deslocamento e o disfarce. Uma é negativa e por deficiência; a outra é positiva e por excesso. (…) Uma é repetição nua, que só pode ser mascarada por acréscimo e posteriormente; a outra é repetição vestida, cujas máscaras, deslocamentos e disfarces são os primeiros, os últimos e os únicos elementos.”67

“Repete-se duas vezes simultaneamente, mas não se trata da mesma repetição: repete-se uma vez mecânica e materialmente, em comprimento, a outra vez simbolicamente, por simulacro, em profundidade; uma vez repetem-se partes, outra vez repete-se o todo do qual as partes dependem. Estas duas repetições não se fazem na mesma dimensão, mas coexistem; uma é repetição dos instantes e a outra é repetição do passado; uma é elementar, a outra é totalizante.”68

Para Deleuze, «O verdadeiro sujeito da repetição é a máscara»69.

“É porque a repetição difere por natureza da representação que o repetido não pode ser representado, mas deve sempre significado, mascarado por aquilo que o significa, ele próprio mascarando aquilo que significa.”70

“A repetição no eterno retorno aparece sob todos estes aspectos como a potência própria da diferença; e o deslocamento e o disfarce do que se repete só fazem reproduzir a divergência e o descentramento do diferente num só movimento, que é a diáphora como transporte.”71 64 Deleuze, G., DR, op cit, p. 65. 65 Deleuze, G., DR, op cit, p. 71. 66 Deleuze, G., DR, op cit, p. 65. 67 Deleuze, G., DR, op cit, p. 454. 68 Deleuze, G., DR, op cit, p. 458. 69 Deleuze, G., DR, op cit, p. 66. 70 Deleuze, G., DR, op cit, p. 66. 71 Deleuze, G., DR, op cit, p. 472.

Esta ressalva permite evitar a questão colocada no início sobre a objectividade do conhecimento: se não há representação não se coloca o problema da objectividade dado que o conceito criado como simulacro não deve representar nada, não se pretende adequar a nada mas criar um sentido do nada.

Para Deleuze a repetição não se deixa explicar pela forma da identidade no conceito ou na representação e exige, antes, um princípio positivo e superior. Deleuze propõe uma análise da repetição por extratos assim, assinala duas formas de repetição:

“(…) a repetição é a diferença sem conceito. Contudo, num caso, a repetição é a diferença posta somente como exterior ao conceito, diferença entre objectos representados sob o mesmo conceito (…) No outro caso a diferença é interior à Ideia; ela desenrola-se como puro movimento criador (…). A primeira repetição é repetição do mesmo e explica-se pela identidade do conceito ou da representação; a segunda é a que compreende a diferença (…) Uma é negativa por deficiência do conceito, a outra é afirmativa por excesso da Ideia. (…) Uma é repetição «nua» e a outra repetição vestida 72

Neste movimento do pensamento, a repetição revela-se como a dinâmica que propicia a diferença e o aspecto ético surge na compreensão de que essa diferença «designa agora uma prova selectiva, que deve determinar que diferenças podem ser inscritas no conceito em geral e como o podem ser»73.

A consequência lógica desta interpretação do papel ontológico da Identidade e da Diferença é a inversão da preponderância que estes conceitos têm na compreensão do real. Na perspectiva deleuziana, a identidade não é primeira e existe como segundo princípio, como algo que é tornado princípio e que gira em torno do Diferente, esta viragem age como uma espécie de revolução copernicana74. Deleuze insiste na ideia de que o conceito de Eterno Retorno em Nietzsche não implica o regresso do mesmo, do Idêntico porque supõe o mundo da vontade de potência em que as identidades prévias são dissolvidas, apenas o retornar se repete, o Retornar é o ser do devir.

“Seria preciso que a própria substância fosse dita dos modos e somente dos modos. Tal condição só pode ser preenchida à custa de uma inversão categórica mais geral, segundo a qual o ser se diz do devir, a identidade se diz do diferente, o uno se diz do múltiplo, etc. Que a identidade não é primeira, que ela existe como princípio; que ela gira em torno do Diferente, tal é a natureza de uma revolução copernicana que abre à diferença a possibilidade do seu conceito próprio (…)”75

“Não é o mesmo que retorna, não é o semelhante que retorna, mas o Mesmo é o retorno daquilo que retorna, isto é, do Diferente; o semelhante é o retornar daquilo que retorna, isto

72 Deleuze, G., DR, op cit, pp. 74-75. 73 Deleuze, G., DR, op cit, p. 83. 74 Deleuze, G., DR, op cit, p. 100. 75 Deleuze, G., DR, op cit, pp. 99-100.

é, do Dissimilar. (…) Há aí uma subversão completa do mundo da representação e do sentido que tinham «idêntico» e «semelhante» nesse mundo.”76

O Eterno Retorno não faz o «mesmo» retornar, o retornar é o único «mesmo», a única identidade daquilo que devém [N4]. Esta identidade assume a forma de uma potência da diferença que passa no crivo da selecção, a questão ética do Eterno Retorno é esta: só retorna aquilo que é superior, que passou o crivo selectivo, tudo o que é baixo, reactivo, pesado não retorna, não se repete.

“A selecção faz-se entre repetições: aqueles que repetem negativamente, aqueles que repetem identicamente serão eliminados. Eles só repetem uma vez. (…) Não só o eterno retorno não faz com que tudo retorne, como faz com que pereçam aqueles que não suportam a prova (…) O Negativo não retorna. O idêntico não retorna. O Mesmo e o Semelhante, o Análogo e o Oposto não retornam. Só a afirmação retorna, isto é, o Diferente, o Dissimilar.”77

É assim que é entendida a relação da repetição com a diferença: a repetição é a dinâmica de produção da diferença, a repetição é como que um lance de dados78 em que (o universo ou o que se queira chamar, a totalidade da energia) a totalidade do ser, propõe sempre novos modelos de existência, sempre mais puros, mais elevados e a cada lance gera algo de diferente, contudo, é uma diferença subtil que se mascara no idêntico, no semelhante, no simulacro, e daí ter sido possível no passado cometer-se o erro de considerar que o que se repete é o idêntico e que a diferença é algo derivado deste. A diferença é servida discretamente entre duas repetições79.

Com a inversão ou transmutação de valores erige-se uma perspectiva segundo a qual o múltiplo já não é justificável do Uno nem o devir do Ser. Agora o Uno diz-se do múltiplo

76

Deleuze, G., DR, op cit, pp. 472-473. 77

Deleuze, G., DR, op cit, p. 470.

78“Derrida reconhece explicitamente que a introdução da noção de diferença é um «lance de dados», um jogo, uma decisão arbitrária que não se legitima em relação a um estado de coisas incontornável como a sua verificação. O lance de dados não «corresponde» à diferença, antes a pratica.” Cf. Vattimo, G., As Aventuras

da Diferença, op cit, p. 79. Discordamos da interpretação de Vattimo relativamente à expressão nietzschiana

de «lance de dados» na medida em que o pretendem vincular à linguagem e não a uma perspectiva sobre o real. Derrida reconhece a diferença como algo conceptual e não dado fora do discurso. Esta diferença interna ao discurso e sediada no estilo de linguagem poético-filosófica de Nietzsche retira força e credibilidade a uma Filosofia maior, Deleuze e Nietzsche, por certo pretendiam visar uma filosofia que não se quedasse por meros problemas ou jogos de linguagem, talvez por isso muitas vezes Deleuze seja catalogado como um filósofo pós-estruturalista. A diferença não é algo de interno ao discurso em Deleuze ou em Nietzsche.

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A repetição poderá ser entendida com um exemplo: imagine-se um filme composto por milhares de fotogramas. A cada fracção de segundo passam vários fotogramas ao olho e ao cérebro que compõe estas imagens como se de facto de tratassem de imagens em movimento mas na verdade são sitll´s, isto é, múltiplas imagens paradas. Se olharmos para uma sequência pequena de imagens seguidas elas são muito semelhantes, há pouco movimento, parece a mesma imagem, por exemplo se se filma um rosto durante minutos, os olhos piscam e a máquina não capta esse movimento do piscar de olhos, no filme parece que eles estiveram sempre abertos.

enquanto múltiplo e o Ser diz-se do devir; já não se pode opor o devir ao ser e o múltiplo ao uno porque se afirma o uno do múltiplo e o ser do devir, este é o jogo do eterno retorno80.

Desta forma formou-se, segundo Deleuze, um erro de análise segundo o qual a repetição produzia e tinha como fundamento a categoria, o universal, da Identidade, quando na verdade se tratava da diferença discreta ao nosso ponto de vista. Por isso, o autor afirma que há dois níveis na repetição, um que traz os elementos da semelhança, os elementos da máscara e um nível mais profundo no qual nasce a diferença.

“A semelhança subsiste, mas é produzida como o efeito exterior do simulacro, na medida em que se constrói sobre as séries divergentes e faz com que ressoem. (…) Na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da diferença interiorizada, e a identidade do Diferente como potência primeira. O mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro.”81

Retornar é pois a única identidade, a identidade como potência segunda, a identidade da diferença e esta identidade é determinada como repetição. Ela opera uma selecção das diferenças segundo a sua capacidade de produzir, de suportar a prova do eterno retorno.

Esta «correcção» da análise ontológica deleuziana permitiria compreender que o Ser se diz num só e mesmo sentido82 mas este não é o da Identidade genérica ou vaga do conceito, mas antes o do eterno retorno no qual ocorre (1) a produção da repetição a partir da diferença e (2) a selecção da diferença a partir da repetição. Esta é a relação entre ambos os conceitos:

“A «selecção que consiste em «estabelecer a diferença», nos pareceu ter um outro sentido: deixar que surjam e se desdobrem as formas extremas na presença de um Ser unívoco (…)”83. 80 Deleuze, G., N, op cit, p. 30. 81 Deleuze, G., LS, op cit, p. 268. 82

A noção de univocidade do ser, que ele seja dito num só sentido dos seus modos remete para Espinosa e para o estudo que Deleuze empreendeu da sua filosofia, estudo esse que lhe permitiu chegar a um início do conceito de desejo e, para o que me interessa agora analisar, interpretar o Eterno Retorno em Nietzsche de forma, algo criativa, ainda que o próprio Nietzsche tenha sugerido que tal movimento seria selectivo, não especificando, no entanto, como: “(…) Finalmente a insistência de Deleuze no que diz respeito a Espinosa vai, não no sentido de salientar o princípio de que existe uma única substância para todos os atributos, mas de que existe “uma única Natureza para todos os corpos, uma única Natureza para todos os indivíduos, uma Natureza variando de uma infinidade de maneiras”. Nesta perspectiva, o que estaria em relevo seria o que Deleuze denomina um plano comum de imanência ou consistência, por oposição a um plano teológico ou de organização transcendente, plano de consistência ou de imanência que “não tem senão um nome, Desejo”. (…) Seria preciso que a substância se dissesse ela própria dos modos, e apenas dos modos. Para que isso aconteça, é preciso engendrar uma concepção que destrone a primazia do idêntico e aceite afirmar que o ser se diz do devir, a identidade do diferente, ou o uno do múltiplo. Fundamentalmente, é preciso uma concepção que aceite dar primazia à Diferença. Ora essa foi, segundo Deleuze, a tarefa que Nietzsche conseguiu levar a cabo através da sua teoria do eterno retorno (…)”. Cf. Ferreira Santos, L., Pensar o Desejo, Freud, Girard e

Deleuze, Braga, Edição Universidade do Minho, 1997, p. 230.

83

A filosofia que assume estas características é uma filosofia da diferença e rejeita a alternativa da representação infinita84 que é indiferenciada.

“A representação infinita não é separável de uma lei que a torna possível: a forma do conceito como forma de identidade que constitui ora o em-si do representado (A é A), ora o para-si do representante (Eu = Eu). O prefixo RE-, na palavra representação, significa a forma conceptual do idêntico que subordina as diferenças.”85

É desta forma que se explica a produção da diferença, conceito que simboliza a libertação do monismo e a preparação para uma imagem do pensamento perspectivista. Nietzsche explica em Ecce Homo86 que o seu Zaratustra trata precisamente da apresentação da ideia do eterno retorno e do seu aspecto selectivo e ético, e nessa obra, no capítulo III, O Convalescente, menciona que o maior receio do profeta é o receio de que o homem mesquinho volte, regresse eternamente, pois esse seria o efeito do eterno retorno do mesmo tal como foi (mal) entendido por muitos. No entanto, em A Vontade de

Poder87, está patente o aspecto selectivo deste movimento de devir do eterno retorno: em todas as acções o agente deve perguntar-se se deseja repetir essa acção um número infinito de vezes. O critério ético da acção é este - viver de tal maneira que se queira reviver eternamente o mesmo, isso obriga a fazer a selecção do tipo de vida a escolher.

O eterno retorno é duplo, por um lado, incide sobre o pensamento e sobre a constituição das várias formas de vida, por outro lado, segundo Deleuze88 não é só o pensamento selectivo mas também o Ser selectivo pois só volta a afirmação, só retorna aquilo que pode ser afirmado, todo o negativo é expulso pelo próprio movimento do devir que tem um poder centrífugo que expulsa todo o negativo.

É porque o Ser se afirma do devir que ele expulsa de si tudo o que contradiz a afirmação, todas as formas de niilismo. Esta consciência torna possível a ultrapassagem do medo ao personagem Zaratustra porque o eterno retorno não permite que as formas mais baixas em termos anímicos ou que as forças negativas retornem.

Esta noção de ontologia ética surge portanto como estratégia para argumentar, para deduzir o caracter (a intuição filosófica) paradoxal da realidade mediante a crítica da Lógica aristotélica. Toda esta démarche tem como fito, a longo trecho, experimentar a diferença,

84Sobre a representação infinita: “sob a influência do Cristianismo, não se procura mais somente fundar a representação, torna-la possível, nem especificá-la ou determiná-la como finita, mas torná-la infinita, fazer valer para ela uma pretensão sobre o ilimitado, fazê-la conquistar o infinitamente grande assim como o infinitamente pequeno, (…)”, Cf. Deleuze, G., LS, op cit, 2002, p. 265.

85

Deleuze, G., DR, op cit, p. 122.

86 “Quero contar agora a história de Zaratustra. A concepção fundamental da obra, a ideia do eterno retorno, esta fórmula suprema da afirmação.” Cf. Nietzsche, F., Ecce Homo, op cit, p.199.

87

Nietzsche, F., Vontade de Poder, op cit, pp. 242-244. 88

treinar o desejo de uma imagem de pensamento diferente, um outro horizonte do pensamento, diferencial e ético. Deleuze parece procurar criar o campo no qual o seu pensamento florescerá, porém tornar-se-á claro que isso não será possível usando estes conceitos, a sua batalha e a sua criação terá de procurar outros cenários, outras linguagem, outros problemas. A pergunta subjacente é sempre como obter a liberdade (e uma confiança ética) para a diferença; como justificar a possibilidade da diferença, de outras formas de vida, de outros sujeitos.

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 34-41)