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O ideal do senso comum 173 e o modelo da recognição

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 69-73)

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana 12.1 A Filosofia e a máscara

1.2.4. O que é uma imagem do pensamento segundo Gilles Deleuze

1.2.4.2. O ideal do senso comum 173 e o modelo da recognição

O segundo postulado é o do ideal do senso comum, sendo o bom senso ou o senso comum a determinação do pensamento puro operando uma repartição do empírico e do transcendental. Esta repartição das faculdades, segundo a medida do senso comum, segue um modelo: o da recognição que se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objecto produzindo-o como se fosse sempre o mesmo ao longo das várias impressões sensíveis que captamos.

“Na medida em que vale de direito, esta imagem pressupõe uma determinada repartição do empírico e do transcendental; e o que é preciso julgar é esta repartição, este modelo transcendental implicado na imagem.”175

Um objecto é reconhecido quando todas as faculdades referem o dado e se referem a si mesmas uma forma de identidade do objecto. Assim, a recognição exige simultaneamente o principio subjectivo da colaboração das faculdades para “toda a gente”, isto é, um senso comum como concórdia das faculdades. E para o filósofo, a forma de identidade do objecto exige um fundamento na unidade de um sujeito pensante.

172

Nietzsche, F., Vontade de Poder, op cit, p. 229. 173

Deleuze, G., DR, op cit, p. 230. 174

Deleuze, G., DR, op cit, p. 231. 175

“(…) existe um modelo: o da recognição. A recognição define-se pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objecto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objecto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido.”176

“O «mesmo» da Ideia platónica como modelo, garantido pelo Bem, deu lugar à Identidade do conceito originário fundado no sujeito pensante. O sujeito pensante dá ao conceito os seus concomitantes subjectivos, memória, recognição, consciência de si. Mas é a visão moral do mundo que assim se prolonga e se representa nesta identidade subjectiva afirmada como senso comum (cogitatio natura universalis).177

O Cogito é o começo pois exprime a possibilidade de todas as faculdades se referirem a uma forma de objecto que reflecte a identidade subjectiva dando um conceito ao senso comum, permitindo ao senso comum ser tornado filosófico. É o Cogito ou o Eu

Penso de Descartes que funda a concordância das faculdades num objecto que se supõe

ser o mesmo. É o Cogito que dá o conceito ao pressuposto subjectivo do senso comum de que existe uma universal colaboração das faculdades178 no sentido do pensamento se dirigir ao verdadeiro (que toda a gente sabe que é...); é o Cogito que permite a recognição. Deste modo, o pensamento é naturalmente recto pois não é uma faculdade como as outras mas sendo referido a um sujeito, é a unidade de todas as faculdades e orienta-as sob a forma do Mesmo neste modelo da recognição.

“(…) um objecto é reconhecido quando uma faculdade o visa como idêntico ao de uma outra ou, antes, quando todas as faculdades em conjunto referem o seu dado e referem a si mesmas a uma forma de identidade do objecto.”

“No senso (sentido) comum, “sentido” não se diz mais de uma direcção, mas de um órgão. Nós o dizemos comum porque é um órgão, uma função, uma faculdade de identificação, que relaciona uma diversidade qualquer à forma do Mesmo. (…) Subjectivamente, o senso comum subsume faculdades diversas da alma ou órgãos diferenciados do corpo e refere- os a uma unidade capaz de dizer Eu: é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra- se, sabe, etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come… A linguagem não parece possível fora de um tal sujeito que se exprime ou se manifesta nela e que diz o que ela faz. Objectivamente, o senso comum subsume a diversidade dada e refere-a à unidade de uma forma particular de objecto ou de uma forma individualizada de mundo: é o mesmo objecto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro… (…)”179

176

Deleuze, G., DR, loc cit. 177

Deleuze, G., DR, op cit, p. 424. 178

Face a esta crítica Deleuze irá propor na sua teoria do sentido a produção do mesmo mediante o «paradoxo» que é o resultado de um desacordo das faculdades, pensar desta forma seria uma «aventura do involuntário»: “ L´aventure de l´involontaire se retrouvre au niveau de chaque faculté. De deux façons différents, les signes mondains et les signes amoureux son interprétés par l´intelligence. (…) Volontaire et involontaire ne désignent pas des facultés différents, mais plutôt un exercice différent des mêmes facultés.” Cf. Deleuze, G., PS, op cit, p. 120.

179

Este postulado aponta a crítica à noção de sujeito, noção fundadora da filosofia e portanto da imagem de pensamento moderna, sugerindo que este é uma construção (aspecto que é aceite e até certo ponto consensual) que nunca sai da doxa, portanto uma construção que acaba apenas por justificar uma imagem do mundo, uma interpretação moral (cristianismo, fascismo, capitalismo, etc.) da existência. A crítica não é essencialmente sobre o aspecto ficcional mas antes sobre a visão única deste aspecto que se impõe. Esta crítica apesar de se apresentar como genérica implica claramente Descartes e Kant como autores dos conceitos aqui envolvidos.

“ Em Kant, assim como em Descartes, é a identidade do Eu no Eu penso que funda a concordância de todas as faculdades e o seu acordo na forma de um objecto suposto como sendo o Mesmo.”180

“(…) a recognição exige, pois, o princípio subjectivo da colaboração das faculdades para «todos», isto é, um senso comum como concordia facultatum; e, para o filósofo, a forma de identidade do objecto exige um fundamento na unidade de um sujeito pensante do qual todas as outras faculdades devem ser modos. É este o sentido do Cogito como começo: ele exprime a unidade de todas as faculdades no sujeito; exprime pois, a possibilidade de todas as faculdades se referirem a uma forma de objecto que reflita a identidade subjectiva; ele dá assim, um conceito filosófico ao pressuposto do senso comum (…)”181

O senso comum e o bom senso completam-se na Imagem do Pensamento de forma diferente: «o senso comum é a norma da identidade do ponto de vista do Eu puro»182 (traz a forma do Mesmo), «o bom senso é a norma de partilha do ponto de vista dos eus empíricos e dos objectos»183 (determina a contribuição das faculdades na recognição); constituem as duas partes da doxa. Ou de outra forma, o senso comum permite a concordância das faculdades e o bom senso

“O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.”184

A repartição que garante essa concórdia. O exercício natural da intuição e da dedução sob o bom senso manifesta o poder de julgar bem, quer dizer, de distinguir o verdadeiro do falso, este é o poder do bom senso ou razão que o espírito tem por natureza185. 180 Deleuze, G., DR, op cit, p. 232. 181 Deleuze, G., DR, op cit, p. 231. 182 Deleuze, G., DR, op cit, p. 232. 183

Deleuze, G., DR, loc cit. 184

Deleuze, G., LS, op cit, p. 1. 185

Até aqui Deleuze caracterizou a Imagem do Pensamento como uma ortodoxia porque supondo um pensamento naturalmente recto, um senso comum natural e uma recognição como modelo transcendental, não pode realizar o projecto de romper com a doxa. A filosofia não pode romper com a doxa dado que mantém dela o senso comum e o modelo da recognição que garante a concordância das faculdades fundada no sujeito pensante que é considerado como universal.

“(…) um pensamento naturalmente recto, de um senso comum natural, de direito, de uma recognição como modelo transcendental, só pode constituir um ideal de ortodoxia.”186 “A imagem do pensamento não passa da figura sob a qual universalizamos a doxa, quando apenas se faz abstracção do seu conteúdo empírico, mantendo-se o uso das faculdades que lhe correspondem e que retêm implicitamente o conteúdo.”187

Assim, a Imagem do Pensamento é a forma pela qual se universaliza a doxa e se eleva a doxa a filosofia racionalizando-a188.

A Imagem do Pensamento abstrai de todo o conteúdo empírico da doxa, abstrai de todas as proposições particulares do senso comum e do bom senso mas conserva o uso das faculdades que lhe correspondem e que retêm o essencial do conteúdo.

O ideal do senso comum funciona segundo o modelo da recognição pois a recognição instiga todas as faculdades a se exercerem sobre um objecto supostamente o mesmo. Deste modo, a forma da recognição serve o reconhecível e o reconhecido, contudo neste processo diário de reconhecer não há pensamento189.

Por outro lado, é importante salientar que a recognição é um modelo do pensar perigoso pois serve os valores estabelecidos. O que é reconhecido são objectos, mas igualmente valores sobre os objectos que intervêm nas distribuições operadas pelo bom senso.

“Os caracteres sistemáticos do bom senso são pois: a afirmação de uma só direcção; a determinação desta direcção como indo do mais diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao regular, do notável ao ordinário; a orientação da flecha do tempo, do passado ao futuro, de acordo com esta determinação; o papel director do presente nesta orientação;

186 Deleuze, G., DR, op cit, pp. 232-233. 187 Deleuze, G., DR, op cit, p. 233. 188

Por exemplo, quando nas Regras para a Direcção do Espírito, na regra IV, se propõe que o segredo do método é o de ser capaz de escolher, entre todas as coisas, as que são mais absolutas, apreendendo-o por intuição e daí deduzindo os conhecimentos mais complexos, ligados aos mais simples por uma série de relações apreendidas igualmente por intuição está-se a partir da doxa para uma universalização da mesma na forma da intuição, da crença.

189 “(...) justamente o que é preciso criticar nesta imagem de pensamento é ter fundado o seu suposto direito na (...) Recognição, como se o pensamento não devesse procurar os seus modelos em aventuras mais estranhas ou mais comprometedoras (...)” Cf. Deleuze, G., DR, op cit, p. 234.

a função de previsão que assim se torna possível; o tipo de distribuição sedentária, em que todos os caracteres precedentes se reúnem.”190

Esta imagem do pensamento dirige-se naturalmente para a verdade, encontra a sua finalidade prática nos valores estabelecidos produzindo uma interminável complacência191 quando a diferença deveria provocar no pensamento forças que não são as da recognição, mas sim potências de um modelo distinto. Sob a recognição «Só há luta sob um senso comum e em torno de valores estabelecidos, luta para obter ou atribuir valores em curso (honras, riqueza, poder)»192, ou seja, só há lutas pelo estabelecido, pela manutenção de um estado de mesmidade, luta pela conservação, a estagnação.

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 69-73)