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David Hume, percursor do perspectivismo deleuziano

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 195-200)

O importante aqui é inventar: a justiça é uma virtude artificial e «o homem é uma espécie inventiva» David Hume – Tratado da natureza Humana

O primeiro texto de Deleuze publicado como comentador versa sobre David Hume (Empirismo e Subjectividade) e é uma matriz importante para a compreensão da proposta perspectivista deleuziana que designou por empirismo transcendental. Como nos outros trabalhos de comentário, Deleuze acrescenta sempre algo ao autor visado, este aspecto do seu trabalho nem sempre foi apreciado na medida em que não satisfaz quem procura uma leitura mais «próxima do texto», contudo, Deleuze considerava que ler um autor implicava mais do que simplesmente repetir as suas ideias e mais do que dar uma interpretação dessas ideias. O trabalho de comentário deveria ir buscar os problemas que o autor pensou, ou seja, o plano de imanência e do problemático que o autor traçou e deveria repensar as soluções, isto é, repensar de que forma é que nós hoje, em cada «hoje», podemos renovar os conceitos e os problemas que aquele pensador traçou, de que forma os podemos activar e actualizar; de outra forma o pensamento ficaria preso a uma época e a uma forma (interpretação/perspectiva/linguagem) de pensar.

Com Hume, Deleuze encontra o perspectivismo mais do que o cepticismo na medida em que a crítica à noção de real parece-lhe tão radical que lança dúvidas quanto ao estatuto do real para Hume, parece que a crítica vai mais além do que o problema das possibilidades do conhecimento: «Para que haja contradição em furtar propriedades, em violar promessas, é preciso ainda que promessas e propriedades existam na natureza.»513

O que importa no problema do real não é que seja uma existência transcendente ao sujeito mas antes o facto de se apresentar como uma probabilidade derivada do hábito: presumimos, ao ver um objecto, outros análogos que o acompanham habitualmente (a casa é acompanhada da sua porta, acompanhada da sua fechadura, da sua chave, do seu trinco, do seu proprietário, etc.). O paradoxo deste hábito é que ele se forma por graus e que é um princípio da própria natureza humana – o hábito de contrair hábitos.514

Além de identificar as contradições no conhecimento do exterior, há que perceber a possibilidade dele não existir, tal como a razão:

“É por ser negada do exterior que a razão se negará do interior e se descobrirá como uma demência, um cepticismo. E porque esse cepticismo tem a sua origem e o seu móbil no exterior, na indiferença da prática, é que também a prática, ela própria, é indiferente ao cepticismo: pode-se sempre jogar gamão.”515

No entanto, o hábito não forma «real» sem a força, a intensidade da crença, a imaginação que forma a colecção de objectos torna-se uma crença quando se dá uma transição da impressão do objecto para a ideia de outro, assim, o hábito permite ao entendimento raciocinar sobre a experiência e torna a crença um acto possível do entendimento.

É o hábito que é a própria experiência uma vez que produz a ideia de um objecto através da imaginação, não pelo entendimento mas pela repetição:

“O próprio hábito é um princípio distinto da experiência e a unidade da experiência e do hábito não é dada. Por si mesmo, o hábito pode fingir, invocar uma falsa experiência, e pode produzir a crença «mediante uma repetição que não procede da experiência».”516 “É essa síntese passiva que constitui o nosso hábito de viver, isto é, a nossa expectativa de que «isto» continue, que um dos dois elementos ocorra após o outro, assegurando a perpetuação do nosso caso.”517

513

Deleuze, G., ES, op cit, p. 27. 514

Deleuze, G., ES, op cit, p. 67. 515

Deleuze, G., ES, op cit, p. 27. 516

Deleuze, G., ES, op cit, p. 71. 517

As crenças que são produzidas neste sistema são ilegítimas do ponto do rigor lógico, todavia são inevitáveis, como as ilusões da razão em Kant e formam todo um conjunto do real tido como probabilidade, de existir ou não. As crenças, resultado de repetições que não procedem da experiência, ainda que isso não mudasse nada, têm como fonte a linguagem e a fantasia. A linguagem, lógica dos conceitos produz as crenças pela repetição que é observada por outra repetição falada que substitui a impressão do objecto. Ao ouvirmos a palavra, isto é, o conceito representativo concebemos automaticamente, vivamente a ideia como se existisse:

“O filósofo, à força de falar de faculdades e de qualidades ocultas, acaba por acreditar que tais palavras «têm um sentido oculto que podemos descobrir por reflexão»”518

Pela forma acima descrita, as palavras produzem um simulacro de crença, já a «fantasia» interpreta o aparecimento de aspectos acidentais como se fosse a repetição de um objecto. A imaginação em Hume é para Deleuze a produtora da crença que confunde o acidental com o geral, por isso é que no hábito a experiência é invocada de forma errada, é invocada associada a repetições que nada têm que as relacione umas às outras, contudo é assim que são agrupadas, como tendo um nexo.

Não há portanto nenhuma indicação do acordo nem do desacordo com o real, tal como não há um todo da Natureza nem para se descobrir nem para se inventar, segundo Deleuze, em Hume a totalidade é apenas uma «colecção», a união das partes num todo, efectuada como um acto arbitrário que não tem nenhuma influência sobre a natureza das coisas qualquer que ela seja.

“O mundo, como tal, é essencialmente o Único. É uma ficção da imaginação; nunca é um objecto do entendimento; as cosmologias são sempre fantasistas.”519

A questão do real é, a jusante, uma questão das capacidades do sujeito do conhecimento:

“ (…) o raciocínio causal é extensivo, ultrapassa os princípios que determinam as condições do seu exercício legítimo em geral e que o mantém nos limites do entendimento. Com efeito, confiro ao objecto mais coerência e regularidade do que as que observo na minha percepção.”520

518

Deleuze, G., ES, op cit, p. 73. 519

Deleuze, G., ES, op cit, p. 80. 520

Deleuze não deixa dúvidas que entende em Hume uma denúncia clara da falta de nexo causal entre o objecto e a percepção, embora não possamos apreender o objecto independentemente da percepção, de outra forma teríamos de assumir o delírio constante, este não permite falar de uma existência distinta dos objectos que surgem de forma descontínua e nós construímos essa continuidade de forma a percebermos que é «o mesmo» objecto ou grupos de objectos (contexto ou horizonte de referência).

Tal como Kant, elaborou uma crítica da razão e dos limites da mesma, Deleuze atribui a Hume uma consciência muito activa destes limites ao considerar que os princípios da natureza humana têm naturalmente a tendência para constituírem um sistema, o sistema do saber com a colecção de todos os seus objectos. O fundamental deste sistema é provocar artificialmente a ultrapassagem da interrupção das informações dos sentidos, o fundamental é «colar» os objectos num nexo causal, numa probabilidade de existência: «(…) pela ficção de um ser contínuo que preenche esses intervalos e conserva para as nossas percepções uma perfeita e inteira identidade.»521

É na ideia de Mundo que a imaginação se torna criadora pois esta ideia é o resultado, segundo este processo de criar continuidades entre percepções, de uma extensão ilegítima de continuidade. Dela deriva a crença na existência dos corpos que resolve, por exemplo, o problema da descontinuidade das impressões e é porque esta ficção de extensão dos corpos, do real, da causalidade que cria o tecido de circulação do real se torna um princípio, que o homem deixa de conseguir identificá-la na auto-reflexão, na actividade crítica do conhecimento e por isso nem pode ser corrigida nem destruída, torna-se inidentitária, torna-se um pressuposto pré-filosófico, parte da doxa da filosofia.

Contudo não é por este aspecto ontológico do cepticismo que Deleuze se converte a um perspectivismo ou que constitui o empirismo transcendental, esta passagem estará mais fortemente marcada na problemática do sujeito.

Da mesma forma, a ideia de «sujeito» em Hume resume-se à de uma colecção de ideias. A subjectividade é o resultado da afecção sobre a imaginação, é uma regra geral, e a própria ideia não é representativa, é apenas uma regra de um esquema de construção do real. Para Deleuze, a essência do empirismo está no problema da subjectividade: “o sujeito define-se por e como um movimento, movimento de se desenvolver a si mesmo.”522

O que se desenvolve é sujeito e é esse o único desenvolvimento que se pode, segundo Deleuze, dar à subjectividade. O sujeito é constituído num duplo movimento em

521

Deleuze, G., ES, op cit, p. 86. 522

que se desenvolve a si mesmo, tornando-se outro, o sujeito ultrapassa-se e reflecte-se na ficção que constrói assumindo-a como sendo a sua natureza. É um processo de artifício ou de invenção que faz do sujeito o sujeito, pois a partir do dado infere-se algo que não está dado (o sujeito ou o «eu»), isto é, acredita-se nisso e aí afirma mais do que sabe, trata-se de uma inferência ilegítima:

“Crer é inferir de uma parte da natureza uma outra que não está dada. E inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tão pouco estão dadas na natureza. Eis o problema: como pode, no dado, constituir-se um sujeito tal que ultrapasse o dado? Sem dúvida, também o sujeito que inventa e crê constitui-se no dado de tal maneira que ele faz do próprio dado uma síntese, um sistema. (…) No problema assim colocado, descobrimos a essência absoluta do empirismo.”523

Para Deleuze, Hume opera uma rotação do problema que viria a ser da fenomenologia: o problema do dado – este já não é aquilo que é dado a um sujeito (pois acabou de o desconstruir como unidade do diverso) mas, inversamente, o sujeito constitui- se no dado como fluxo imanente de impressões e imagens, ou seja, conjunto de percepções que não é mais do que movimento (fluxo de intensidades como viria a ser apresentado em Mil Planaltos) e mudança, sem identidade nem lei. Organizar uma tal colecção de impressões é falsificar e enganar-se criando um sujeito de tipo clássico e transcendental.

Há duas dimensões fundamentais da natureza humana: crer e inventar, é isso que faz o sujeito como tal. Crer é inferir de uma parte da natureza, uma outra parte que não está dada e inventar será, segundo Deleuze, distinguir poderes e constituir totalidades que não estão dadas. É desta forma que o sujeito se constitui no empirismo.

Para Deleuze, o problema de que parte o filósofo é que determina a validade das suas respostas, o interesse e o alcance da sua produção de conceitos, no caso de Hume, este parte do seguinte problema: como pode no dado constituir-se um sujeito tal que ultrapasse o dado? De outra forma, como pode ser esta inversão segundo a qual no empirismo, não é o sujeito a unidade transcendental da apercepção que garante a constância, a unidade do dado e a possibilidade do conhecimento mas antes ser o dado que constitui o sujeito tal como é entendido? Para Hume o sujeito constitui-se no dado pela invenção de uma unidade e pela crença na continuidade dessa unidade por entre as diferenças e os elementos obscuros ou aleatórios. O sujeito mediante a invenção e a crença constitui-se como uma síntese (unidade sintética) e um sistema (do entendimento)

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e, como tal, falar do sujeito é falar de uma duração, de um costume, de um hábito e de uma expectativa.

A noção de sujeito é a de uma síntese do tempo que é produtiva, criadora e inventiva, é a tendência produzida pelo costume de passar de um objecto à ideia de um outro objecto que o acompanha habitualmente, passar das minhas disposições, dos estados que considero meus, à noção de um sujeito que sou eu que as acompanha habitualmente.

Entendida desta forma não é possível ao empirismo uma subjectividade teórica e por isso é que a proposta de Deleuze sobre Hume, a saber, que o sujeito se constitua no dado (e não o inverso), interessa no plano da sua filosofia futura. Há no empirismo somente uma espécie de sujeito prático que se produz a si mesmo na prática da vida, um sujeito imanente a si, mas isto ainda não esclarece a expressão algo obscura de Deleuze - «imanência, uma vida». O perspectivista que interpreta e cria sentidos, que cria o acontecimento na sua acção já não é - sujeito - no sentido clássico. O sujeito do empirismo é aquele que produz o real mantendo-se na esfera da experiência real e não da experiência possível kantiana.

É mediante o conceito de desejo e de singularidade que Deleuze faz avançar o problema da figura do sujeito para uma outra personagem, a singularidade.

“(…) a objectividade do homem, o ser objectivo do homem para quem desejar é produzir , produzir na realidade. O real não é impossível, pelo contrário: no real tudo é possível, tudo se torna possível. Não é o desejo que exprime uma falta molar no sujeito, é a organização molar que tira ao desejo o seu ser objectivo. Os revolucionários, os artistas e os profetas limitam-se a ser objectivos, simplesmente objectivos: sabem que o desejo envolve a vida com um poder produtor, e que a reproduz intensamente, precisamente porque precisa pouco dela. E tanto pior para aqueles que acreditam que isto é fácil de dizer, ou que é uma ideia livresca.”524

“(…) o desejo produz real, ou a produção desejante mais não é do que a produção social. Não se trata de reservar ao desejo uma forma de existência particular, uma realidade mental ou psíquica que se opusesse à realidade material da produção social.”525

O pensador na singularidade é esvaziado do lastro da modernidade e encontra-se livre de processos de repressão que conduzem a subjectivação para um modelo fechado e repetido, vazio. Este é também o elemento decisivo, como veremos adiante para Deleuze poder transferir o seu campo de interesse, o seu plano de pensamento para o campo da política como forma prática de criar uma vida, um processo de subjectivação diferente em

524

Deleuze, G. e Guattari, F., AE, op cit, p. 33. 525

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 195-200)