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A função diferença

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 60-65)

1.2. O problema dos pressupostos ou o início da filosofia deleuziana 12.1 A Filosofia e a máscara

1.2.3. A função diferença

How wonderful that we have met with a paradox. Now we have some hope of making progress.

Niels Bohr

Na ontologia deleuziana, marcada pelas ideias da física que ressoam na filosofia perspectivista, a identidade do real é a diferença, a divergência entre perspectivas. Vimos pela análise da ontologia do Eterno Retorno que a Diferença surge como o entre duas repetições. A diferença surge como resultante do movimento selectivo do Eterno Retorno, do Devir que seleciona o activo, o que é elevado. Contudo, esta definição não diz muito sobre a própria diferença, mas antes sobre o mecanismo que a produz. É em Diferença e

Repetição (no capítulo A diferença em si mesma) que podemos ter mais indicações sobre

este elemento fundamental da filosofia deleuziana. Fundamental porque parece que todo o seu percurso foi construído para permitir a sua existência como elemento primeiro e fundante do pensamento.

Tem de existir a diferença para que possa haver pensamento. Para Deleuze, «A diferença é este estado em que se pode falar DA determinação»148. A diferença entre duas coisas não é o caso pois esta é apenas empírica e resulta da percepção e da comparação. A diferença não é algo que se distingue (graças às suas propriedades) de outra coisa. É

145 “ (…) Quando a obra de arte moderna, ao contrário, desenvolve as suas séries permutantes e as suas estruturas circulares, ela indica à Filosofia um caminho que conduz ao abandono da representação. (…) Sabe-se como estas condições já estão efectuadas em obras como o Livre, de Mallarmé, ou Finnegans Wake, de Joyce: elas são por natureza, obras problemáticas. Nelas, a identidade da coisa lida dissolve-se realmente nas séries divergentes definidas pelas palavras esotéricas, assim como a identidade do sujeito que lê se dissolve nos círculos descentrados da multileitura possível.(…) ”, Deleuze, G., DR, op cit, p. 139.

146

Deleuze, G., DR, op cit, p. 140. 147

Nietzsche, F., Crepúsculo dos Ídolos, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 36. 148

antes o caso em que «algo se distingue, - e, todavia, aquilo de que ele se distingue não se distingue dele»149.

“O relâmpago, por exemplo, distingue-se do céu negro, mas deve acompanhá-lo, como se se distinguisse daquilo que não se distingue. Dir-se-ia que o fundo sobe à superfície sem deixar de ser fundo.”150

Isto é, acompanha-o, como se o fundo indeterminado (o caos, a ignorância, o vazio) subisse à superfície (ganhasse uma forma, um sentido, um nome) sem ainda assim deixar de ser fundo151. Deleuze salienta que «há algo de cruel neste adversário inapreensível, luta em que aquilo que se distingue se opõe a algo que não pode distinguir-se dele e que continua a desposar o que dele se divorcia»152.

A diferença é, portanto, este estado de determinação como distinção unilateral.

“Para dizer a verdade, são todas as formas que se dissipam quando se reflectem neste fundo que sobe. Ele próprio deixou de ser o puro indeterminado que permanece no fundo, mas também as formas deixaram de ser determinações coexistentes ou complementares. O fundo que sobe adquire uma existência autónoma; a forma que se reflecte neste fundo não é já uma forma mas uma linha abstracta que actua diretamente sobre a alma.”153

“Quando o fundo sobe à superfície, o rosto humano decompõe-se neste espelho em que tanto o indeterminado como as determinações vêm confundir-se numa só determinação que «faz» a diferença.”154

O que faz a diferença é o pensamento.

Há uma analogia possível, uma imagem que ajuda a trazer à mente este obscuro conceito: o pensamento do paradoxo em Deleuze e também da diferença (ambos são um só), inspiram-se na sua formulação no princípio de incerteza do físico Werner Heisemberg, pelo menos na formulação leiga desse princípio.

149

Deleuze, G., DR, loc cit. 150

Deleuze, G., DR, loc cit. 151

Como já haviamos mencionado, a questão da determinação inspira-se no modelo da física: o conceito de diferença em Deleuze remete para a diferença de resultados que os físicos encontram ao analisar o átomo e a compreensão de que é a mera observação das partículas atómicas por parte do cientista que faz com que estas se determinem como onda ou corpúsculo. A interpretação do sujeito cria o real. O papel do sujeito moderno é o de criador do real ou de perspectivas sobre este, mas perspectivas que não competem pela adequação pois existem numa lógica de repetição e de multiplicidade, o sentido é isto e aquilo. O real é, na física, energia que assume uma forma, numa determinada faixa de tempo e por isso, na compreensão comum o real poder-se-ia designar, como Deleuze o faz, como o indeterminado, sendo o sentido o momento em que o sujeito opera a determinação, o momento em que o sujeito mergulha no caos para selecionar determinações, o momento em que pode dizer - isto é-.

152

Deleuze, G., DR, op cit, p. 81. 153

Deleuze, G., DR, op cit p. 82. 154

Usando uma analogia: o pensamento que produz a diferença tem o papel análogo ao do observador do átomo que produz uma alteração, no mesmo pelo acto de o observar, do qual resultará um desfecho imprevisível ou incerto. Julgamos que esta ideia de que o pensamento produz o real que está patente no aspecto chocante da física quântica é o movimento do pensamento que Deleuze quer atribuir ao conceito de diferença.

A diferença (tal como as partículas atómicas), é um fundo que sobe à superfície, isto é, à consciência, no momento de ser determinado (como partícula ou onda). A diferença, (tal como o átomo e o real que ele funda) não se distingue do fundo, do caos de determinações possíveis que existem antes de se gerar sentido, ou seja, antes de se gerar real, e quando sobe, ou quando o sentido é criado, ele dissolve a forma, isto é, dissolve o senso comum e os conhecimentos pré-concebidos.

O átomo pode ser estudado, separado mas ele não se distingue do fundo, de toda a energia e segundo a física quântica o átomo não está num local, ele é energia a vibrar numa determinada velocidade mas está espalhado, os seus componentes não circulam em órbitas tais como nos modelos dos manuais de física, o núcleo pode ter os seus electrões a milhas de distância pois trata-se de energia e não de matéria como a vemos, a energia não está determinada pelo tempo como julgamos pela análise empírica. Assim, ao analisar o átomo este sobe à superfície, à escala macro, à consciência sem ainda assim deixar de ser algo obscuro do qual não se sabe realmente quase nada, sabe-se que é incerto, que é paradoxal que pode ser onda ou partícula, contudo o aspecto aleatório pelo qual se apresenta ao investigador confere-lhe uma confiança quase nula sobre o que acabou de testemunhar, quer dizer, sobre o que acabou de criar.

O conceito de diferença parece permanecer indeterminado, até quando se apresenta como resultado do movimento do Eterno Retorno. Neste, o único elemento que pode ser considerado «Ser» é a repetição, o movimento selectivo, diferenciante eterno. A diferença, no mecanismo do Eterno Retorno é movimento de diferenciação, movimento de distinguir repetidamente. É realmente algo que se distingue sem que se perceba aquilo de que se distingue, na medida em que o movimento limpa todo o momento empírico de comparação possível. A diferença é aqui um acto de escolher, logo a diferença é movimento. No caso do átomo, a diferença é constituída pelo acto do sujeito do conhecimento que determina (escolhe fixar) um momento de entre a eternidade do movimento do átomo, um momento no tempo daquilo que ele é enquanto pura energia.

O artifício/argumento apresentado por Deleuze para identificarmos a diferença, já que ela como fundo (que permite o pensamento e é nele gerado) não se distingue daquilo de que difere, é o de procurar a intensidade. A intensidade (e já não o conceito nietzschiano

de força) «é a forma da diferença como razão do sensível»155. Toda a intensidade é diferencial.

“Não é a oposição qualitativa no sensível, mas um elemento que é em si mesmo diferença e cria, ao mesmo tempo, a qualidade no sensível e o exercício transcendente na sensibilidade: este elemento é a intensidade, como pura diferença em si (…)”156

Um outro aspecto da diferença é que esta não é o diverso mas aquilo que permite que haja diverso, é como que uma matriz, uma condição de possibilidade, ao modo kantiano, de pensar o diverso. A diferença também não é o indeterminado nem o sem fundo ou o que Deleuze chama de caos ou abismo indeterminado. Isso é o real, a soma de todas as determinações possíveis, sentimentos, sentidos criados, pré-conceitos, etc. A diferença permite que se crie um sentido ao mergulharmos no caos para lhe extrairmos um sentido, para criarmos um sentido que difere disso, difere do caos. A diferença é realmente o que está entre um momento de caos e uma determinação, o que está entre um silêncio e uma palavra, um nada e um pensamento.

A diferença é um plano «entre» que gera a possibilidade de haver determinações, de outra forma em termos de pensamento tudo estaria ligado num mar de determinações esparsas, soltas num diálogo, num livro, numa escrita, numa corrente de consciência interminável sem cortes, sem sentido, como no momento anterior ao big bang onde toda a energia estava, pensa-se, condensada num ponto do tamanho de uma ervilha, todo/s o/s universos/s ligados sem princípio nem fim.

A diferença é esse poder de separar e de criar, não é esse o papel do Ser nem da identidade como sua qualidade. O conceito de identidade é o de uma parcela, é um conceito empírico elevado a metafísico. O que produz o real é a diferença como plano da determinação, como o espaço entre duas palavras que nos permite ler, como o espaço/tempo entre duas sinapses que permite pensar. Na descrição de universo, alguns físicos usam a imagem de uma elevada quantidade de energia a vibrar numa determinada velocidade (de modo que julgamos serem partículas ou objectos/corpos materiais) entrecortada por vazio. Analogamente esse espaço vazio, esse fundo que não se distingue do que ele distingue é que permite o real, permite A determinação como designa Deleuze.

A diferença é igualmente definida como o absolutamente diferente do pensamento que todavia faz pensar, encontramos assim a característica do paradoxo como elemento da diferença. Para Deleuze, a diferença é contrária ao pensamento e por isso é, por definição, inexplicável e inapreensível e por isso mesmo é que a diferença implica o pensamento em

155

Deleuze, G., DR, op cit, p. 362. 156

si mesma157. Como movimento e como elemento diferenciante, a diferença, quando é explicada anula-se nessa explicação, nesse sistema porque se tentou fixá-la numa identidade, num conceito que a define. Nesse momento, a diferença já não é isso que se definiu, e este é mais um dos seus aspectos paradoxais. O conceito de diferença em Deleuze é apenas iluminado quando se traz à reflexão o princípio de incerteza da física quântica. A definição da dualidade paradoxal dos elementos subatómicos harmoniza-se na perfeição como se um tivesse servido de modelo ao pensamento do outro. Este conceito será abordado com mais atenção num capítulo mais adiante.

A diferença como aspecto intensivo e como campo de possibilidade Da determinação, do entre, permite, induz a individuação, permite que os indivíduos se diferenciem em sistemas intensivos que são as vidas que criam158.

“O processo essencial das quantidades intensivas é a individuação. A intensidade é individuante, as quantidades intensivas são factores individuantes. Os indivíduos são sistemas sinal-signo. Toda a individualidade é intensiva: logo, em cascata, represante, comunicante, compreendendo e afirmando em si a diferença nas intensidades que a constituem.”159

“A individuação surge como o acto de solução de um tal problema ou, o que dá na mesma, como a actualização do potencial e o estabelecimento de comunicação entre os díspares. O acto de individuação não consiste em suprimir o problema, mas em integrar os elementos da disparação num estado de acoplamento que lhe assegura a ressonância interna. O indivíduo encontra-se, pois, reunido a uma metade pré-individual, que não é o impessoal, mas antes o reservatório das suas singularidades. Sob todos estes aspectos, acreditamos que a individuação é essencialmente intensidade que o campo pré-individual é ideal virtual ou feito de relações virtuais. É a individuação que responde à questão Quem?, assim como a Ideia respondia às questões quanto? Como? Quem? É sempre uma intensidade. A individuação é o acto da intensidade que determina as relações diferenciais a actualizarem-se, se acordo com linhas de diferenciação, nas qualidades e nas extensões que ela cria.”160

O conceito de diferença tem portanto a função de ser um campo que permite que haja o real, e que haja o pensamento, ocupa um lugar semelhante ao de Identidade e de Ser na metafísica clássica em termos de imagem mental, mas a sua estrutura no movimento do Eterno Retorno, conceito que Deleuze adapta de Nietzsche [N6] sem reservas e o toma como se fosse seu, é completamente diferente.

157 Deleuze, G., DR, op cit, pp. 369-370. 158 Deleuze, G., DR, op cit, p. 397. 159

Deleuze, G., DR, loc cit. 160

No documento O desejo maquínico em Gilles Deleuze (páginas 60-65)