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5. UM “MUNDO” DE PROJETOS CULTURAIS PARA JOVENS EM

5.2. A “narrativa de problemas” para obtenção de financiamento

Consideravelmente distinta à perspectiva apresentada acima, de criminalização da juventude de periferia, está a iniciativa de intervenção do FIB Comunitário. Esse caminho é a principal experiência que acessei pela Terceira Porta. Além de pesquisar projetos de outros, neste caso passei a integrar a execução de um projeto de intervenção. Nesta seção, portanto, trago reflexões “de dentro” do que podemos chamar de mundo de projetos para jovens em periferias, de seus bastidores, das decisões a serem tomadas e do “novelo” criado a partir dessa presença entrelaçada em campo.

O projeto está sendo desenvolvido pela ONG Visão Futuro em Fortaleza, com financiamento da Fundação Banco do Brasil e da Prefeitura Municipal de Fortaleza, e apoio da Universidade Federal do Ceará, onde a iniciativa foi registrada em 2013 como um projeto de extensão86. A iniciativa

propõe uma intervenção de desenvolvimento local tendo como foco o bem-estar psicológico da população de localidades do Grande Bom Jardim, considerando nove dimensões (compreendidas também como parâmetros de avaliação): padrão de vida, educação, saúde, vitalidade comunitária, uso do tempo, cultura, meio ambiente e governança.

Minha participação se fez de duas formas: como funcionário e integrante da equipe, de dezembro de 2012 a março de 2013, e como estudante membro do projeto de extensão, com atividades especialmente de maio a junho de 2013.

A sigla FIB, conforme apresentei brevemente na Introdução, remete à Felicidade Interna Bruta, uma concepção de desenvolvimento e bem-estar

86 Registrado na UFC como Processo FIB Comunitário Fortaleza, sob coordenação da professora

humano que tem origem, enquanto expressão, nos anos 1970, a partir de um discurso do rei do Butão para se contrapor ao Produto Interno Bruto (PIB), frequentemente utilizado como parâmetro principal para determinar o progresso e o bem-estar de uma nação87.

No Brasil, o FIB é implementado pelo Instituto Visão Futuro, sediado numa ecovila no município de Porangaba, estado de São Paulo, que funciona como “nódulo central” de uma rede de ONGs também chamadas Instituto Visão Futuro, espalhadas pelo país. Mais que um índice, o FIB é tomado por essas organizações como um processo de intervenção em prol de bem-estar psicológico e mudança, que envolve exercícios de respiração autoconsciente, meditação, jogos cooperativos e exercícios físicos. Com o FIB Comunitário, em específico, agregam-se atividades de mobilização pelo desenvolvimento local, com a realização de fóruns e metodologias de discussão.

Minha aproximação com o FIB e com a ONG Visão Futuro Ceará se deu por intermédio de minha orientadora, que é membro da entidade como voluntária. Em reunião com a nova gestão municipal eleita88 para apresentar a

proposta FIB e intenção de desenvolver um processo de FIB Comunitário em uma área da cidade, a nova gestão municipal eleita em Fortaleza indicou o Grande Bom Jardim. Prestes a dar início ao projeto, a equipe da ONG buscou uma pessoa para trabalhar meio período com comunicação online, organização de encontros, entre outras atividades.

Por envolver uma intervenção no Grande Bom Jardim e por eu ter assistido a uma conferência a respeito do FIB anos antes, minha orientadora perguntou se eu estaria interessado de concorrer à vaga. Após uma entrevista, fui selecionado e iniciei o trabalho. Em seguida, contudo, a Fundação Banco do Brasil retornou o texto do projeto, exigindo formatação em modelo próprio da Fundação, com orçamento detalhado, cronograma físico-financeiro, justificativa mais elaborada, currículos dos participantes, número de beneficiados por cada atividade proposta etc. Com essas e outras demandas, o meu trabalho passou a ser dedicado principalmente a essas tarefas. Para parte dessas atribuições, a

87 Seu significado e a sua abrangência foram sendo construídos e sistematizados especialmente

depois de 1999, com a criação do Centro de Estudos do Butão, visando ampliar mundialmente sua discussão e utilização.

88 As reuniões foram realizadas em novembro e dezembro de 2012, após as eleições de outubro,

equipe do FIB contribuiu tal como uma escola onde aprendi – na prática e correndo contra o tempo – trâmites acerca da elaboração de projetos. Para outra parte dessas atribuições, como na justificativa do projeto, fiz uso dos dados que já havia “levantado” para esta dissertação, no sentido de dar detalhamento à apresentação dos bairros do Grande Bom Jardim.

Nesse momento, a experiência de trabalho num escritório provocou um estranhamento. Afinal, eu estava fazendo uso de diversos dados quantitativos. Uma de minhas interpretações de pesquisa até então era justamente quanto ao uso de dados quantitativos no sentido de ressaltar as faltas, as ausências e as deficiências – algo que, em reuniões de orientação, chamamos de marketing de projetos.

Senti um incômodo considerável de fazer o que eu criticava: usar os dados quantitativos socioeconômicos e criminais para descrever o Grande Bom Jardim. Estava eu mesmo a fazer uso da “narrativa de problemas” para justificar a necessidade do financiamento da intervenção proposta? Nesse questionamento, passei a ponderar se o recurso a uma “narrativa de problemas” seria condenável em si mesmo, ou apenas em uma situação que “comprovadamente” (e aqui considero mais sensato usar aspas para ressaltar que processos de monitoramento e avaliação de intervenções não dispõem de um único parâmetro de indicadores e metas) não houve intenção de medir, de forma qualitativa ou quantitativa, algum tipo de “impacto”.

No panorama de pleitear por recursos financeiros limitados, apenas as causas mais necessitadas e mais bem organizadas estariam aptas a recebê-los. Nessa lógica, seria legítimo para o proponente descrever o “cenário” onde pretende desenvolver a sua proposta de intervenção. Tal “cenário de falta” situa e pode ser compreendido, também, em consonância com o entendimento de

espaços de vulnerabilidade social, onde os moradores se encontram vulneráveis a algo – algo que é negociado, disputado.

Passei a configurar minha crítica no sentido de risco iminente, que requer uma postura ética de alerta, para que nenhuma “narrativa de problemas” e seu “cenário de falta” ganhe tal força que se torne um mero recurso discursivo para conquista de financiamento.

Em alguns momentos, a relação orientadora-orientando também adquiriu outras feições. Para utilizar a referência de trabalho de campo e trabalho de escritório, que Roberto Cardoso de Oliveira chamou de “estar lá e estar aqui”, era revigorante estar no escritório do FIB e receber a equipe do Instituto de volta de atividades e visitas do projeto e ouvir deles, em especial de Geísa, comentários acerca do que viram, fizeram e ouviram.

Ao longo de todo o ano de 2012, durante nossas reuniões de orientação, havia um fluxo de conversação, que partia de mim com relatos de campo das andanças pelo Grande Bom Jardim, falando de questões que me pareciam importantes a partir da relação com os interlocutores. De Geísa, com base nos relatos e em notas, vinham interpelações, comentários, sugestões. A partir do momento em que o Projeto FIB começou a ser implementado, ela passou a ter uma vivência empírica no Grande Bom Jardim. Conheceu espaços que eu já visitara, como o CCBJ, o ABC do Bom Jardim e o CDVHS, assim como conheceu alguns interlocutores de minha pesquisa, como Luciano, que integrou o projeto, e Márcio, que foi parceiro importante em mais de uma ocasião.

Com a formatação do Projeto FIB Comunitário como um projeto de extensão da UFC, a relação de orientação foi alçada para outro patamar. Por estarmos com o mesmo “campo de pesquisa”, a interação tornou-se ainda mais fluida. Em um dado momento, foi a vez de a orientadora chegar do campo para o

orientando para contar histórias interessantes, como uma frase que nos instigou

ainda mais a pensar sobre o marketing de projetos em periferia. Durante uma visita a uma entidade que oferece cursos e formações culturais, esportivas e laborais para toda a população num bairro do Grande Bom Jardim, Geísa Mattos escutou uma das coordenadoras do projeto apresentar os diversos financiamentos recebidos nos últimos anos, o número de atividades realizadas e o número de pessoas participantes. A coordenadora justificou a necessidade de projetos no bairro por ser um “celeiro de violência” e, por fim, concluiu, orgulhosa, de que a “violência trouxe muita coisa boa pra gente”.

De um modo bastante espontâneo, foi proferida uma frase que resume a essência do marketing de projetos em periferia. A violência não é “usada”, “manipulada” para reverter em benefícios para os bairros através de financiamentos públicos, atuação de políticas públicas e programas de governo. A

condição difícil da violência, assim como a da pobreza, não é vivenciada somente para a falta, para um modo de vida de subsistência precária. Coordenadores de projetos, proponentes, lideranças comunitárias, entre outros, agem como “empreendedores sociais”, seguindo a nomenclatura usada por instituições internacionais, ou como “empreendedores morais”, no sentido de Becker (2008), pois são criativos e capazes de subverter a lógica imediata da “falta” para conquistar um modo de subsistência pessoal que potencialmente contribui para a melhoria da vida de outros no mesmo espaço geográfico.