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Cultura afro-brasileira e “parceria”: esboço de uma trajetória juvenil

6. NA TRILHA DOS PROJETOS DE JOVENS PARA JOVENS

6.4. Cultura afro-brasileira e “parceria”: esboço de uma trajetória juvenil

Luiza tem uma centralidade no Afro Arte que antecede o microprojeto MinC e que se entrelaça com sua trajetória. Nesta seção, apresento, a partir de

101 Luiza completou 18 anos meses depois, em 2012.

uma entrevista com ela, alguns aspectos de sua infância e adolescência em projetos.

Antes de completar 10 anos de idade, foi apresentada à capoeira por seu irmão mais velho, com quem praticava em casa. Ele fazia aulas de capoeira no projeto Bom Jardim com Arte – conhecido como BomJart – e Luiza também se inscreveu. O projeto era desenvolvido em associações comunitárias e escolas particulares espalhadas pelos cinco bairros do Grande Bom Jardim pela ONG Visão Mundial102. Luiza frequentou as aulas de capoeira na sede da União de

Moradores do Bairro Canindezinho (UMBC), e foi assim que conheceu Jane, que à época era presidente da associação.

Nos anos subsequentes, Luiza foi convidada a se tornar monitora da turma de capoeira das crianças, e substituiu o professor em alguns momentos de ausência. Além de capoeira, o projeto oferecia aulas de música, capoeira e futebol para crianças e jovens que frequentavam a escola. Paralelamente, promoviam discussões compreendidas como de “cidadania”, tais como direitos da criança e do adolescente, conselho tutelar e cultura afro-brasileira.

Quando tinha em torno de 13 ou 14 anos, Luiza também passou a ter aulas de danças afro-brasileiras no projeto BomJart, que têm uma relação histórica com a capoeira. Teve aulas de maculelê, uma dança afro-brasileira que frequentemente é praticada com porretes de madeira para produzir som durante a coreografia: bate-se um porrete contra o outro no ar, batem-se os dois porretes no chão, ou dois dançarinos batem seus porretes em roda, simulando um confronto. A prática da capoeira e do maculelê despertou em Luiza o desejo de conhecer outras danças afro-brasileiras, instaurando uma conexão entre corpo e cultura.

Para Pierre Bourdieu (2006), a história, como um processo de sedimentação no tempo, atravessa o processo de incorporação, o “tornar-se corpo”, que envolve uma dimensão coletiva objetivada na trajetória individual como um capital físico de disposições.

David Le Breton, ao discutir as abordagens ao corpo na sociologia, compreende que o “corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (2007, p. 7). Alargando essa compreensão para a

102 Visão Mundial Brasil é uma organização não governamental que desenvolve programas e

projetos para erradicar a pobreza e promover a justiça, e compõe a rede World Vision International, com atuação em 100 países.

dança e a cultura afro-brasileira, o aprendizado da coreografia tem no corpo um vetor semântico em “que nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva” (LE BRETON, 2007, p. 7). Em muitos sentidos, a formação de Luiza se deu junto à sua experiência no projeto

BomJart, considerando seu corpo, pela prática da capoeira e da dança, e sua

visão de mundo, pelas discussões vivenciadas no local.

No ano de 2010, por conta de um reajuste organizacional do

BomJart103, a UMBC foi retirada da “rede” do projeto, o que fez as aulas de

capoeira do Espaço Cultural cessarem. Todavia, Luiza já participava também de uma roda de capoeira que se reunia na Praça do Canindezinho e continuou praticando. Meses depois, Luiza teve sua primeira experiência em escrever projetos para pleitear financiamento público por meio de edital. Um estudante de História do bairro convidou Jane e Luiza para escreverem uma proposta de evento para o Edital das Artes 2010, promovido pela Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), para celebrar o dia da Consciência Negra, em 20 de novembro daquele ano. A proposta do rapaz era que o evento se chamasse “Afro Arte” e tivesse discussões e apresentações culturais sobre cultura afro-brasileira, história e racismo.

Foram contatados pela secretaria pois tinham sido aprovados em primeiro lugar na modalidade pleiteada, mas o número de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) usado para a inscrição estava com impostos atrasados, e isso impossibilitava a premiação. Para garantir o prêmio, precisariam informar outro CNPJ.

Luiza e Jane fizeram contato com conhecidos de organizações para conseguir apoio institucional para uso do CNPJ. Luiza procurou uma coordenadora do projeto BomJart, na ONG Visão Mundial, mas não obteve sucesso: “Foi uma decepção muito grande, porque eu tinha certeza que ela ia me ajudar. Pelos anos que a gente se conhecia, eu achava que era uma pessoa

certa... Achava que a gente tinha parceria, mas não foi bem assim”. Também não

103 Segundo a pesquisa de Illana Nunes (2012), o projeto BomJart foi criado em 2003, abrangendo

associações comunitárias nos bairros do Grande Bom Jardim. Entre 2011 e 2012, atendia 256 crianças, adolescentes e jovens em apenas três espaços “em período contrário da escola. No projeto, esses sujeitos estão imersos em atividades de arte-educação, tais como: música, teatro, dança, dentre outros” (NUNES, 2012, p. 2).

puderam contar com o estudante de História, que “sumiu, desapareceu total. Nem atendia mais as minhas ligações”, segundo ela.

O uso da palavra “parceria” se referia às atividades e colaborações que Luiza havia realizado junto ao BomJart ao longo de anos, que imbricava uma relação pessoal de afeto e de trabalho voluntário, e que trazia consigo uma expectativa de apoio mútuo e de troca: “ter parceria” era, nas palavras dela, “poder contar”, numa relação em que “um ajuda o outro”. A palavra “parceria” foi usada repetidas vezes em sua fala.

O evento de celebração do dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, foi somente possível porque Luiza e Jane procuraram outras “parcerias”, acionando pessoas com quem pensavam poder contar. De Márcio, professor de teatro e dança, conseguiram roupas e música; de um terreiro de umbanda localizado no Canindezinho, conseguiram objetos e peças emprestados para compor uma decoração; do pai de uma amiga de Luiza, conseguiram o carro para fazer o transporte dessas peças.

Acionando relações “pessoa a pessoa” (ou diádicas), compuseram o que Luiza chamou de “equipe de eventos”, mobilizada especialmente para essa ocasião, por meio de voluntarismo. Luiza e Jane ocuparam a zona primária das relações diádicas104 (BARNES, 1987; LANDÉ, 1977), acionando pessoas para uma causa comum, mas temporalmente específica, num modo de organização semelhante ao que Adrian C. Mayer (1987) chamou de “quase-grupos”, que se diferenciam de organizações formalizadas como grupos e associações. Para a realização do evento Afro Arte, acionaram “parcerias” de vínculos de amizade pessoal, assim como “parcerias” de vínculos ao tema, como as de pessoas vinculadas à umbanda, e uma vinculada profissionalmente ao teatro e à dança.

Em dezembro do mesmo ano, empolgadas com o sucesso do evento, Luiza e Jane tiveram conhecimento do Edital de Microprojetos Mais Cultura e decidiram tentar novamente, aproveitando que o edital permitia inscrição de

104 Barnes (1987) analisa a construção de apoio a candidatos em processos eleitorais a partir das

relações pessoais, chamadas diádicas (pessoa a pessoa), que constituem redes sociais. Nessa metodologia, pode-se analisar fluxo de informação, intensidade de vinculação de pessoas e zonas de influência, entre outros elementos. Acreditamos que tais conexões sejam importantes para a análise de outros modos de relação e de atividades coletivas em torno de práticas e ideais, não apenas em processos eleitorais. Para Landé (1977), uma relação diádica é uma relação direta envolvendo algum tipo de interação entre dois indivíduos, o que compõem redes sociais, que são, por sua vez, a base de grupos.

pessoa física – o que evitou problemas fiscais com CNPJ e rejeições de “parceria” com instituições com CNPJ. O Afro Arte foi pensado como um projeto de ensino de danças africanas para questionar o que percebiam como preconceito às práticas de cultura afro-brasileira. Márcio foi convidado para nova “parceria”, compondo a equipe como professor de danças. Quase um ano depois, em outubro de 2011, teve início o projeto.

Nessas conexões, podemos identificar uma relação entre a capoeira, a umbanda e as danças como práticas de cultura afro-brasileira no Canindezinho. Como vimos no Capítulo 2, tais identificações suscitaram tensões e falas depreciativas, durante a execução do projeto Afro Arte, entre garotas participantes, seus familiares e vizinhos, levando à diminuição no número de meninas. Nesse sentido, apesar disso ter gerado dificuldade de sustentação do grupo105, o conflito foi despertado como objetivo direto da intervenção do projeto,

dedicado justamente ao questionamento do preconceito e do racismo por meio da dança afro-brasileira. A reação de defesa dos outros moradores, especialmente daqueles relacionados à prática do catolicismo, foi o ataque pela vinculação depreciativa da umbanda à macumba, numa crença que restringe a macumba a uma prática de pensamento mágico essencialmente negativo e prejudicial. Desse modo, o uso da palavra “macumbeira” é feito com o objetivo de atacar reputações. As queixas de Jane focavam no aspecto da “violência da violência”, realçando um aspecto de ataque simbólico, que ela compreendia como “imoral”. Na minha primeira visita ao projeto, ela exclamou, exasperada: “Gente, quando Deus mandou o branco, ele mandou o preto também!”. Disse também: “estou trabalhando a questão do não-preconceito [...], mas eu queria um espaço pra discutir”. Acreditou que as escolas da região poderiam ser esses espaços, até porque o caso mais notório envolvendo uma participante do Afro Arte se deu dentro da Escola São Francisco, do lado da igreja, na Praça do Canindezinho, quando a garota brigou fisicamente com um garoto que a havia chamado de “macumbeira” no meio da escola, gerando uma chacota generalizada. Contudo, viu-se “batendo de frente com as escolas”, uma vez que nem todas aderiram à

105 A preocupação de Jane para o que iria dizer e como justificar para o MinC é produtiva de

reflexão, pois revela uma tensão que tinham intenção de confrontar, mas ao mesmo tempo poderia significar desinteresse dos jovens do bairro para a proposta ou falta de habilidade pedagógica na intervenção. Os dois últimos motivos seriam prejudiciais para o projeto, a temática e para os seus proponentes.

proposta de apresentações de dança e discussões, pensada por Jane, Márcio e Luiza, como uma maneira de sensibilizar outros jovens para as danças como parte de uma cultura brasileira. “É hipocrisia da Igreja, é muita hipocrisia da escola [...] Isso é tão revoltante!”, disse ela nesse encontro.

Enquanto as diferentes religiões aparecem como fator de dissenso e foco de tensões, julgando reputações especialmente no entorno da Praça do Canindezinho, as “parcerias” firmadas pelos integrantes do grupo garantem insumos de apoio.