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6. NA TRILHA DOS PROJETOS DE JOVENS PARA JOVENS

6.1. Jovens aprendem a fazer projetos

Conforme apresentei inicialmente, esta pesquisa não se constitui de uma forma linear; ela foi se fazendo em processo, intimamente atrelado às minhas inserções anteriores no Grande Bom Jardim, a partir da pesquisa monográfica e do tempo de trabalho no Centro Cultural Bom Jardim. Em um campo de pesquisa geograficamente vasto e de produções intensas como o Grande Bom Jardim, a questão de pesquisa pôde ser vista, ouvida e sentida em diversos momentos. Em certas ocasiões, o campo “chamava” de forma inesperada, sem que houvesse uma busca ativa de minha parte, e a pesquisa foi se expandindo, transbordando as delimitações iniciais. Foi necessário correr o risco, no sentido discutido por Jorge Larrosa Bondía (2012), e abrir a possibilidade de transformação da pesquisa.

A primeira experiência que apresento a seguir é um desses casos de uma situação que não foi buscada, mas que veio até mim e foi incorporada por mexer com a questão desta pesquisa e por me fazer pensar em outros aspectos do mundo de projetos, tais como a movimentação dos jovens pela cidade. A partir dos espaços de mediação onde são realizados os projetos e suas trajetórias em

projetos, ampliam suas redes sociais e trilham caminhos na cidade.

Ao final de setembro de 2012, recebi um convite para compor um painel de comentadores de projetos elaborados por jovens durante um curso de formação no Centro Cultural Bom Jardim. O convite foi feito primeiramente por

telefone por uma coordenadora do Projeto Jardim de Gente95, responsável por

grande parte dos cursos de formação artística e tecnológica do centro cultural. Certo de que seria uma ocasião importante para minha problemática de pesquisa e tendo em vista que eu havia sido professor do CCBJ em 2011, aceitei o convite e recebi, por correio eletrônico, algumas informações de como tinha sido o curso de formação sobre elaboração de projetos, assim como orientações para leitura e comentários dos projetos dos jovens participantes.

O curso, chamado Workshop Tirando Sonhos do Papel, havia sido uma parceria entre o Centro Cultural Bom Jardim e o projeto Geração Mudamundo – Jovens transformando sonhos em ação, da instituição Ashoka96. Em torno de 20

jovens, com idades de 14 a 24 anos – uma faixa etária específica da iniciativa – tinham participado desse workshop durante algumas semanas de agosto e setembro de 2012, com vivências, palestras e atividades para discutirem, planejarem e elaborarem projetos em grupo.

Eram seis grupos, e cada um estava apto a receber um “financiamento semente”97, segundo a linguagem do projeto Geração MudaMundo, de até R$

500,00 para a realização de seus “empreendimentos sociais”. Foram organizados dois painéis de apresentação de projetos, sendo três projetos pela manhã e três projetos pelo turno da tarde. Estive na composição do painel da tarde junto a três pessoas: uma designer de moda e ex-professora do Centro Cultural Bom Jardim; uma integrante da coordenação da escola de dança EDISCA98, e um designer de

moda e professor universitário. É importante ressaltar essa composição de

expertise, com pessoas da universidade, com experiência de “mercado” e de trabalho com oficinas em espaços culturais, e uma pessoa com experiência numa

95 O Fundo Estadual de Combate à Pobreza (FECOP) financia cursos e oficinas no Centro Cultural

Bom Jardim por meio do Projeto Jardim de Gente, que tem sido reelaborado e examinado anualmente para a concessão de recursos financeiros.

96 A Ashoka é uma instituição internacional sem fins lucrativos fundada em 1981 por Bill Drayton,

que tem sede na cidade de Arlington, Virgínia, nos Estados Unidos. Inicialmente criada para apoiar atividades na Índia, expandiu sua presença para outros 60 países, apoiando financeiramente pessoas que coordenam projetos sociais – os “fellows”. Em inglês, chama-se Ashoka Innovators for the Public, tendo sido traduzida como Ashoka Empreendedores Sociais; o termo e as práticas do “empreendedorismo social” foram difundidos globalmente em grande parte pela Ashoka, e Bill Drayton é considerado por muitos como o pai desse conceito.

97 A expressão equivalente em inglês, “seed funding” é bastante utilizada em editais e concursos

de apoio a iniciativas.

98 A escola de dança e teatro EDISCA foi criada em 1991 em Fortaleza com o nome Escola de

Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes, dedicada a oferecer aulas de balé e teatro para crianças e jovens de baixo nível socioeconômico,

entidade “do social” de renome para fazer comentários aos projetos. O painel foi construído para compor esse direcionamento de olhar.

Recebemos os “Planos de ação” de três projetos – Movimente-se,

Projeto Luz e Sonho de Retalho – que deveríamos avaliar segundo uma lista de

dez critérios:

1. Criado, liderado e gerenciado por jovens; 2. Faz diferença na comunidade;

3. Envolvimento de um Aliado (mentor escolhido pelas equipes); 4. Orçamento e planejamento realistas;

5. Padrões éticos da equipe;

6. Envolvimento dos ativos da comunidade; 7. Objetivos e metas claras e tangíveis;

8. Comprometimento e habilidades para obter êxito; 9. Plano de continuidade e sucessão;

10. Uso eficiente e criativo dos recursos (equilíbrio custo/benefícios).

Durante a abertura do Painel, que foi realizado nos moldes de uma audição, dentro do teatro do Centro Cultural Bom Jardim, de modo que os jovens proponentes deveriam apresentar suas propostas no palco, podendo fazer uso de recursos audiovisuais, e nós estávamos sentados de frente para o palco e de costas para as cadeiras da arquibancada. De certa forma, pela apresentação da coordenadora do projeto Geração MudaMundo e dos coordenadores do CCBJ, ficou claro que todos aqueles projetos receberiam o financiamento semente e que muitos dos critérios de avaliação sugeridos já haviam sido contemplados. Estávamos ali uma banca de comentadores ou de legitimadores externos, para fazer sugestões de incrementação.

O projeto Movimente-se estava representado por duas jovens que propunham a realização de aulas e de um espetáculo de dança para jovens de 12 a 18 anos. O Projeto Luz estava representado por um jovem e trazia a proposta de realizar workshops com temas de empreendedorismo e cultura em escolas do Grande Bom Jardim, visando organizar uma exposição/ação que impactasse na “transformação social e na geração de renda”. O projeto Sonho de Retalho estava representado por duas jovens irmãs, que trabalhavam com retalhos de tecido e iriam dar oficinas para até 15 mulheres sobre confecção de peças de roupa com retalhos para vender em feiras.

Dessas apresentações, a que chamou mais atenção com a do projeto

Sonho de Retalho, principalmente pela maneira com que Carla, uma das jovens,

emocional e o objetivo. À época, Carla tinha 19 anos e cursava Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará. No mesmo dia, criou uma página no Facebook para divulgar as atividades do projeto.

A partir da leitura dos Planos de ação, foi possível apreender o vocabulário específico que os jovens participantes precisaram dominar para adentrar o mundo dos projetos culturais, ou, na perspectiva adotada pela Ashoka, dos projetos sociais. Aspectos como justificativa, número de jovens participantes, objetivos, metas, recursos necessários, orçamento, resultados esperados e indicadores de avaliação foram apresentados para esses jovens durante o workshop. Além disso, foram-lhes ensinadas disposições corporais de apresentação em público: noções de discurso e fala, de postura e contato visual, e formas de organização de ideias. Noções, portanto, de educação do corpo para o desempenho de uma atividade afirmativa, de autoconfiança, que transmitem capital físico, ou hexis corporal, segundo Bourdieu (2006).

A apresentação pública das propostas fez parte, portanto, da avaliação que a coordenadora do projeto fazia dos jovens participantes: no Plano de Ação, demonstravam domínio dos aspectos técnicos dos projetos; na apresentação no Painel, demonstravam domínio de capacidades mínimas como jovens proponentes de projetos.

Nesse sentido, o workshop foi um meta-projeto, destrinchando e ensinando, para jovens, como ser proponentes de projetos. Naquele momento, a participação no Painel Ashoka me permitiu captar essa extensão do mundo de projetos, que tem recrutado jovens como proponentes. Na edição do workshop realizada no Centro Cultural Bom Jardim, essa atração se fez por meio da chamada economia criativa, ou economia da cultura, um conceito in the making, com múltiplas definições, adesões e contestações.

O Relatório de Economia Criativa 2010, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) traz diversas terminologias, com predileção para “indústria criativa” e “economia da cultura”, e analisa o impacto de atividades relacionadas a esse campo em diversos países.

O relatório apresenta uma compreensão de economia da cultura como:

[...] a aplicação de análise econômica a todas as artes criativas e cênicas e às indústrias patrimoniais e culturais, sejam de capital aberto ou

fechado. Ela se preocupa com a organização econômica do setor cultural e com o comportamento dos produtores, consumidores e governos nesse setor. (PNUD; UNCTAD, 2010, p. 5)

As diversas modalidades e motivações em torno da aplicação de estratégias de negócios à execução de práticas artístico-culturais, com o objetivo de gerar lucro e remuneração, tem sido objeto de estudos nas Ciências Sociais. O sociólogo português José Machado Pais (2012) acompanhou jovens que trabalhavam com histórias em quadrinhos e poesias em publicações independentes, percebendo um processo de “profissionalização da criatividade” ou “criativização da profissão”, marcado por “deslizamentos oblíquos” entre os universos da profissão e das artes:

[Os jovens] desenvolvem uma atitude estratégica em relação à aprendizagem, combinando tranches de capital cultural adquirido por via formal (escolarização), com aquisição de conhecimentos por via informal (redes de sociabilidade, por exemplo). As suas aprendizagens, de natureza cumulativa, se beneficiam da interpenetração de diferentes esferas da vida: escola, trabalho e lazer. (MACHADO PAIS, 2012, p. 148)

Enquanto Machado Pais ressalta, em Portugal, itinerários juvenis mais “autônomos” – e frequentemente esses jovens vinham de famílias com condições econômicas favoráveis –, no Grande Bom Jardim encontram-se situações de estímulo à prática da “profissionalização da criatividade” por meio de projetos que promovem a aprendizagem de escrita de projetos para a economia criativa. Retomando o workshop da Ashoka e os critérios de avaliação dos Planos de Ação, vê-se o critério de mobilização de “ativos da comunidade” e produções locais que possam ser tomados como fonte de retorno econômico. Também vemos que firmar parcerias apresenta-se como um passo importante para consolidar um projeto. Contudo, vê-se uma conexão entre transformação social e geração de renda, a partir da qual seria possível gerar impacto e “mudar o mundo”. Há aqui uma especificidade socioeconômica para o Grande Bom Jardim, que pode ser estendida para outras periferias, que é a conexão entre mudança social e renda. As três iniciativas de jovens apresentadas no Painel Ashoka trouxeram esse entrelaçamento de impacto cultural e econômico, que é perpassado por valores morais.

Tal é a relação que encontramos também no mundo dos projetos culturais para jovens em periferias, em que ressaltamos as atividades de projetos culturais que almejam prevenir violência e que se constituem como práticas

profissionais com remuneração para seus proponentes. Nesse sentido, estamos abordando projetos que são simultaneamente uma intervenção “cultural”, com um potencial impacto no local realizado, assim como uma atividade econômica/profissional para o seu proponente.

O Painel Ashoka também nos remete a considerar a extensão do

mundo em seu aspecto territorial e intergeracional. Ao longo das últimas décadas

o perfil do proponente de projetos em periferias tem sido modificado: proponentes de fora das periferias aos poucos perderam predomínio e passaram a dividir espaço com moradores proponentes, que receberam, em certas situações, reconhecimento maior. Porém, os moradores adultos das periferias estão também “perdendo espaço” nos projetos com jovens, uma vez que os próprios jovens estão conduzindo projetos e iniciativas. Esse perfil é territorial, pois há uma tendência de se ter mais proponentes moradores, ou proponentes “de fora” que conseguem desenvolver uma experiência reconhecida no bairro; e percebemos uma tendência de mudança etária nos projetos para jovens, no sentido de que jovens estão coordenando projetos para jovens – de jovens para jovens. No entanto, é preciso ressaltar que passam por transmissões de saberes técnicos e de práticas culturais com proponentes e elaboradores de projetos mais experientes, com trocas intergeracionais, que aos poucos preparam os jovens para alçar voos mais altos em projetos.