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2. GOVERNOS, PERIFERIAS E O DISCURSO DA VIOLÊNCIA

2.5. As juventudes de periferias por meio de números

Por sua semelhança de local de origem, idade e cor de pele, Danilo e Alex ‘Terror’ poderiam ser vistos, em analogia, como o João e o Joãozinho. As diferenciações se dão em termos de moral, mobilizando valores compartilhados e valores contrastantes.

Em termos cotidianos, esses atributos de diferenciação desempenham valores fortes e influentes. Estão intimamente atrelados a valores que pulsam no país, especialmente em face à violência e à criminalidade, que foram alçadas à condição de problemas sociais mais graves do Brasil. Por conta disso, acionam movimentos da sociedade civil e políticas de segurança pública, assim como

instigam a produção acadêmica41 com pesquisas de base qualitativa e

quantitativa, que contribuem para o conhecimento da problemática.

Programas de governo, políticas públicas e iniciativas da sociedade civil organizada buscam desenvolver intervenções que diminuam as ocorrências de violência física e de criminalidade violenta, compreendidas como “relações conflituosas, roubo, furto, lesão corporal e mortes violentas, como os homicídios” (MOTA BRASIL et al, 2010, p. 04).

Segundo o Mapa da Violência 2013, “[...] os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 24 anos no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos” (WAISELFISZ, 2013, p. 09). Ainda segundo o Mapa, fazendo referência a dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, morreram em 2011 por homicídio no Brasil 52.198 pessoas, das quais 27.471 (52,63%) eram jovens de 15 a 24 anos - destes, 71,44% eram negros (considerados aqui como pretos e pardos, na concepção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e 93,03% eram do sexo masculino (WAISELFISZ, 2013).

Atualmente as juventudes têm lugar de destaque na produção acadêmica, com a criação de grupos de pesquisa42 e grupos de trabalho (GTs)

em eventos especializados. Essa tendência de estudo das juventudes está atrelada, também, aos investimentos maciços em políticas públicas de juventude e programas ligados à educação de nível universitário. O Governo Federal, principalmente desde a primeira gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), tem investido na formação educacional da juventude com o Programa Universidade para Todos (ProUni), a expansão dos Institutos Federais de educação e o Programa Ciência Sem Fronteiras (CsF), além do incentivo às ações afirmativas sociais e raciais em exames de ingresso às universidades.

41 O Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da Universidade de São Paulo são alguns dos centros nacionais de referência na temática.

42 Destacamos a sessão de trabalho Sociologia da Adolescência e da Juventude no encontro da

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS); o Observatório Jovem (Universidade Federal Fluminense), o Laboratório das Juventudes e o evento Colóquio Diálogos Juvenis (ambos da Universidade Federal do Ceará).

A juventude se tornou, pelo discurso estatal brasileiro, mais uma faixa etária entrecortada na vida, depois da infância (de 0 a 12 anos) e da adolescência (de 12 a 18 anos), pela criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, e depois da velhice/“terceira idade”, que o Estatuto do Idoso, de 2003, reconhece na idade igual ou superior a 60 anos.

Até recentemente, a faixa etária da juventude considerada pelas administrações públicas era de 15 a 24 anos de idade43, conforme orientação da

Organização Internacional da Juventude (OIJ). Desde 2013, com a aprovação do Estatuto da Juventude, amplia-se para 15 a 29 anos.

Como discutiu Pierre Bourdieu (2003) em entrevista, portanto, a “juventude” não é uma fase de vida delimitada meramente por um aspecto biológico; trata-se de uma palavra cuja semântica é negociada em cada tempo e espaço. Desse modo, as fases de vida e as faixas etárias são construções dinâmicas. As fases da vida são “resultado de dinâmicas sociais mutantes e de constantes (re)invenções culturais”, como aponta a antropóloga Regina Novaes (2008, p. 3), permeadas por uma diversidade de mitos sobre ser jovem, que têm ressonância a cada momento histórico.

Tais redefinições são expressivas de negociações em meio a embates, perpassadas no Brasil por questões referentes ao mercado de trabalho e ao direito à meia-entrada em eventos. Se, por um lado, as faixas etárias são construídas em referência à perspectiva adultocêntrica, por outro, visam diminuir o fosso de direitos e deveres entre as fases da vida. Ademais, para o discurso estatal, a delimitação de faixa etária é importante para especificar público-alvo de políticas públicas e favorecer metas, monitoramento e avaliação de programas.

Os modos de simbolizar a vida e seus momentos são, também, permeados na juventude por práticas compartilhadas, que o sociólogo português José Machado Pais chama de “culturas juvenis”. Para ele, há uma relação frequentemente descompassada entre as performances juvenis e o modo como as políticas de juventude são concebidas, uma vez que:

[...] tendem a estandardizar as transições dos jovens para a vida adulta – definindo escolaridades mínimas, circuitos escolares, formação profissional, políticas de emprego, mas os jovens tendem a autonomizar as suas vidas através de “buscas autónomas” de trajectórias que nem

sempre se encaixam nas políticas prescritivas que tendem a estandardizar as transições. (PAIS, 2001, p. 8)

A faixa estandardizada também contribui para “construir” a juventude, já que especifica a abrangência das políticas realizadas e dá pistas para a percepção do que é ser jovem.

As posições sociais, as culturas juvenis, as etnias, as crenças religiosas, entre outros atravessamentos da vida que constituem as trajetórias, fazem-nos falar de juventudes, no plural. Nesta pesquisa, os projetos culturais para jovens têm uma vinculação simbólica e espacial demarcada – falamos, aqui, de jovens moradores de periferias urbanas.

As periferias urbanas são repetidamente narradas sob o signo das ausências – habitação e infraestrutura precárias, mobilidade urbana limitada, renda baixa, entre outros elementos. As juventudes de periferia crescem na fricção com essas qualificações espaciais, que orientam seus modos de navegação social pela cidade e suas trajetórias de vida.

A respeito das juventudes que moram em bairros “de periferia”, o sociólogo Diogo Fontenele (2013) não se refere necessariamente a espaços geográficos distantes do centro da cidade, mas, sim, de espaços socialmente periféricos, uma vez que seus moradores habitam as periferias da vida, “no sentido de sofrerem formas distintas de exclusão, de destituição de direitos. Tenho clareza de que tais exclusões e destituições dão-se de diferentes formas, levando-me a designar juventudes pobres, no plural” (FONTENELE, 2013, p. 36).

A reflexão, contudo, não deve vir para reificar exclusões, atribuindo um vazio pressuposto aos pesquisados; pelo contrário, deve contribuir para a problematização. Tal crítica está presente na pesquisa de Octávia Danziato (1998) sobre a prática social de organizações não-governamentais com adolescentes no estado do Ceará. A autora constata que pessoas e grupos propõem projetos, oficinas e atividades para jovens “de periferia” tendo como base suas motivações morais e civilizatórias, visando preencher uma falta que estes atribuem aos “outros”.

Embora a noção de “periferias da vida” (FONTENELE, 2013) seja fértil, é importante não tomá-la para atribuir uma falta aos jovens moradores de periferias. Compreendê-los apenas sob o signo da falta parece lhes “projetar uma

ignorância absoluta”, como alertou Paulo Freire (1980) para o risco de se praticar a ideologia da opressão. Minha entrada no Grande Bom Jardim por meio do projeto FIB possibilitou ver de perto, junto aos jovens estudantes da escola CAIC que participavam do projeto, que quase todos possuíam celulares, e muitos com modelos novos e smartphones. Há uma diversidade de modos de ser jovem e, nas periferias, as faltas que enfrentam em seus cotidianos não são uniformes, perpassando diversos âmbitos.

A antropóloga Regina Novaes (2006) compreende que, no seio dos projetos voltados especificamente para jovens moradores de periferias, muitos constituíram suas trajetórias de vida. Há jovens que formam suas subjetividades e modos de convívio social por meio de sua participação em projetos.

Embora tomemos como dado que os “projetos culturais” apresentam uma proposta de alguma maneira educacional e formativa, atravessada por valores morais, que se poderia chamar de pedagógica, a pesquisa não foi iniciada com a adoção de perspectiva pré-concebida de educação ou pedagogia. Considerou-se mais relevante e enriquecedor para a pesquisa construir uma interpretação durante a pesquisa, com base na vivência e no acompanhamento dos “projetos culturais” pesquisados.

A seguir, no capítulo três, adentraremos o cotidiano de pesquisa junto aos cinco microprojetos culturais, aprofundando suas temáticas, as moralidades em jogo e as pedagogias que deram corpo a essas experiências entre proponentes e participantes.