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3. O COTIDIANO DOS PROJETOS CULTURAIS PARA JOVENS

3.11. Panorama dos projetos pesquisados

A pesquisa empírica demonstrou que os participantes não eram somente jovens de 15 a 29 anos, conforme fora visado originalmente pelo edital. Quatro dos cinco microprojetos visitados “flexibilizaram” o critério de faixa etária: três deles (Afro Arte, Cores e Tambores e Cidadão Brincante) abriram para a participação de jovens e crianças com menos de 15 anos, e o microprojeto Mãos

Criadoras abriu para pessoas com mais de 29 anos.

Em quatro dos cinco microprojetos (Afro Arte, Cores e tambores,

Cidadão Brincante e Mãos Criadoras) pude acompanhar encontros de ensino e

prática e foi possível vislumbrar aspectos da pedagogia que se desenrolava, assim como os suportes utilizados (lousa e giz, vídeo, moldes, ensaio, caderno etc.). Alan e Márcio foram dois proponentes que citaram influência da pedagogia de Paulo Freire na concepção e na condução de seus trabalhos.

Na intenção de interagir com os participantes, encontrei limitações no modo de pesquisar que se baseia em perguntas e na expressão em palavras. Se há experiências indizíveis na vida, que não se traduzem diretamente em nosso

repertório linguístico, durante a infância e a juventude tal processo se mostra mais fortemente.

Nas visitas iniciais, pude sentir desconfiança com a minha presença de observador, que dissipava quando eu participativa das conversas e dos momentos de descontração. Percebi que também se expressavam entre si por meio de sinais corporais de contentamento e descontentamento, como olhares atentos, conversas paralelas, risadas e brincadeiras de correr (especialmente entre as crianças), que se davam antes, durante e depois dos encontros dos microprojetos. O entrelaçamento entre o lúdico – aqui entendido tanto como as brincadeiras entre os participantes, como também um componente da pedagogia das práticas e ações artístico-culturais – e a amizade age como ânimo para os participantes. Por um lado, o lúdico das práticas artístico-culturais depende da pedagogia do professor do projeto; por outro, as amizades são um desdobramento provável, porém não-controlável.

As práticas artístico-culturais em projetos potencializam, no entrelaçamento do lúdico e da amizade, a vivência coletiva de um sensível entre crianças e jovens. O filósofo francês Jacques Rancière introduziu, nas discussões sobre arte e política, a noção de partilha do sensível, que se mostra fértil nesta investigação. Para o autor, os enunciados

[d]efinem modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de intensidade sensível. Traçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos do fazer e modos do dizer. Definem variações das intensidades sensíveis, das percepções e capacidades dos corpos. Assim se apropriam dos humanos quaisquer, cavam distâncias, abrem derivações, modificam as maneiras, as velocidades e os trajetos segundo os quais aderem a uma condição, reagem a situações, reconhecem suas imagens. (RANCIÈRE, 2009, p. 55)

Os enunciados - ou, de modo geral, a linguagem – definem modelos de palavra e de ação que dão formas à experiência a partir de modos de ver, dizer, ser e fazer, num regime do sensível. Entre crianças e jovens, que estão a aprender os enunciados já existentes e que também criam seus enunciados sob a forma de gírias e expressões, encontram-se imersos em um regime aberto do sensível, que possibilita o indizível. Construído em partilha, foi no cotidiano de cada projeto que se forjaram mapas sensíveis e de intensidades. Essas intensidades realçavam, por sua vez, modos singulares de dedicação e

situações como tomar nota em caderno das orientações ensinadas e a postura corporal para toque de violão ou flauta (jovens do Cidadão Brincante), o olhar atento, as brincadeiras de entrosamento e o cansaço físico dos ensaios e (Afro

Arte), os movimentos compenetrados, a perda de paciência com o descompasso

do toque de algum participante e o júbilo de concluir a sintonia com um aplauso do professor (Cores e Tambores).

Quatro microprojetos foram capitaneados por moradores do Grande Bom Jardim, com exceção de um microprojeto (Mãos Criadoras), que tinha como idealizadora e professora uma pessoa com experiência de trabalho em projetos no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ). Assim como ela, os proponentes de dois microprojetos (ConecTV e Cores e Tambores) eram professores do Centro Cultural Bom Jardim à época, e o professor de dança do projeto Afro Arte também era professor do CCBJ.

Pelo acompanhamento dos encontros dos projetos, e de conversas entre proponentes e participantes, despontaram valores, tais como a promoção da cultura afro-brasileira e o combate ao preconceito, a geração de renda, a religião, a visão “crítica” sobre o bairro. Contudo, esse entrelace por vezes gera atritos entre proponentes e participantes. Nesse sentido, ao atrelar o rock ao uso de bebidas e drogas, por exemplo, como foi citado por uma proponente, ignora-se o poder de identificação e de atração da música. Ao invés de reconhecer o rock como algo do interesse daqueles jovens, o caminho desejado pelos proponentes do projeto foi o oposto, ao tentarem evitar que os dois jovens participantes do

Cidadão Brincante continuassem apreciando o gênero musical.

Por vezes, a orientação do proponente pode não encontrar solo fértil e causar frustração. Em entrevista sobre os caminhos juvenis no bairro, Alan recordou-se, com pesar, de uma ocasião em que divulgou uma seleção de bolsa remunerada para fazer cursos do Programa Nacional de Inclusão de Jovem (ProJovem): “Eu saí espalhando pela comunidade pra galera que era jovem. Tu pensa que a galera foi? Eu falei: ‘Tá tendo inscrição em tal canto, tal hora, só chegar lá’. Peguei o papel, mostrei pra eles e tudo. Não vão, cara...”. O proponente agiu na tentativa de orientar esses jovens para o que considera a melhor conduta, ou a melhor oportunidade, mas não houve a reverberação.

Os “mobilizadores” dos cinco microprojetos tinham vínculos “flexíveis” de trabalho, o que na realidade possibilitou o seu envolvimento em atividades e trabalhos paralelos de curta e média duração, tal como os microprojetos. Os cinco microprojetos pesquisados foram realizados principalmente em dias úteis (com exceção do Cidadão Brincante, com um dos encontros aos sábados, e do

ConecTV, que organizava seu cronograma de acordo com as atividades que

pretendiam gravar), nos turnos da manhã e da tarde principalmente (com exceção do Afro Arte, que tinha encontros no final da tarde até o começo da noite).

Os proponentes e professores dos cinco microprojetos observados apresentavam experiência prévia de trabalho em projetos sociais de associações de moradores, em projetos culturais e com oficinas em espaços culturais, como o Centro Cultural Bom Jardim. Mais ainda, parte dos proponentes havia participado, anos antes, quando eram crianças e/ou jovens, de projetos em município do interior (Luciano) e em bairros da periferia de Fortaleza (Luciano, Alan e Rodrigo). Alan, por exemplo, ainda na faixa etária governamental de juventude, passou de jovem participante para jovem proponente de projetos para jovens. Luciano também passou de jovem participante para professor e proponente de projetos, o que instiga a pensar na continuidade dessas práticas entre gerações, na composição do “mundo” de projetos culturais para jovens.

Outros, como Jane e Márcio, tinham tido mais de 10 anos de experiência com projetos e aulas para crianças e adolescentes em escolas, cursos e projetos. Dessa forma, encontra-se um traço intergeracional relevante: por um lado, assinala um saber adquirido e acumulado que se renova e, por outro, demarca a passagem de jovem participante para adulto proponente de projetos. Jane, como liderança comunitária, representou o projeto Afro Arte e favoreceu a realização do projeto Mãos Criadoras, trazendo para o “mundo” dos projetos a importância que as lideranças comunitárias ainda têm nos bairros de periferias urbanas61.

61 A associação entre diferentes modos de organização de ações coletivas em periferias urbanas é

relevante em estudos políticos e urbanos e requer uma contextualização que, todavia, não caberá nestas páginas. Para um aprofundamento histórico, recomenda-se o livro “O reverso das vitrines”, de Irlys Barreira (1992) e a coletânea “Brasil urbano: cenário da ordem e da desordem”, organizada por Elimar Nascimento e Irlys Barreira (1993), que analisam as lutas encampadas em periferias urbanas e a atuação de lideranças comunitárias nos anos 1980 no país.

Retomando Rancière (2009), é pertinente assinalar que a construção compartilhada do sensível, entre o dizível e o indizível, faz-se na relação com outras pessoas, em mediações com outros jovens, seus familiares, bem como agentes mais tradicionais nas atividades comunitárias, como vizinhos e lideranças comunitárias, demarcando o componente das relações intergeracionais.

Nos encontros do projeto Cidadão Brincante, familiares adultos marcavam presença, ora por vontade própria, ora por conta do chamado de Conceição, conforme dito anteriormente. A mãe de um garoto fez-se presente em duas de minhas visitas e uma vez estava o pai de dois garotos participantes. Uma causa que favoreceu a presença deles foi a proximidade de suas residências com a sede da organização, localizadas na mesma rua da comunidade Nova Canudos.

Há proponentes que se profissionalizaram na elaboração e na execução de projetos sociais/culturais, e esta é a temática a ser aprofundada no capítulo seguinte.

4. AS REDES DE PROPONENTES E SUAS ARTICULAÇÕES COM