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2. GOVERNOS, PERIFERIAS E O DISCURSO DA VIOLÊNCIA

2.3. Polícia cidadã e “prevenção”

Dentre os problemas evidenciados no Brasil pelos textos institucionais do PRONASCI, constrói-se um enfoque ao “jovem que se encontra em situação infracional ou corre o risco de ser levado para o mundo do crime”. Para um “novo paradigma de segurança pública”, com “fortalecimento institucional do Estado para atuar preventivamente”, consideraram necessária “uma nova concepção de atuação policial com o objetivo de fortalecer os laços comunitários e criar condições para o acesso a políticas públicas sociais” (BRASIL, 2009, p. 2).

Agrega-se ao “ser polícia” uma dimensão “cidadã” através de (1) interações lúdicas e “culturais”, nas quais eles podem se aproximar de crianças e adolescentes; (2) formações em direitos humanos. Pela ludicidade do “cultural”, a imagem do policial recebe uma camada adicional de sentido pela tentativa de ser envolvida pela positividade, por interações que são construídas com crianças e jovens. Daí também a importância de ter apresentações desses projetos em eventos públicos da polícia.

Um evento do PRONASCI, realizado em 19 de agosto de 2011 no Centro Cultural Bom Jardim, mostrou-se um momento importante para

compreender tensões entre discurso e prática. Reuniram-se policiais militares, agentes da guarda municipal e representantes da Prefeitura e do Governo Estadual para discutir o PRONASCI na perspectiva da segurança pública no “território de paz” do Grande Bom Jardim.

Com atraso de 1 hora, diversos policiais estavam de pé, conversando, enquanto uma dúzia de homens e mulheres vestindo trajes de escritório conversavam, sentados. A abertura foi enfim conduzida com a apresentação de um grupo de dança e capoeira formado por jovens do bairro Granja Lisboa. Em seguida, foi a vez de um coral formado por crianças de um projeto coordenado por policiais nos bairros Conjunto Ceará e Granja Portugal. O grupo chamava-se “Turma do Ronda”, em referência ao programa Ronda do Quarteirão da Polícia Militar do Ceará.

Durante as apresentações, uma mãe filmou a apresentação de capoeira com o celular, e uma moça tirou diversas fotos da banda musical também com seu celular. As apresentações foram aplaudidas, e coube ao condutor do evento ressaltar o “trabalho cidadão e dedicado dos policiais” com as crianças e jovens participantes. Convidou, então, que policiais militares se dirigissem a uma sala para discussão com articuladores do grupo.

Segui para esse pequeno auditório também. À frente, posicionaram-se uma advogada, o coordenador de direitos humanos do Governo Estadual, o chefe do Batalhão de Polícia Comunitária, o articulista do PRONASCI José Erivan, um coronel, um major e um representante da Defesa Civil do Município – depois chegaram três pessoas atrasadas, compondo uma mesa de dez pessoas. Cada um desses fez um breve fala de abertura, e outros representantes também pediram a palavra.

O chefe do Batalhão de Polícia Comunitária ressaltou o trabalho realizado, “estreitando laços com a comunidade”32, pois “a prevenção que é a

[verdadeira] arma”. “O Ronda [do Quarteirão] é responsável por uma parcela” da “missão de preservação da vida”. Também enfatizou que “não adianta pegar um bandido e bater nele”.

Um comandante falou das dificuldades do trabalho, pois o tráfico “pega o cara pelo sentimento moral do medo, pela insegurança dele”. O “traficante dá

32 Anotações das falas, feitas em tempo real durante a reunião.

dinheiro, tem mulher, tem carro...”. O secretário de Direitos Humanos da Prefeitura Municipal falou que “há uma diferença entre o sentimento de insegurança e a realidade de insegurança”, e defendeu que a relação direitos humanos e polícia “se vê na prática”, que “não há fórmula de fora”.

Antes do fim das falas, alguns policiais e guardas municipais se levantaram e saíram da sala. Alguns retornaram, outros ficaram conversando ou discutindo do lado de fora. Após as falas, abriu-se para uma conversa com policiais e guardas presentes.

Um policial falou dos desafios de trabalhar “numa comunidade carente destas, que não é favela não, é comunidade carente, que a gente vê que faltam coisas”, engajando numa visão positivada da palavra comunidade. Concluiu sua fala vangloriando uma “nova mentalidade da polícia”, e que era preciso “tentar mudar a visão histórica da polícia”.

Um jovem PM criticou a atuação dos representantes do Poder Executivo e da imprensa, que expõem os erros e se pautam pelos índices de criminalidade: “Se todas as reclamações da sociedade e da mídia recaem sobre o policial, ele está sob pressão”.

O PM que estava em pé próximo a mim aproveitou o momento para criticar algumas posições sobre o trabalho da “nova polícia”, que para ele eram menos eficazes: “Não existe isso. Não tem como diminuir índice de criminalidade sem as abordagens! Não tem como”. O jovem PM voltou a falar: “Estamos na berlinda, sofrendo no dia a dia nas ruas com essa pressão social”.

Entre discurso e prática, a constituição de uma “polícia cidadã” mostrou-se assim, pelos próprios policiais, como um processo tenso e frágil. Esteva envolta em contradições, entre as práticas assentadas em anos de formação prévia que ensinam abordagem, critérios de suspeição e imposição de autoridade, e, em tempos recentes, as críticas e o crescimento da perspectiva dos direitos humanos33.

Em fevereiro de 2012, em conversa com um coordenador de projetos do bairro, perguntei como ele pensava a relação entre os projetos culturais e o

33 Teresa Caldeira (2003) analisou as tensões entre essas perspectivas em São Paulo nas

PRONASCI. A sua perspectiva remontava a outro momento do programa, pois havia sido facilitador no projeto Trilhos Urbanos, em 2010, em turmas de teatro.

Considerava o programa um avanço, por pensar segurança pública como “prevenção” e buscar a formação de uma polícia cidadã. Todavia ressaltou que a polícia ainda era o foco da segurança pública, fato que ele havia questionado durante um evento do PRONASCI. Para ele, os projetos não trazem mudanças imediatas em números, mas têm uma importância local, e questionou os eventos do programa: “Os projetos culturais são chamados para a abertura dos eventos, como se fossem a cereja do bolo. Um comandante respondeu isso [certa vez], que o investimento em polícia era o bolo, e os projetos culturais eram a cereja, a decoração” (FIGURA 4):

Figura 4 – “A cereja do bolo”, com diferentes proporções entre bolo e cereja, ou seja, de ações policiais e de governo e as apresentações de projetos culturais

Fonte: Desenvolvida pelo autor (2014)

Tal como no evento da polícia relatado acima, os projetos são chamados para “decorar” os eventos, como vitrine? Para a polícia, apresentar crianças e jovens tocando instrumentos musicais e cantando seria um adorno?

O PRONASCI trabalhou com a meta de reduzir a taxa de 29 homicídios por 100 mil habitantes – de 2007 – para 12 homicídios por 100 mil habitantes, num período de quatro anos, até 2011. Para alcançar a meta, o PRONASCI investiu mais de seis bilhões de reais em segurança pública no período.

Segundo levantamento de Silvério e Medeiros (2011, p. 6), comparando os dados de janeiro a julho de 2011,

[...] com os de igual período de 2010, todos os crimes mais recorrentes tiveram suas estatísticas diminuídas. Em 2010, ocorreram 73 homicídios,

320 lesões corporais, 900 roubos a pessoas, 68 roubos a residências. Neste ano, foram 64 homicídios, 310 lesões corporais, 800 roubos a pessoas e 40 roubos.

As autoras afirmam que essa diminuição representava 17% das ocorrências no Grande Bom Jardim no período inicial de execução do PRONASCI, o que era bastante perto da meta de redução de 20%34.

O Governo do Estado do Ceará foi acusado35, em 2012, por um

professor do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, de não disponibilizar os dados completos de latrocínio e mortes indeterminadas para a formulação dos dados da violência no estado. As estatísticas estariam sendo maquiadas para o Ceará parecer mais exitoso no “combate à violência”?

No final de dezembro de 2013, os jornalistas da editoria de polícia do jornal Diário do Nordeste fizeram um levantamento dos casos de homicídio nos registros das coordenadorias de Medicina Legal (COMEL) e Integrada de Operações de Segurança (CIOPS), afirmando:

Contudo, mesmo diante da melhoria na estrutura da Polícia Civil (delegacia) e o incremento das operações de rua (feitas pela PM), os assassinatos ainda pairam como um fantasma que insiste em abalar a tranquilidade do Grande Bom Jardim, na zona Sul da cidade.

Com o encerramento do PRONASCI, é incerto considerar o estado dessa “nova polícia” que se almejou construir, tampouco esse é o enfoque desta pesquisa. O intuito é compreender as dinâmicas dos projetos culturais nessa interface com os discursos de segurança pública e prevenção à cidadania, que financiam experiências culturais para jovens. Esse é o tema da próxima seção.