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6. NA TRILHA DOS PROJETOS DE JOVENS PARA JOVENS

6.7. Zine como estratégia metodológica

Os fanzines – também chamados de “zine” ou “a fanzine”, no feminino – são “[...] uma publicação independente e amadora, quase sempre de pequena tiragem, impressa em mimeógrafo, fotocopiadoras ou pequenas impressoras

offset”, conforme o apresenta Henrique Magalhães (2003, p. 27, grifo do autor). Oficinas de zine têm sido realizadas em experiências educacionais no Brasil desde o início dos anos 2000, em oficinas, projetos e em escolas. Para Ioneide Nascimento, que os compreende como artefatos culturais, educativos e pedagógicos, usar zines em sala de aula “permite que os estudantes assumam seu papel de sujeitos [do processo educacional] e se envolvam com mais entusiasmo” (NASCIMENTO, 2010, p. 132). Para a autora, os zines têm uma importância na “[...] constituição de valores éticos e estéticos no exercício da cidadania e constituição dos educandos” (NASCIMENTO, 2010, p. 132) e contribuem para a ampliação de horizontes e inserção crítica na educação.

Considerando esses aspectos e, ainda, as características técnicas do

fazer de um zine, que pode ser inteiramente digital ou assumir um processo

manual, composto de colagens, escritos e desenhos, poderia ser tomado como uma metodologia de pesquisa. O processo de feitura do zine possibilitaria dados para a pesquisa e uma produção das garotas para potencializar o próprio grupo e

seus anseios. Personalizada, feita pelas próprias integrantes do grupo e em formato “de bolso”, a publicação poderia ter exemplares distribuídos em apresentações públicas como forma de divulgar o grupo e suas ideias simultaneamente, e de forma pouco onerosa.

Como estratégia metodológica, o processo de criação do zine possibilitou um momento de interação e, portanto, um momento de pesquisa. O zine, como produto, se tornou um material de pesquisa, em que é possível ver temáticas, imagens e aspectos da formação do grupo que foram considerados importantes por suas participantes. O zine se tornou, também, um registro pessoal e subjetivo para elas, assim como um material de divulgação do grupo. Desse modo, modificou minha forma de estar em pesquisa, pois, tal como no momento de “entrar na dança”, o ato de facilitar a produção de um zine cria uma aproximação mais simétrica e colaborativa. Com a proposição da oficina, então, procurei me inscrever na relação identificada por Luiza como sendo de “parceria”, contribuindo para o grupo com a impressão de mais de 300 exemplares do zine.

Antes de dois ensaios, nós nos sentamos – Luiza, Isabela, Liana e eu – para apreciar zines que levei, decidir número de páginas e formato e planejar o conteúdo do zine do Afro Arte. Elas tinham uma pasta com panfletos de eventos anteriores, fotografias, calendário de datas importantes para a história do negro no Brasil e um caderno que compunha um “diário de bordo” coletivo das aulas com Márcio, com comentários sobre cada aula. Num ensaio transformado em oficina de zine, elas decidiram o que era mais importante para ser incluído naquelas páginas: em texto, desenho, imagens e fotografias. Luiza e Isabela fizeram questão de incluir a frase “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra”, do cantor Bob Marley, que para elas ressaltava a discussão sobre raça. Em outro encontro, Julia também contribuiu com desenhos que focam mais em capoeira que propriamente dança, o que foi muito bem recebido pelas outras e, assim, reforça a conexão delas com a dança e a capoeira entre elas.

Ao final, tivemos 16 páginas de conteúdo escolhido por elas, pensadas coletivamente. Contam o início do Afro Arte, mencionando edital da Secultfor, e as principais apresentações públicas que fizeram. Mencionam o dia da Consciência Negra e a Lei 10.639, listam as danças que praticam e agradecem parceiros. O

zine108 produzido é permeado por fotos das garotas nos trajes das danças e por

desenhos feitos por Isabela (FIGURA 16) e por Julia que as representam praticando capoeira, com instrumentos de percussão e um mapa do Brasil.

Figura 16 - Desenho de Isabela, que compõe o zine. Instrumentos musicais e personagens de cabelo realçados

Fonte: Zine desenvolvido durante a pesquisa (Apêndice A)

Nesse processo, foi interessante perceber o que se coloca como importante no exercício do tempo e da memória. Não houve menção, por exemplo, ao edital do PRONASCI, que possibilitou a compra das vestimentas e o pagamento de aulas, e tampouco mencionaram a realização de oficinas de danças por elas para crianças do bairro, em manhãs de sábado. Ademais, enquanto as fotos aludem à dança por meio das diferentes vestimentas, os desenhos trazem instrumentos musicais e movimentos de capoeira, o que novamente sugere a íntima conexão entre a capoeira e as danças afro-brasileiras, e, ainda, a existência de um circuito negro109.

Noções de orgulho negro são acionadas na capa e no interior do zine, com o uso de imagens frequentemente utilizadas na página do grupo no Facebook (FIGURA 17).

108 Um exemplar do zine do Afro Arte, criado pelo pesquisador com as participantes do projeto,

integra esta dissertação como apêndice A.

109 Em referência a Márcio Macedo (2007), vislumbra-se uma diferenciação no circuito negro, que

tanto comporta práticas “afro”, como a capoeira e as danças, e também práticas “black”, como aquelas da cultura hip hop, como o rap e o break, que vêm dos Estados Unidos, e o funk americano e o soul.

Figura 17 – Imagem desenvolvida pelo autor a partir do acervo das participantes do Afro Arte

Fonte: Figura de autoria desconhecida na página do Afro Arte no Facebook (AFRO ARTE, 2012).

O cabelo aparece crespo e solto, uma vez que tem sido trabalhado no Brasil como um elemento de afirmação de orgulho de cor. As raízes negras são, também, as raízes do cabelo, que, na imagem da esquerda, mostram personagens, objetos e comidas que comporiam a cultura negra. Edmund Leach (1983, p. 163), em artigo clássico de antropologia, faz dialogar psicanálise e dados etnográficos sobre a simbologia dos cabelos pelo mundo todo, em diversas culturas. O autor destaca que o cabelo tem destaque “proeminente em ritos que denotam uma mudança no status sócio-sexual”, assim como em performances religiosas e sociais, frequentemente numa posição “mágica”.

A “mágica” dos cabelos femininos é discutida na dissertação de Adriana Penna Quintão, que pesquisou práticas de consumo de produtos de beleza para cabelo de mulheres, pensando-o como “uma ferramenta utilizada tanto na performance individual quanto na performance coletiva” (QUINTÃO, 2013, p. 16) (grifo da autora). Discute a relação de concepções de beleza com as propagandas, focando nos modos de valorização do que é chamado cabelo “bom”, o cabelo liso. Entre as mulheres negras, há um embate entre a perspectiva que valoriza o cabelo liso e que chama o cabelo crespo de “ruim”, como há, também, a perspectiva mais próxima àquela adotada por Luiza, que é a de valorizar o cabelo crespo como uma performance identitária, como um gesto ritual e de crenças, permeado de orgulho, conforme argumenta a autora.

Os penteados que Luiza faz em seu cabelo – e que incentiva as outras garotas a também fazerem – antes das apresentações públicas, assim como as imagens usadas na página do Facebook (e algumas delas foram incluídas no

zine) são um statement, no sentido de uma afirmação pública “visual”, que visa criar um impacto. As danças, os espetáculos e as apresentações públicas, as oficinas realizadas, a menção à lei 10.639, e o conteúdo da página no Facebook e do zine – tudo está entrelaçado e corrobora com a intencionalidade de instaurar um impacto. As ações do Afro Arte são permeadas por essa intenção política e moral de questionar preconceito de cor e à cultura negra.