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A natureza jurídica do ato administrativo de lançamento

3.2 Alguns esclarecimentos preliminares sobre a constituição do crédito

3.2.2 A natureza jurídica do ato administrativo de lançamento

Paulo de Barros Carvalho98 considera constitutiva a natureza jurídica do

lançamento, por verter luzes a seu papel de criação de relações jurídicas novas para o direito. Contudo, parece-nos que admite também uma proporção declaratória99, apesar de se manter

firme no aspecto constitutivo:

Meditemos sobre a construção desse segmento de linguagem. Seu conteúdo semântico será o relato de um evento do passado, devidamente concretizado no tempo e no espaço. Dizendo de outro modo, o enunciado de que tratamos declara ter ocorrido uma alteração no plano físico-social. Nesse sentido, vale dizer que o fato jurídico tributário tem caráter declaratório. Aí está o motivo pelo qual se aplica ao fato a legislação em vigor no momento em que o evento ocorreu. Entretanto, não podemos esquecer que o relato do acontecimento pretérito é exatamente o modo como se constitui o fato, como essa entidade aparece e é recebida no recinto do direito, o que nos autoriza a proclamá-la como constitutivo do evento, que sem esse relato, quedaria à margem do universo jurídico [...].

Retenhamos esses dois aspectos: o enunciado do antecedente da norma

98 Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 462. 99 Ibid., p. 474, grifos nossos.

individual e concreta que analisamos se constitui como fato ao

descrever o evento.

A posição do autor citado nos parece coerente com as premissas que adota ao considerar que a obrigação e o crédito tributário nascem no mesmo instante, exatamente quando são constituídos em linguagem competente pela autoridade administrativa.

Aliomar Baleeiro100, ao posicionar-se pela natureza declaratória do lançamento,

assim se manifesta:

O CTN pode induzir em equívoco quem lê na testa do Capítulo II do Título III a rubrica 'Constituição do Crédito Tributário' e, no art. 142: 'Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário...'. Constituir o crédito tributário e não a obrigação tributária principal. Daí não decorre que o legislador brasileiro haja reconhecido caráter constitutivo, e não declaratório, ao lançamento. O disposto nos arts. 143 e 144 do CTN evidencia que ele próprio atribui ao lançamento efeitos de ato declaratório. […] A noção de ato constitutivo se avizinha do conceito do art. 81 do CC; é todo ato lícito que tem por fim imediato adquirir, modificar ou extinguir direito. Realizados esses fins, os de criar, alterar ou abolir uma situação jurídica, constituindo-a, ele se projeta de

sua data em diante, para o futuro (ex nunc). Já o ato declaratório não

cria, não extingue, nem altera um direito. Ele apenas determina, faz certo, apura, ou reconhece um direito preexistente, espancando dúvidas e incertezas. Seus efeitos recuam até a data do ato ou fato por ele

declarado ou reconhecido (ex tunc). […] Daí a importância prática de

estabelecer a natureza jurídica do lançamento, porque seus efeitos seriam diversos se fosse constitutivo, e não declaratório.

Primeiramente, observamos que para os efeitos da aplicação da lei tributária não encontramos relevância na discussão doutrinária, já que ambas as correntes admitem que a lei a ser aplicada é a do momento da ocorrência do fato imponível, na linguagem de Geraldo Ataliba, ou do evento, conforme lições de Barros Carvalho.

Porém, do ponto de vista doutrinário, o conhecimento e a meditação sobre as diferentes posições defendidas pela Doutrina, ao longo de sua tradição, é fundamental, em vista do intenso diálogo que desenvolve com o direito positivo e seu papel formador de uma comunidade jurídica, que abordamos no primeiro capítulo deste trabalho.

Nesse sentido, algo há de se observar: o direito, na concepção de Lourival Vilanova, com a qual concordamos, a tudo potencialmente regula, já que, em sua estrutura

100 Direito Tributário Brasileiro. 13. ed. Atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1186, grifos nossos.

lógica, as condutas são permitidas, proibidas e obrigatórias101. O termo potencialmente, em

nossa opinião, quer explicar que nem todas as condutas estão efetivamente positivadas no ordenamento, mas podem ser valoradas como proibidas, permitidas e obrigatórias pela autoridade competente, a partir da aplicação dos princípios presentes na Constituição Federal.

O fato de circular mercadorias implica no nascimento da obrigação de pagar ICMS, por exemplo, porque há uma norma no sistema que assim o obriga, alcançando esse fato. Haverá a incidência da norma abstrata, pois, repetimos, o direito é um sistema de normas que a tudo potencialmente regula. Porém, sua aplicação é de outra ordem, porque depende de um ato do sujeito competente.

Em nossa opinião, o lançamento declara a incidência da norma geral a determinado fato imponível, o que implica no campo tributário, em existência da obrigação de pagar tributo. No momento seguinte, o da aplicação, constituir-se-á o crédito tributário. Explicamos os motivos teóricos que estão por trás desse raciocínio:

(i) O sistema jurídico a tudo potencialmente regula. Com a assertiva, não queremos afirmar a existência de literalidade evidente em uma hipótese de incidência, que preveja todos os comportamentos, ainda mais se considerarmos a complexidade de nossos tempos.

Parece que o ordenamento traz consigo abertura semântica, que permite sua atualização histórica, pela aplicação dos princípios presentes na Constituição Federal. Isto é, muito embora não exista norma geral e abstrata, que trate de questão específica, poderá haver a incidência de princípios constitucionais, que regularão o tema, permitindo a conduta102.

Outros fatos imponíveis, há muito conhecidos e regulados pelo ordenamento jurídico, como é o caso de circular mercadorias, já são alcançados pelo sistema e recebem a incidência da norma geral e abstrata.

101 Lourival Vilanova assim se manifesta: "Essa pretensão de exaustividade com que o sistema abrangeria qualquer conduta possível, sendo completo, porque nenhuma conduta restaria deonticamente neutra, decorreria do ser mesmo do deôntico, da estrutura lógica e ontológica do direito. O universo-da-conduta, que é ocorrência tempo-espacial, está, face a um sistema de normas, com seu âmbito-de-validade temporal e espacial, suficientemente repartido em conduta obrigatória, em conduta proibida ou vedada e em conduta permitida" (Estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005, p. 204). 102 Nesse sentido a ADI 4277, que, muito embora não trate de tema tributário, exemplifica bem o que queremos

expressar, na medida em que teve como resultado a permissão de união estável entre casais homoafetivos, sem que houvesse permissão expressa na legislação de regência.

(ii) Portanto, haverá a incidência de norma geral e abstrata no momento em que ocorreu o fato imponível, porque o sistema jurídico já o regula, de modo que é possível decidir sobre o caso. Posteriormente, a autoridade estaria aplicando a norma geral e abstrata, o que prepara o caminho para a coercibilidade, característica do direito.

(iii) Se o direito será aplicado ou não, é uma contingência da ordem da eficácia jurídica. Parece que houve momentos em que a sonegação de tributos foi maior. Um dos motivos pode ter sido a ausência de estrutura de controle pelo Fisco, o que não implica que a obrigação não tenha ocorrido. De fato, o direito deixou de ser aplicado.

(iv) Na Lógica Clássica, que serviu de base para o argumento de que a toda obrigação corresponde um crédito103 e que ambos nascem no mesmo

momento, tornadas incidência e aplicação figuras idênticas, não se considera o tempo104. Portanto, o chamado juízo hipotético-condicional105

fica mantido em qualquer vertente, tanto a que considera a incidência anterior à aplicação, como a que propugna pela coincidência de ambas. Em nossa opinião, tal juízo será preenchido no momento da aplicação, fato que ocorre posteriormente à incidência da norma que gera automática e infalivelmente a obrigação, nos seguintes termos: "Dado o fato de circular mercadoria, então nasce o dever de pagar ao Estado o valor do ICMS". A obrigação legal de pagar o tributo se torna eficaz com o lançamento, e o tempo não importa para preencher esquemas lógico-aléticos.

O artigo 142 do Código Tributário Nacional prevê o lançamento como atividade privativa da autoridade administrativa. Esta verificará a ocorrência do fato imponível da obrigação correspondente, determinará a matéria tributável, calculará o montante do tributo

103 A título de exemplo ver Direito Tributário: linguagem e método. 4. ed. São Paulo, Noeses, 2011, p. 497. 104 "Não se pode confundir o plano das relações lógicas com o das relações objetivas. A relação entre o

antecedente e o consequente numa proposição implicacional (hipotética) não se confunde com a relação fática de causa/efeito, ou meio/fim. O antecedente é mera posição funcional de uma proposição, relativamente à outra proposição. Em linguagem clássica: 'Se Q é R, então S é P'. O ser antecedente de uma proposição condicionante é uma questão sintática: é a posição ou o tópico funcional de 'Q é R' em relação com S e P', mediante a relação implicacional 'Se...então'. Igualmente, nenhum sentido temporal tem que

uma proposição preceda a outra, que é sucessiva (Escritos jurídicos e filosóficos. v. 2. São Paulo: Axis

Mundi; IBET, 2003, p. 162).

105 "se...então". Em linguagem formalizada ou Lógica: D(H→C), onde se lê "Uma hipótese deve implicar deonticamente uma consequência", como no exemplo acima, sobre circular mercadorias. Na proposição "C", ou consequente, teremos a relação jurídica entre sujeito ativo e passivo em torno de uma obrigação tributária. Do ponto de vista do sujeito ativo, haverá o crédito, e do sujeito passivo, o débito.

devido, identificará o sujeito passivo e, sendo caso, proporá aplicação da penalidade cabível. Esse dispositivo é a base dos tributos sujeitos ao lançamento de ofício, que se dá no Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), de competência dos Estados e Distrito Federal e no Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), de competência dos Municípios.

Na atualidade, porém, a maioria dos tributos submete-se ao lançamento por homologação, previsto no artigo 150 do Código Tributário Nacional. Nesta modalidade de lançamento, o contribuinte declara e constitui o crédito tributário, efetuando o pagamento antecipado, que posteriormente será homologado pela autoridade competente.

O lançamento efetuado pelas autoridades administrativas em sua atividade de fiscalização, que particularmente nos interessa por considerarmos ser esse o momento ideal de apuração do interesse na realização do fato gerador, encontra seu fundamento no art. 149 do CTN e será devidamente analisado ao estudarmos o lançamento como procedimento.

Traçadas as principais características do lançamento tributário, passamos a abordar os critérios da regra-matriz de incidência tributária.