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1.5 O papel da Constituição Federal

1.5.1 O sistema constitucional tributário

O constituinte utilizou-se do termo sistema para iniciar suas disposições sobre direito tributário. Portanto, devemos compreender o seu significado para melhor interpretar o direito positivo. Geraldo Ataliba45, em capítulo dedicado às noções propedêuticas de

sistema, o conceitua como uma reunião harmônica e coerente de elementos em um todo unitário. Em suas palavras:

O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as realidades que pretende estudar. Sob critérios unitários, de alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos elementos de um todo unitário, integrado em sua realidade maior. A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema.

A ideia de necessidade de organização coerente e consistente de elementos não se encontra somente na ciência. No caso do direito, o próprio objeto, ou seja, o direito positivo, se apresenta também na forma de sistema de normas jurídicas.

Os elementos do sistema constitucional tributário encontram-se no Texto Maior que reservou os artigos 145 a 156 para dispor sobre os princípios gerais em matéria tributária, os limites ao poder de tributar e, por último a distribuição da competência entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios46.

45 Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 4.

46 Os artigos 157 a 162 da Constituição Federal tratam sobre a repartição das receitas tributárias, que, a nosso ver, pertencem ao campo do Direito Financeiro.

É de bom tom salientar que, de acordo com a lição de Geraldo Ataliba, acima transcrita, podemos inferir a existência de uma relação de interdependência entre as normas que conformam o sistema tributário nacional, com os demais preceitos da constituição, que, em seu todo, inaugura o ordenamento brasileiro. Dessa forma, certos princípios constitucionais de ordem geral, a exemplo do direito de propriedade, também devem ser sopesados para a solução das questões envolvendo os tributos.

De acordo com as premissas que adotamos, a Constituição Federal é fonte do direito, se vista pelo prisma de sua criação. Por outro lado, é fundamento de validade último de toda norma jurídica, se observamos pelo ângulo da aplicação do direito. Dito de outra forma, sem respeitar a supremacia dos comandos constitucionais, a norma adentra no sistema com grande possibilidade de ser dele retirada, por intermédio de ações que controlam a constitucionalidade, a exemplo da ação direta de inconstitucionalidade ou da ação de inconstitucionalidade por omissão.

Portanto, é na Carta Política que devemos buscar o conteúdo possível e a forma de produção dos dispositivos jurídicos.

O próprio conceito de tributo, categoria central do direito tributário, é conceito constitucional que se forma pela análise sistemática do Texto Maior. Geraldo Ataliba insistia nessa lição47: "Constrói-se o conceito jurídico-positivo de tributo pela observação e análise

das normas jurídicas constitucionais. [...] A Constituição de 1988 adota um preciso – embora implícito – conceito de tributo".

Sabemos que não há no Texto Maior uma definição expressa de tributo, mas, pela conjugação dos princípios constitucionais e das normas que distribuem a competência para legislar em matéria tributária, é possível obter seu conceito.

Dessa maneira, ao conceituarmos tributo pela via constitucional saberemos que este deve decorrer de lei (princípio da legalidade), que incide sobre signos de riqueza (princípio do direito à propriedade, do não confisco e da capacidade contributiva) e que é cobrado por autoridades administrativas, em razão da natureza de seu sujeito ativo.

Também é possível, a partir da Carta Magna, delinear os principais elementos que comporão as regras-matrizes dos tributos. Obteremos o sujeito ativo, expressamente disposto, e a materialidade reservada a cada ente tributante. E, pela conjugação da

materialidade, dos princípios, bem como da distribuição da competência, teremos ciência dos possíveis sujeitos passivos.

Portanto, a atividade do legislador infraconstitucional ao editar leis que permitem o arranjo da regra-matriz de incidência tributária não pode inovar para além do estabelecido na Constituição Federal. A materialidade do tributo, a sujeição ativa e passiva e a base de cálculo encontram-se latentes no Texto Maior. Sobre a alíquota, no mínimo sabemos de antemão que deve encontrar-se expressa em lei e terá que respeitar o princípio do não confisco.

Assim, por exemplo, no art. 156 da Carta Magna, teremos como hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) o comportamento de prestar serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar.48

Notamos que a ação de prestar serviços não se encontra expressa no Texto Maior. O constituinte utiliza-se somente da expressão serviços. Uma explicação plausível para que a tributação se dê sobre a prestação de serviços seria a de que a Constituição Federal de 1988 incorporou o conceito de obrigação de fazer, já existente no ordenamento, veiculado pelo Decreto-Lei nº 406/68.

Concordamos com a assertiva. Porém, observamos que, a Carta Magna traz expressamente os princípios da capacidade contributiva, do não confisco e do direito à propriedade. Portanto, seria correto inferir que o contribuinte é aquele que pratica o fato gerador da riqueza, revelando capacidade contributiva na medida em que recebe pela prestação de serviços. Tributar o tomador de serviço, por outro lado, significaria uma espécie de confisco e uma forma de ferir-se o direito de propriedade, já que este teve seu patrimônio ‘diminuído’ ao remunerar o prestador.

Será de parte de sua remuneração obtida, que o Estado se servirá, para abastecer os cofres públicos e realizar as finalidades previstas na Carta Magna. Sendo assim, é de supor que aquele que presta serviço por ele será remunerado, e, justamente, essa atividade é que pode ser a hipótese de incidência do Imposto sobre Serviços.

48 "Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre: III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar."

Salientamos que conceituar é diferente de definir. No primeiro caso, temos os elementos que, conjugados, dão a ideia, a noção básica. Definir significa estabelecer precisamente os limites de uma dada figura.

Ao distinguirmos conceito de definição queremos afirmar que a Constituição Federal não é completa a ponto de dispensar a atuação dos legisladores infraconstitucionais. Estes deverão implementar os comandos, sempre em consonância com o Texto Maior. A título de argumentação, não encontramos, por exemplo, a alíquota exata dos tributos na Carta da República, mas, certamente, ela não poderá ser de tal ordem, que implique no desrespeito à capacidade contributiva e fira o direito de propriedade.

No que concerne ao tema eleito para nosso estudo, que trata da responsabilidade tributária e os grupos econômicos, não encontraremos nenhuma norma que verse diretamente sobre o assunto, mas é no Texto Maior que está o norte para a compreensão do que isso significa, ao nos depararmos com os princípios que limitam o poder de tributar e, particularmente, com o disposto no art. 146, sobre a necessidade de normas gerais em matéria tributária.

Renato Lopes Becho49 demonstra esse raciocínio dialético que implica eterno

retorno à Constituição, ao compará-la com nossa casa, de onde partimos e aonde desejamos regressar:

Para fazer qualquer análise de Direito Tributário, temos uma atitude mental que pode ser assim figurativamente descrita: imaginemos que só temos o Texto Constitucional. Como o interpretamos? Com seu estilo próprio, com suas regras próprias, sem sair dele. Mas chegamos em um ponto que ele não nos basta, ele não tem as respostas que procuramos (exemplo responsabilidade tributária). Só aí saímos dele, sempre pensando em voltar. Lá é seguro, é a nossa casa, é onde crescemos e nos criamos. Quando saímos, vemos um mundo normativo. Deparamo-nos com normas que nos trazem repugnância e não as utilizamos. Outras nos são velhas conhecidas, porque idênticas às da Constituição e nós, apesar de gostar delas, as desprezamos, porque repetidoras (não temos interesse porque não trazem nada de novo, e somos curiosos). Mas encontramos aquelas novas normas, interessantes, que, pelo menos em princípio, não nos repugnam (pelo menos em princípio, não são conflitantes com nossa forma constitucional de ver o mundo). Nossa reação natural: pegamos esse material novo e corremos de volta para a Constituição. Protegido pela "nossa casa" vamos estudar a novidade, dissecá-la, com o instrumental que a nossa casa oferece.

O papel que a Constituição da República assume em nosso ordenamento jurídico, concluímos, é o de trazer limites à interpretação do direito tributário, pelos seguintes motivos:

(i) É a fonte de todo o ordenamento jurídico pátrio. Portanto, deve ser observada em qualquer construção normativa.

(ii) É fundamento último de validade de toda a norma jurídica. Isso significa dizer que qualquer norma que conflite com o Texto Maior poderá ser retirada do sistema jurídico, por intermédio de ações nele previstos, a exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação de Inconstitucionalidade por Omissão.

(iii) Concede a competência e limita o poder de tributar. Sendo espécie de Constituição rígida, detalha a materialidade dos tributos concedidos a cada ente.

(iv) Veicula, ainda que implicitamente, os elementos que compõem a regra matriz de incidência tributária.

É de se concluir, portanto, que as empresas que possuem comando único, conformadoras dos denominados grupos econômicos, têm o direito subjetivo de não ser sujeitos passivos de tributo – do qual não praticaram o fato imponível – por responsabilidade solidária não prevista em lei.

A assertiva é a base de nossa opinião e, para tanto, concentraremos nossos esforços, num primeiro momento, no artigo 146 da Constituição da República, que traz importante comando sobre sujeição passiva, posição ocupada pelos responsáveis tributários.