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A Natureza Jurídica da Licença Ambiental: ato administrativo discricionário ou

5 AS LICENÇAS AMBIENTAIS E AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO DE

5.1 As Licenças Ambientais

5.1.2 A Natureza Jurídica da Licença Ambiental: ato administrativo discricionário ou

Há uma discussão divergente na doutrina acerca da natureza jurídica da Licença Ambiental. Farias184 aponta que existem basicamente três posicionamentos doutrinários acerca

da natureza jurídica da licença ambiental: 1) que a licença ambiental tem natureza de licença administrativa; 2) que a licença ambiental tem natureza autorização, conforme tradicionalmente definida pelo Direito Administrativo; e 3) que a licença ambiental é “uma nova espécie dos atos administrativos, que reúne características da autorização administrativa e da licença administrativa”.

Tal divergência ocorre porque, tradicionalmente, licença administrativa é ato vinculado, eis que faculta ao interessado o direito ao exercício de uma determinada atividade, vez preenchidos os requisitos legais exigidos185. Contudo, quando se trata de Licença

Ambiental, “é muito difícil, senão impossível, em dado caso concreto, proclamar cumpridas todas as exigências legais”186.

Devido à complexidade das etapas que envolvem o Licenciamento Ambiental, desde a necessidade de uma avaliação aprofundada dos impactos positivos e negativos decorrentes da atividade em análise, até o sopesamento de princípios, normas e valores inerentes à proteção ambiental e ao bem-estar da coletividade, necessário à concessão ou ao indeferimento da Licença Ambiental, é que muitos doutrinadores entendem que o ato administrativo decorrente do procedimento licenciatório não possui natureza de licença, e sim de autorização187, posto que caracterizada pela discricionariedade188.

184 FARIAS, 2011, p. 154.

185 Milaré afirma que “a doutrina repete uníssona que a licença ambiental se subsume num ato administrativo vinculado, ou seja, não pode ser negada se o interessado comprovar ter atendido a todas as exigências legais para o exercício de seu direito de empreender uma atividade”. Neste sentido, destaca diversos doutrinadores de Direito Administrativo que são uníssonos neste raciocínio, a exemplo do Celso Antonio Bandeira de Mello, do Helly Lopes Meirelles, da Lúcia Valle Figueiredo, dentre outros. (MILARÉ, 2009, p. 423).

186 MILARÉ, 2009, p. 423.

187 Autorização Administrativa é tradicionalmente definida como o “ato unilateral pelo qual a Administração, discricionariamente, faculta o exercício da atividade material, tendo, como regra, caráter precário” (MELLO, 2006, p. 407, apud BECHARA, 2009, p. 127).

188 “Ato discricionário é o resultante de uma opção feita pelo administrador entre alternativas disponibilizadas pela lei, segundo critérios de conveniência, oportunidade, justiça e equidade, consignando-se que a escolha

Milaré189 destaca que essa situação de dúvida quanto à natureza jurídica das licenças

ambientais se dá: 1) pelo fato das normas ambientais serem, por vezes, muito genéricas; deficiência que poderia ser sanada pela chamada discricionariedade técnica, deferida ao órgão ambiental licenciador; 2) pelo fato de que, no curso do licenciamento ambiental, deverá o licenciador apreciar conceitos e critérios muito subjetivos, não preenchíveis apenas pela discricionariedade técnica, eis que deve elucidar se determinada atividade é agressiva ao bem- estar da população, e, ainda, em procedimento para atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, mediante a análise do EPIA, decidir pesando impactos positivos ou negativos, distribuição de ônus e benefícios sociais, etc.

Por tais razões, a Licença Ambiental “não é nem decisão vinculada nem discricionariedade técnica, mas decisão sobre a conveniência do projeto, o que afasta o ato administrativo originário do processo licenciatório do modelo tradicional de licença, aproximando-o da tipicidade de autorização” 190.

Machado191 faz uma crítica acerca da ausência de rigor técnico na utilização dos

termos autorização e licença no Direito Brasileiro, elucidando que “o emprego na legislação e na doutrina do termo ‘licenciamento’ ambiental não traduz necessariamente a utilização da expressão jurídica licença em seu rigor técnico”. O autor entende que a licença ambiental tem, na verdade, natureza de autorização, posto que a própria CF/88 utilizou o termo autorização no art. 170, parágrafo único, in verbis: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” Por tal razão, entende razoável adotar o termo “licença ambiental” como equivalente à “autorização ambiental”, conforme entendeu o texto constitucional.

Neste mesmo sentido discursa Silva192, ao apontar que, apesar da diferença entre as

terminologias técnicas de licença e autorização já estar suficientemente esclarecida na doutrina e na jurisprudência brasileira, “a legislação ambiental ainda as emprega promiscuamente, sem a atenção ao sentido técnico dos termos”, denunciando uma série de atecnias cometidas pelo Código Florestal de 1965, e pela Lei 5.197/67 (que ficou conhecida como Código de Caça).

deve ser sempre pela ‘melhor’ situação – daí porque afirmamos que, diferentemente do que possa parecer à primeira vista, discricionariedade não se confunde com a ilimitada liberdade, muito menos com a arbitrariedade pois, quanto a sua finalidade, o administrador está necessariamente ‘vinculado’, ‘preso, à alternativa que chegue mais perto de satisfazer o interesse público. A liberdade, na verdade, está em analisar as alternativas possíveis e identificar quais delas se enquadra nessa premissa.” (BECHARA, 2009, p. 126). 189 MILARÉ, 2009, p. 423.

190 MILARÉ, Loc cit.

191 MACHADO, 2009, p. 280.

Outra razão que motiva alguns doutrinadores a afirmar que Licença Ambiental deveria, na verdade, ter tratamento de Autorização, é o fato de que a licença administrativa comum tem caráter de definitividade, podendo ser revogada por interesse público ou por violação das normas legais, enquanto que a autorização administrativa tem caráter de precariedade, podendo o Poder Público revogá-la a qualquer tempo, por conveniência ou oportunidade. É como pensa Machado193 ao proclamar que “não há na ‘licença ambiental’ o

caráter de ato administrativo; e, portanto, com tranquilidade, pode-se afirmar que o conceito ‘licença’, tal como o conhecemos no Direito Administrativo brasileiro, não está presente na expressão ‘licença ambiental’”.

Contudo, discordamos deste raciocínio, posto que a revisibilidade da licença ambiental, assim como as hipóteses de suspensão, modificação ou cancelamento, não retiram o seu caráter definitivo, uma vez que a definitividade para o Direito Administrativo não implica na irrevogabilidade, e sim na possibilidade revogação em casos de interesse público ou violação das normas legais. É o que ocorre na licença ambiental, haja vista que o órgão licenciador somente sujeitará a licença concedida a uma revisão caso tenha sido alteradas as condições originais que proporcionaram a sua concessão, ou caso tenha expirado seu prazo de validade, ou, ainda, em casos de erro por parte da Administração, o qual deve ser corrigido em face do interesse público da matéria, assim como nas hipóteses legais de modificação das condicionantes, de suspensão ou cancelamento, o que se dará em casos de violação das normas de tutela ao meio ambiente.

Bechara194 acompanha o pensamento de que “não é a possibilidade de modificação,

cassação, caducidade ou revogação da licença ambiental que pode, por vezes, aproximá-la da autorização, mas sim a sua concessão discricionária”, e esclarece:

Importante frisar que, embora a licença tenha presunção de definitividade e a autorização, ao contrário, seja precária, tanto uma como a outra podem ser extintas em situações específicas, equivocando-se aqueles que afirmam que a definitividade da licença significa irrevogabilidade ou permanência absoluta. Ter isso claro é por demais relevante para confrontar os que não aceitam a licença ambiental como verdadeiro ato de licença, apenas pelo fato de ter prazo de validade ou de poder ser cassada, invalidada, declarada caduca e revogada, conforme expressamente previsto pelo art. 19 da Resolução CONAMA 237/97 [...].

Assim, para entendermos a natureza jurídica da Licença Ambiental, cumpre apenas esclarecer se o licenciador atuará, para fins de concessão do ato administrativo finalístico do licenciamento ambiental, atendendo aos parâmetros da vinculariedade ou da

193 SILVA, 2007, p. 272.

discricionariedade.

Há autores que defendem que a licença ambiental tem natureza híbrida, ora decorrendo de ato vinculado, ora decorrendo de ato discricionário. Fiorillo195 expõe a tese de

que há um único caso de licença ambiental vinculada, que aconteceria na hipótese de existência de um EPIA favorável ao empreendimento, existindo, em tais casos, direito subjetivo do empreendedor a desenvolver sua atividade econômica. Em casos do EPIA mostrar-se desfavorável, caberia à Administração, segundo critérios da conveniência e oportunidade, avaliar a concessão ou não da licença ambiental, retratando essa possibilidade o que o autor denomina de discricionariedade sui generis.

Bechara196 partilha deste mesmo entendimento, asseverando que a natureza

vinculada do ato de concessão da licença ambiental se dará apenas quando o EPIA demonstrar que o empreendimento “tem condições de se desenvolver dentro dos parâmetros ambientais e legais vigentes, de sorte a não prejudicar o equilíbrio ambiental e a saúde, segurança e bem- estar da coletividade”. Neste sentido também são Fink e Macedo197, que afirmam que

“cumprindo o empreendedor todas as exigências legais técnicas inerentes ao empreendimento e ao próprio licenciamento, fará jus a licença ambiental, a qual não poderá ser negada pelo Poder Público, sendo, portanto, vinculada”.

Apesar desse posicionamento doutrinário, entendemos que a licença ambiental jamais poderá ser concedida com base meramente no critério da vinculariedade, eis que, como antes destacado, “é muito difícil, senão impossível, em dado caso concreto, proclamar cumpridas todas as exigências legais”198, eis que a complexidade dos resultados dos estudos

ambientais e das avaliações técnicas desenvolvidas no curso do licenciamento, assim como a dificuldade que o licenciador enfrentará ao apreciar conceitos e critérios muito subjetivos, não preenchíveis apenas pela discricionariedade técnica, ao exemplo da análise acerca do bem- estar da população, e, ainda, do sopesamento dos impactos positivos ou negativos e da distribuição de ônus e benefícios sociais decorrentes da atividade, exigências que demonstram a necessidade da utilização, por parte do gestor ambiental, do critério da discricionariedade nos atos de licença ambiental.

Bechara199, ainda que partidária da corrente de que o EPIA favorável configura

direito à obtenção da licença, pondera que “os estudos ambientais não são tão exatos, ou seja,

195 FIORILLO, 2009, p. 136. 196 BECHARA, 2009, p. 128/129.

197 FINK; MACEDO, 2008, p. 9, apud BECHARA, 2009, p. 131. 198 MILARÉ, 2009, p. 423.

não fazem uma análise fechada do empreendimento, nem dão uma resposta simplista, como o ‘empreendimento pode ser aprovado’ ou ‘o empreendimento não pode ser aprovado’”. E esclarece seu ponto de vista:

[...] os estudos ambientais indicarão as opções não enquadradas. Diante deste leque de opções, as alternativas não enquadradas na legislação ambiental devem ser descartadas de plano. E quanto às enquadradas, deverá o órgão debruçar-se sobre elas para, discricionariamente, eleger a melhor. Entretanto, a discricionariedade é apenas para decidir qual das alternativas ambiental e legalmente aceitas será acolhida visto que o direito à obtenção da licença já está configurado, em virtude do atendimento dos requisitos legais.

[...] Assim, quando os estudos ambientais não apontam para (pelo mesmo) uma solução ambientalmente segura, afastando com isso a concessão vinculada da licença ambiental correspondente, cabe ao órgão ambiental sopesar todos ao aspectos e impactos positivos e negativos do empreendimento, para decidir se ele deverá ser desenvolvido, apesar dos “inconvenientes” verificados – o que se dará, via de regra, quando o empreendimento, em outra ponta, revelar-se extremamente benéfico, senão necessário para a sociedade (ainda que local). 200

Nesta senda, entendemos que o licenciador sempre deverá ponderar valores que não são de fácil constatação, podendo inclusive discordar do posicionamento de certos estudos ambientais, mediante a confrontação com perícias técnicas realizadas pelo próprio órgão competente no local, com os pareceres ministeriais desfavoráveis, até mesmo em virtude da opinião da comunidade a ser diretamente atingida, colocada através da Audiência Pública. Outrossim, como ressaltado, os estudos ambientais apresentam considerações aprofundadas sobre o empreendimento, levando em conta a área atingida, os impactos positivos e negativos, os ônus e benefícios sociais decorrentes do mesmo, e dando soluções técnicas para os eventuais danos, razão pela qual não tem uma resposta simplista acerca da possibilidade do empreendimento ser instalado.

Assim, deverá o órgão licenciador averiguar, dentro de sua discricionariedade técnica e de sua discricionariedade subjetiva, o cumprimento das normas e princípios de tutela ambiental, a relevância ou indispensabilidade do empreendimento para a sociedade. Entendemos, ademais, que mesmo sendo o EPIA “favorável” ao empreendimento, deverá o órgão ambiental competente deferir ou indeferir a licença ambiental com base em critérios subjetivos complexos que compõem a sua discricionariedade sui generis, aqui entendida como aquela que esta adstrita aos princípios e às normas inerente ao Direito Ambiental, e não à conveniência e oportunidade da Administração, muito menos à mera arbitrariedade do licenciador, e sim atendendo aos interesses da coletividade em manter condições adequadas para o meio ambiente sadio, para as presentes e futuras gerações, e para a sadia qualidade de

vida do ser humano.

Destarte, a análise da concessão ou da revisibilidade de uma licença ambiental representa uma situação especial, diferente das tradicionalmente regidas pelo Direito Administrativo, e requer cuidados específicos, devendo o licenciador fazer uso de uma discricionariedade sui generis, adstrita às normas e aos princípios de tutela ambiental, atentando para a preservação do meio ambiente sadio e da sadia qualidade de vida da coletividade, critérios que não comportam a tradicional definição de autorização nem de licença administrativa, mas sim de um terceiro gênero, com características especiais e próprias.

Partilhando desse mesmo entendimento explica Antunes201 que os alvarás ambientais

(licença e autorização) são concedidos com base em normas e princípios do Direito Administrativo, sendo que, por disciplinarem as intervenções sobre o meio ambiente, sofrem importantes transformações, “passando, pois, a ostentar peculiaridades que lhe atribuem o caráter propriamente ambiental”.

Milaré202 dá um desfecho irretocável ao tema, afirmando que:

Não há falar, portanto, em equívoco do legislador na utilização do vocábulo licença, já que disse exatamente o que queria (lex tantum dixit quam voluit). O equívoco esta em se pretender identificar na licença ambiental, regida pelos princípios informadores do Direito do Ambiente, os mesmos traços que caracterizam a licença tradicional, modelada segundo o cânon do Direito Administrativo, nem sempre compatíveis. [...]

Em síntese, a licença ambiental apesar de ter prazo de validade estipulado, goza de caráter de estabilidade, de jure; não poderá, pois, ser suspensa ou revogada por simples discricionariedade, muito menos por arbitrariedade do administrador público. Sua renovabilidade não conflita com a sua estabilidade; está, porém, sujeita à revisão, podendo ser suspensa e mesmo cancelada, em caso de interesse público ou ilegalidade supervenientes ou, ainda, quando houver descumprimento dos requisitos preestabelecidos no processo de licenciamento ambiental. Mais uma vez se pode chamar a atenção para disposições peculiares do Direito do Ambiente, peculiaridades fundadas na legislação e corroboradas por práticas administrativas correntes na gestão ambiental.

Por último, saliente-se que “não há que se confundir licença ambiental com autorização ambiental” 203, eis que a legislação específica difere os atos de licença ambiental

dos atos de autorização ambiental, sendo aqueles específicos para os casos de aprovação da localização, da implantação e do funcionamento de atividades potencialmente poluidoras, enquanto que estes podem se dar em casos de aprovação de supressão de vegetação ou de florestas, de pesquisas em áreas especialmente protegidas, de liberação de exemplares de

201 ANTUNES, 2010, p. 146. 202 MILARÉ, 2009, p. 423. 203 Ibid., p. 148.

espécies exóticas da fauna e da flora em ecossistemas naturais frágeis ou protegidos, dentre outras hipóteses legais204.