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INTERVENÇÕES NA VIDA URBANA E EDUCAÇÃO PARA O PROGRESSO

3.2. A organização de um campo de saber: por onde andam os esculápios?

A projeção que o saber técnico e científico ia alcançando, assim como a importância destes na definição dos rumos da cidade e da sociedade, de maneira geral, podem ser inseridas no interior de um processo mais amplo, que ia além de uma imposição forçada dos saberes sobre a cidade e sua população leiga.

Quando falamos na formação de um campo de conhecimento médico- científico, Foucault ressalta que, “desde o século XVI e começo do século XVII todas as nações do mundo europeu se preocuparam com o estado de saúde de sua população em um clima político, econômico e científico característicos do período dominado pelo mercantilismo” (FOUCAULT, 1979, p. 48).

73 Não podemos esquecer que coincide com esse momento as primeiras aglomerações urbanas e o fortalecimento dos Estados centralizados burocraticamente, territorialmente e com certa unidade econômica.

A falta de infraestrutura urbana somada as grandes aglomerações populacionais facilitavam a projeção de doenças, que aos poucos iam exigindo um olhar mais atento do Estado – “os processos de industrialização, urbanização e crescimento populacional tinham constituído uma sociedade na qual um dos elos principais seria a doença, em especial quando se apresentava à sociedade sob a forma epidêmica” (HOCHMAN, 2013, p. 52).

Sobre a projeção do saber técnico e científico, Giddens, demonstra que este se insere no que ele considera como sendo parte de um processo próprio da modernidade, no qual relações de confiança e risco davam legitimidade ao que ele denominou de Sistemas Peritos, considerados como, “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 1991, p. 35).

De acordo com Giddens,

A fidedignidade conferida pelos atores leigos aos sistemas peritos não é apenas uma questão – como era normalmente o caso no mundo pré-moderno – de gerar uma sensação de segurança a respeito de um universo de eventos independentemente dado. É uma questão de cálculo de vantagem e risco em circunstâncias onde o conhecimento perito simplesmente não proporciona esse cálculo mas na verdade cria (ou reproduz) o universo de eventos, como resultado da contínua implementação reflexiva desse próprio conhecimento (GIDDENS, 1991, p. 87-88).

Essa fé que a ciência e o conhecimento técnico passavam a ser depositárias, condiz com uma separação cada vez mais acentuada entre indivíduo e conhecimento, entre pessoas leigas e especialistas e seus respectivos sistemas peritos, cuja aceitação ou resistência perpassa mais pela

74 probabilidade da relação acerto/erro de tais conhecimentos e técnicas, do que pela confiabilidade nos compromissos com rosto34.

Para Giddens, a confiança pode ser definida como a consciência individual e/ou coletiva que pressupõe a existência de risco, sendo algo típico da sociedade moderna, “é uma forma de “fé” na qual a segurança adquirida em resultados prováveis expressa mais um compromisso com algo, do que apenas uma compreensão cognitiva” (GIDDENS, 1991, p. 35).

Neste caso, nos interessa a percepção de como o saber médico ganha corporeidade no interior da cidade de Natal de modo a ser representado como guardião de uma verdade que era capaz de diagnosticar, sanar e, sobretudo, prever os rumos necessários para o aprimoramento da população e da própria estrutura material da urbe.

Para Foucault, devemos entender por “verdade um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 1979, p. 11). Neste caso, nos referimos aos enunciados forjados pela racionalidade médica e suas instituições. Cabe destacar que parte deste processo está relacionado a própria transformação da saúde e, consequentemente da doença, em uma esfera de interesse público, ou seja, que interessa ao aparato do Estado, como também social, a partir da noção da doença que pega35– “a doença acabara de igualar e conectar todos os seres humanos e suas comunidades, em uma ampla cadeia de mútua dependência” (HOCHMAN, 2013, p. 51); e da dependência mútua que passa a caracterizar as coletividades urbanas de maneira mais geral, esta dependência pensada como sendo as consequências,

34 “A confiança em sistemas assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais é mantida

a fé no funcionamento do conhecimento em relação ao qual a pessoa leiga é amplamente ignorante” (GIDDENS, 1991, 91)

35 Hochman demonstra, como sendo expoente deste entendimento, o trabalho do médico norte-

americano Cyrus Edson, superintendente sanitário da cidade de Nova York. Com o Título de O micróbio como nivelador social (1895), Edson ressaltava que “a igualdade entre os homens, tão desejada pelos socialistas, estava sendo alcançada não mais por projetos políticos ou por revoluções, mas por organismos vivos infinitamente pequenos, invisíveis ao olho humano: os micróbios, causadores de doenças infectocontagiosas. Os seres humanos seriam iguais ante a ameaça da doença, porque afinal ‘o micróbio da doença não é respeitoso para com as pessoas’’’ (EDSON apud HOCHMAN, 2013, p. 51).

75 [...] indiretas das deficiências e adversidades de uns indivíduos sobre outros, que são imediatamente atingidos, apesar de não sofrerem dos mesmos problemas. Por exemplo, a ameaça da doença, do crime, da improdutividade e da rebelião causada pela pobreza e pela destituição de alguns sobre os demais membros da sociedade. (HOCHMAN, 2013, p. 27)

A preocupação com a saúde pública em Natal pode ser encontrada em outros recortes temporais que antecedem a República, apesar de não podermos considerar que tal preocupação anterior, demandasse esforços sistematizados para pensar a questão, ou mesmo que coincidisse com uma projeção do saber médico e seus depositários dentro da sociedade, nem tampouco da responsabilização dos médicos pela elaboração de inventários sobre a questão da saúde pública.

É exemplar, nesse contexto, o Relatório enviado pelo chefe de polícia Joaquim Tavares da Costa Miranda à Assembleia Legislativa em 30 de novembro de 1878 para tratar sobre a questão da saúde pública e suas relações causais com o ambiente36. Tal fala torna-se emblemática porque inaugura uma preocupação tanto com as causas (diagnóstico), quanto com a elaboração de soluções sanadoras.

Após uma ampla apreciação sobre as doenças que grassavam na província, com ênfase nas febres perniciosas “que fazem parte importante do cortejo fúnebre de moléstias, que em pouco tempo, levam as victimas do leito do sofrimento sem esperança para o leito de pedra do sepulchro” (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. A3), o chefe de polícia busca a definição de possíveis causas para o problema, refutando a ideia de que tais febres eram causadas pela fermentação cadavérica, advinda do cemitério e sua proximidade com a água da Bica37, “logo que ouvi a um medico, em quem confio, o qual provou- me que ella era infundada”. “Grifo nosso” (RIO..., 1878, p. A3)

36 Câmara Cascudo considera este Relatório como uma das mais antigas campanhas

sanitaristas da cidade (CASCUDO, 1999, p. 209).

37 Dava-se o nome de Bica ao declive situada próxima ao cemitério público onde estava

localizada a fonte de água que abastecia parte da população, especialmente os residentes do bairro da Cidade Alta.

76 Dizia ele,

Ora, é certo que as febres miasmáticas isto é, febres remitentes, intermitentes e perniciosas, dependem do miasma palustre, exalação dos pântanos, logo é destituído de fundamento o falso suposto que leva muita gente a atribuir a situação do cemitério a causa destas febres [...]. Sendo assim fica demonstrado que os germens animaes, se pudessem estar em contato com a água da Bica não produziriam em caso algum, a febre telúrica, que só pode ser determinada por um princípio vegetal. Ao passo que se procura uma cousa toda sobrenatural para explicar a produção das febres, tem ficado preterida, senão totalmente esquecida, que, segundo a opinião das pessoas competentes, é a principal productora destes males (RIO..., 1878, p. A4).

Dando sequência ao seu Relatório, o chefe de polícia ressalta que sua disposição em resolver o problema perpassa pela limpeza da área fazendo uso de “retirantes desocupados”38, resolvendo, desta maneira, dois problemas de forma satisfatória: o da saúde pública e o da criminalidade:

Me desvaneço por ter tido a idéia abraçada por V. Exc. porque, arrancando leva de retirantes da ociosidade, que é mãe de todos os vícios e produtora de todos os crimes, preveni muitos delitos, a que seriam arrastados pela sugestão do mal instinto, excitado pela tortura da fome, ou pelas maquinações de um espírito rude desocupado de qualquer valor cotidiano [...] não chego a afirmar que foi uma hora de redenção para esta capital. Aquela em que

eu disse que com desaparecimento do lixo decresceria o número de vítimas no obituário. [...] a cidade está inteiramente

limpa: o ar que se respira já não é infecto: o estado sanitário já está muito melhorado: seja coincidência ou não, pouco

importa. (RIO..., 1878, p. A-5 Grifo nosso)39.

38 “O retirante foi, ao mesmo tempo, justificativa para envio de recursos federais [...], mão-de-

obra nas reformas urbanas, culpado pela insalubridade e falta de higiene pública e um dos motes para discussão sobre a formação do povo brasileiro. A única coisa que não lhe coube foi um lugar na cidade.” (DANTAS: FERREIRA, 2001, p. 3)

39 É mister ressaltar que, nesta mesma época, o Nordeste vivenciava a grande seca de 1877,

que duraria por mais dois anos. Durante o flagelo da seca, o poder público centralizou esforços através de medidas emergenciais, e poucos eficazes, para seu combate, como por exemplo, a migração compulsório dos retirantes nordestinos para trabalhar na extração da borracha na Amazônia. A questão dos retirantes tornou—se central nos discursos dos governantes. De acordo com Dantas e Ferreira, “a seca foi então transformada, nos discursos e representações das elites oligárquicas, política e econômica, na raiz dos problemas que assolavam o nordeste: a miséria, a pobreza, as altas taxas de mortalidade, o enfraquecimento dos corpos que permitia a proliferação das epidemias, a desestruturação econômica.” (DANTAS: FERREIRA, 2001, p. 6)

77 Algumas questões requerem uma atenção mais detalhada sobre a fala do chefe de polícia Joaquim Tavares da Costa Miranda. A princípio devemos atentar para o fato de que a questão da saúde era interpretada e levantada como problema público, assim como seu solucionamento, sob o olhar de um não- especialista, o que nos leva a pensar os motivos pelos quais tal questão não seria de responsabilidade de um médico e sim do chefe da polícia provincial.

A veracidade de suas formulações perpassa, antes, pelo lugar ocupado pelo chefe de polícia enquanto autoridade administrativa, do que pela própria explicação de caráter médico-científica. O uso de expressões como “ouvi de um médico”; “em quem confio”; e “provou-me”, indicam uma autoridade de saber que está depositada no sujeito em questão - aquele que transmite a informação, em detrimento de uma autoridade de caráter objetivo, no qual enunciados científicos constituem-se como verdades tornando-se quase entidades independentes daqueles que os formularam.

É possível aferir que, neste momento, o médico ainda não ocupasse lugar de destaque como autor de um conhecimento positivo, pelo menos não dentro desta cidade, cujas bases estariam ancoradas num determinado conjunto de saberes e práticas capazes de formular soluções possíveis para os males da saúde.

É interessante observarmos também que neste mesmo ano já havia a designação de médicos para ocupar o cargo de “Inspector de Saúde Pública e do Porto”. O Dr. Luiz Carlos Lins Wanderley foi encarregado deste cargo no dia 7 de outubro de 1878, substituindo o Dr. João Gualberto Ferreira Santos Reis (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. 7), sem, contudo, serem estes os responsáveis pela formulação do relatório oficial da saúde pública que seria apresentado a Assembleia Legislativa.

A segunda questão, faz referência ao fato da ausência de uma preocupação mais profunda com suas apreciações, sobretudo do ponto de vista de um corpus de conhecimento de caráter médico-científico. Deste modo, não nos parece que o próprio relator demonstrasse qualquer constrangimento com o

78 fato de precisar de alguma comprovação teórica, empírica ou positiva acerca de suas observações sobre as causas das “febres telúricas”.

Para o mesmo, não havia diferença se a diminuição do número de óbitos fosse fruto da “limpeza empreendida” ou apenas por “causalidade e coincidência”, contrapondo-se, desta maneira, à características próprias da medicina moderna – “objetividade, formalidade, empiricidade, concretude, análise e profundidade são qualidades atribuídas ao novo discurso” (CZERESNIA, 1997, p. 78).

A terceira questão que nos chama atenção é a apropriação do chefe de polícia de um discurso que não pertencia a sua especialização. Em seu relato é possível perceber que há certa assimilação de teorias médicas que circulavam no período, neste caso, uma adoção da teoria miasmática40, na qual a causa de doenças, fossem elas epidêmicas ou não, resultariam da emanação de humores oriundos da decomposição de matéria orgânica, vegetal ou animal, que seriam resultados diretos de condições ambientais específicas, como pântanos, alagados, charcos, etc.41

Tal questão nos leva a considerar que mesmo a figura do médico não ocupando ainda lugar de destaque nos encaminhamentos da saúde pública, neste caso específico, já havia uma certa circularidade do pensamento médico que no relatório condiz com as formulações próprias de correntes sanitarista e do higienismo.

Neste sentido, Lilian Denise Mai observa que,

A preocupação com a saúde não se limitava aos especialistas da área, mas os problemas por eles apontados eram considerados sérias ameaças à sociedade e mostravam-se presentes em diferentes produções teóricas da época. Classes

40 “Desde meados do século XIX, pelo menos, a causa das doenças, das epidemias, não era

procurada apenas nos focos miasmáticos naturais, na má localização dos equipamentos insalubres ou na inexistência de uma infra-estrutura urbana, mas na indigência, nas condições de vida, nos hábitos promíscuos e na ignorância das classes populares que, por exemplo, eram ludibriadas com elixires cura-tudo e remédios caseiros.” (DANTAS; FERREIRA, 2001, p. 11).

41 Para estudo aprofundado acerca da circulação de teorias médicas em Natal, ver: ANAYA,

Gabriel Lopes. Maus ares e malária: entre os pântanos de Natal e o feroz mosquito africano (1892-1932). Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2011, 214 f

79 dirigentes ou grupos de oposição, médicos ou literatos, antropólogos ou educadores, todos sentiam-se ameaçados pelos danos que lhes poderiam sobrevir (MAI, 2003, p. 55).

Em contrapartida, a valorização da figura do médico e seu corpus de conhecimento não sofreu resistência apenas do ponto de vista administrativo42, ao contrário, grande parte da população da província também era reticente em relação as práticas médicas presentes na cidade, um exemplo disto foi a dificuldade encontrada pelo “comissário vacinador”, o Dr. Antunes43 durante a campanha de vacinação da varíola em 1878.

De acordo com o médico,

[...] poucas pessoas se lhe tem apresentado para a inoculação do puz vaccinico. Algumas, sob pressão de preconceitos anachronicos, não acreditam nos benefícios da vacina; outras lançando o anathema sobre o progresso scientifico, com um riso alvar, lamentam, que se vá perturbar a economia em seu funcionalismo, inoculando-se o germen de uma moléstia: outras finalmente, em um estado de indifferença, só accordam do somno, em que se embalam, para lamentarem a perda de um ente caro, victima da varíola confluente ou maligna. (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. 7)

42 Do ponto de vista institucional, é exemplar a demissão, em 22 de outubro de 1878, do Dr.

Henrique Leopoldo Soares da Camara, encarregado do atendimento dos doentes no interior da província, Mossoró, pelo fato de ter se tornado um dispêndio para o governo provincial, uma vez que o mesmo recebia a quantia de 700$000 reis. Em seu lugar, foi contratado um “Pharmaceutico” pela quantia de 300$000 reis, que seria encarregado tanto de Mossoró, quanto de Macau, sendo responsabilizado por deixar pessoa idônea em Mossoró, quando o mesmo necessitasse se deslocar. (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. 7)

43 Cascudo nos dá uma descrição interessante sobre o Dr. Antunes. A descrição feita sobre seu

comportamento, conjunto de hábitos e moradia nos remete a uma imagem que muito se distancia daquela que aos poucos vai sendo construída para os médicos, em seus consultórios amplos, asseados, nos quais predominam cores sóbrias e claras, remetendo a limpeza e higiene. Segundo Cascudo, o dr. Antunes andava “todo de preto, sizudo, medido a compasso, feito de encomenda, rythmado a metrônomo. Ao sol vibrante e lindo de Natal o dr. Antunes era uma pincelada de pixe num muro caiado. [...] Sua casa era um cafifo à célula do dr. Fausto. Parecia uma lura de astrólogo, de alchimista, de feiticeiro, de advinho a Nostradamus, de magico a Cornelio Aggrypa. Jacarés, aves, desde gavião audaz, olhar de fogo parado e azas abertas, numa ameaça que a Morte não entibiara, até azas-brancas e doces, macias na penugem tênue, gatos do matto, tatús, cobras, desde a sussurana pintalgada e vistosa como um tapete persa, até a surucucu lantejoulada em ouro, negro e purpura, caetatús, porco-espinho, ouriços, sapos disformes, caçotes esguios, toda uma bicharia em pena, pelo e couro, subia nas estantes, alastrava mezas, espraiava-se no solo, fazendo tropicar os consulentes sobressaltados. No meio deste mundo de animaes empalhados e levrecões empoeirados o dr. Antunes lia ... [...]”. (CASCUDO apud ARRAIS, 2011, p. 86-87)

80 O mesmo ainda ressalta que tal descrença não era fruto apenas da ignorância do povo, uma vez que mesmo entre a população considerada de maior prestígio social era possível encontrar resistência em relação a vacinação.

[...] não é somente na ultima classe social, que se observa esta surda conspiração contra as cogitações e pratica brilhante dos que entregam à locubrações acuradas em benefícios da humanidade, nas classes que aqui timbram de elevadas, sinão há um scepticismo, que afronte impavido a observação de cada dia, há pelo menos considerável desidia, desleixo imperdoavel; de modo que não se sabe ao certo o que se deve execrar e lastimar, se a ignorância do povo ou se a imprudencia dos cultos. (RIO GRANDE DO NORTE, 1878, p. 7-8)

Outro aspecto interessante é que entre os médicos também havia certa resistência quanto as técnicas e conhecimentos empregados, demonstrando preocupação com a legitimidade do saber adquirido dentro dos muros das faculdades de medicina, como também, com a própria idoneidade e ética do profissional44.

Tal crítica ganha lugar de destaque nas memórias do médico Januário Cicco, futuro encarregado do projeto de saneamento da capital do Rio Grande do Norte. Suas preocupações faziam referência à doutores que burlavam o compromisso simbólico estabelecido entre médicos e clientes, pouco preocupando-se com o restabelecimento de sua saúde em detrimento do acúmulo monetário através da promessa de “cura de doenças ainda incuráveis.”

Cicco denunciava certos comportamentos ao mesmo tempo em que estabelecia um conjunto de normativas que deveriam guiar o fazer médico, destacando que não “é a sciencia a fallida; mas os seus interpretes, a quem falta a verdadeira intuição da mais difficil e da mais admirável sciencia, cujo objetivo anda pelas alturas de uma divindade”. (CICCO, 1928, p. 15)

44 “[...] dentro da categoria profissional dos médicos, não havia um projeto monolítico de

afirmação de poder, não somente porque não era homogênea sua inserção no processo econômico e a sua origem de classe, como também havia modelos de saber distintos, que correspondiam a bases sociais distintas e estratégias de poder também”. LUZ, 1982, p. 112).

81 Sobre o comportamento de alguns esculápios, Januario Cicco destacava:

A’ parte a enscenação dos consultórios cheios de esqueletos envidraçados, instalações de raios violeta e quejandos caça- nickers, o ar grave, as atitudes estudadas, o occasionismo rabugento, de par com um dogmatismo ridículo [...]. E’ é curioso vel-os à bordo d’um leito, inquirem, uns, cousas de pouca monta, percutem, simulam auscultar e garatujam, por fim, o nome de umas drogas perigosas, cuja posologia ignoram, e tornam mais tardem pela noite, inquietas pela indifferença da moléstia á sua medicação. Outros, mais cheios de si, tomam o pulso e o relógio, como si sob os dedos falasse a moléstia e fosse fácil interpretar a natureza mórbida pelo simples bater da radial, cujo estuar polymorpho esconde o universo da palhologia, tiram o thermometro de uma caixa de ouro, tomam o calor axilhar do cliente e, calados, mysteriosos, seguem a pratica dos primeiros, transportados para o domicilio do seus assistido as pharmacias da província. E o diagnostico? Talvez depois da morte, ou da cura (CICCO, 1928, p. 39-40).

Todavia, apesar das críticas empreendidas pelo Dr. Januário Cicco a tais práticas médicas, percebe-se que suas colocações fazem referência a um conjunto de atitudes que em muito se distanciavam do velho “gabinete de curiosidades” da casa do Dr. Antunes, conforme descrito por Câmara Cascudo45.

Não tratava-se mais de um ambiente totalmente desconectado com o conhecimento médico, com animais empalhados e livros literários empoeirados