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A Inspectoria de Hygiene Publica e a institucionalização do campo de saber médico em Natal

INTERVENÇÕES NA VIDA URBANA E EDUCAÇÃO PARA O PROGRESSO

3.3. A Inspectoria de Hygiene Publica e a institucionalização do campo de saber médico em Natal

A partir da instituição do regime republicano no Brasil é possível perceber uma tendência cada vez mais acentuada de especialização e setorialização do Estado, seja ligado a sua burocratização ou através da departamentalização de

47 Contudo, devemos atentar para as dificuldades de formulação dessas propostas e as

descontinuidades que caracterizaram a formação médica no Brasil. Neste sentido, Schwarcz demonstra que nos primeiros 40 anos das cadeiras ofertadas nas faculdades de medicina brasileiras, Rio de Janeiro e Bahia, “vigorava a benevolência nos exames, a pouca capacitação dos mestres, a constante reclamação quanto à falta de verbas e alunos.” (SCHWARCZ, 1993, p. 259)

85 suas responsabilidades - saúde, educação, segurança pública, infraestrutura, etc., passavam a ser pensadas separadamente mesmo que constituíssem juntas os caminhos para alcançar o grau esperado de civilização. Foi neste contexto que em 1892 foi criado em Natal/RN um órgão oficial que buscava regulamentar as questões de higiene e saúde pública de maneira mais abrangente: A “Inspectoria de Hygiene Pública.”

A Inspetoria foi instituída através de ato legal nº 14 de 11 de junho de 1892. Era a primeira vez que haveria, efetivamente, uma preocupação mais sistemática com a realidade da higiene e saúde locais através da coleta e organização de dados estatísticos, elaboração de relatórios, estudo aprofundado acerca das questões de salubridade urbana, dos índices de natalidade e mortalidade, assim como as causas mortis, além da proposição de soluções via criação de medidas disciplinatórias buscando ordenar os comportamentos e as transformações da cidade.

Com a criação desta repartição haveria uma centralidade maior da figura do médico como encarregado da saúde pública. A própria lei já trazia a determinação de que a direção do órgão seria de competência de um médico formado, assim como a organização das informações e a proposição de soluções viáveis para os problemas relacionados às questões médico-higiênicas48, transformando-se assim, num marco decisivo para a importância que o saber médico ganharia nas determinações da vida e morte da população da cidade.

Dentre as responsabilidades da “Inspectoria de Hygiene Pública” estavam: o estudo das questões relativas à higiene do estado; a fiscalização do saneamento das localidades e das habitações; o estudo dos meios práticos de prevenir, atenuar ou debelar as moléstias endêmicas, epidêmicas e transmissíveis por contágio aos homens e animais; a organização, direção e distribuição de socorros de assistência pública em épocas de epidemia; a direção e propagação do serviço de vacinação como a varíola, a hidrofobia e a febre

48 Já em 1896 o Dr. Manuel Segundo Wanderley, então presidente interino da Inspetoria de

Hygiene Pública, proporia o Plano Sanitarista para Natal, cujas principais medidas seriam o arrasamento da represa do Baldo, “foco perene de moléstias miasmáticas”; a mudança de local do Lazareto da Piedade; a remoção do matadouro do centro da cidade; o aterro do mangue; o nivelamento dos espaços públicos; e o aumento da capacidade do aqueduto que desviava as águas pluviais acumuladas na campina da Ribeira para o Rio Potengi (LIMA, 2003, p. 27).

86 amarela; a indicação de melhoramentos sanitários em benefício da população; a inspeção de escolas, repartições públicas, fábricas, estabelecimentos e empresas, oficinas, hospitais, lazaretos, hospícios, prisões, quartéis, estabelecimentos de caridade e beneficência, arsenais, asilos e quaisquer habitações coletivas, públicas ou particulares; a fiscalização do exercício de medicina e da farmácia; a organização de estatísticas demográfico-sanitárias; a fiscalização dos trabalhos de utilidade pública, dos cemitérios, e de todas as construções públicas e particulares que possam comprometer os interesses de saúde pública. (RIO..., 1892, p. 25).

As várias responsabilidades da Inspectoria de Hygiene demarcam não apenas a entrada do médico na esfera pública como também a preocupação, cada vez mais efetiva, com os domínios da privacidade dos lares natalenses e com a vida íntima de seus habitantes.

Sobre este aspecto, Jurandir Freire Costa faz uma relação pertinente entre abrangência do campo de atuação da medicina e a recolocação da importância do médico no meio social. De acordo com ele,

A medicina social percebia que a urbanização forçava a mudança da família e que o Estado, apoiando a expansão da saúde pública, lhe havia creditado uma certa confiança que competia explorar até onde fosse possível. A intervenção na casa respondia, em parte, a esta movimentação estratégica. Encarregando-se da transformação higiênica do continente familiar, os médicos ganhavam terreno, ocupavam espaços vazios, tentavam apresentar-se como úteis necessários, indispensáveis à sanidade de todos os locais físicos e sociais do universo urbano. (COSTA, 1999, p. 114)

Tratava-se, portanto, de um olhar mais abarcante do médico sobre a cidade e de um alargamento das funções deste no interior da urbe que voltava- se para a integração entre corpo social e espaço.

A partir da elaboração de normativas para os comportamentos inapropriados à saúde do corpo e da cidade, o médico aproximava-se do político.

87 Assim, ao lado das diversas ações, baseadas na concepção higienista oitocentista de afastamento dos equipamentos insalubres do centro, combate às águas estagnadas, construção de uma estrutura de assistência à saúde pública, conformar-se- ia uma legislação cada vez mais punitiva e restritiva com a organização da repartição estadual de higiene e da polícia sanitária, em 1892, prescrevendo as formas de uso e ocupação da cidade, dos seus espaços públicos e privados e das esferas da vida social (DANTAS; FERREIRA, 2001, p. 11-12)

A disciplinarização das ações da população em relação a seu conjunto de comportamentos e preservação do espaço de convívio comum pode ser percebida através do conjunto de resoluções que começaram a ser criadas a partir do referido órgão de inspeção pública visando o cumprimento de um amplo conjunto de determinações que passavam a estabelecer medidas punitivas para os indivíduos que as descumprissem. É exemplar nesse processo a resolução nº 92 de 1905. De acordo com ela:

Todos os moradores da cidade são obrigados a: inciso 1° - depositar todos os dias, pela manhã, nas portas ou portões dos prédios de suas residências, o lixo, que deverá ser conduzido pelas carroças de limpeza pública, multa de 2$000 e o duplo nas reincidências. Inciso 2º - conservar sempre limpos, sem lamas, ou imundícies os quintais dos prédios de suas residências, a mesma multa do inciso anterior (RESOLUÇÂO, 1905).

Sediada no Hospital da Caridade49, a Inspetoria contaria com dois médicos50 que deveriam tratar da inspeção geral da saúde pública, prestar serviços clínicos no Hospital da Caridade, realizar trabalhos médicos legais e diligências policiais, assim como atuar na vacinação e revacinação, numa

49 O Hospital da Caridade foi construído como medida emergencial para conter a epidemia da

cólera morbus em 1857, tendo sido caracterizado pela fragilidade e precariedade nos atendimentos, funcionando mais como depósito de gente, do que como espaço curativo. Sobre o Hospital, o médico Onofre Lopes, em 1954, dá uma descrição impactante sobre esta espacialidade – “no local do velho Quartel da Polícia, na antiga Rua da Salgadeira, havia um depósito de doentes em torturante promiscuidade: loucos, ulcerados e tudo que a nosologia da época apresentasse. Um novo inferno de Dante. Os doentes internavam-se apenas para morrer.” (LOPES apud ARAÚJO, 2000, p. 14)

50 É importante ressaltar que em 1888, segundo a Inspetoria Geral de Higiene Pública, havia

apenas 15 médicos para toda a província do Rio Grande do Norte e que estes, em sua maioria, não eram residentes fixos, mas eram chamados em casos de epidemias e medidas emergenciais (SILVA, 2012, p. 143).

88 população que já em 1890 girava em torno de 13.735 (treze mil setecentos e trinta e cinco mil) habitantes (DANTAS; FERREIRA, 2001, p. 10).

A repartição também passava a funcionar como destinatária de denúncias e críticas feitas, sobretudo, pela imprensa local que cobrava da inspetoria e seus dois médicos soluções estratégicas para os males sanitários e a propagação das doenças.

O recorte das denúncias oscilavam entre questões da existência material que para parte da população eram próprias de uma cidade circundada por dunas e alagados e, portanto, palco propício para a emanação de “miasmas deletérios” e o comportamento de sua população ainda pouco afeita a adoção de hábitos considerados higiênicos.

Em 1901, o jornal “A República” especulava os maus hábitos do natalense e os impactos causados à vida comum:

Procurando mostrar que o atraso primitivo em que se conserva higiene pública e particular entre nós, é principalmente a conseqüência da falta da incúria da população residente, e da sua falta de compreensão dos princípios higiênicos, e que este estado selvagem bem podia ser modificado [...] si os médicos da higiene, sando menos aplicação aos remédios de botica, tornassem mais conhecidos os benefícios do asseio, que deve o povo observar o mais religiosamente possível consigo e em suas habitações [...] nós levamos ao conhecimento da ‘prestante corporação’; que teima em fazer desta cidade uma capital ‘modelo’ porém no seu modo único de civilizar (A REPÚBLICA, 1901, página ilegível).

Estas críticas, quanto à higiene da população em geral, não era privilégio natalense, mas chegaram a ser consenso entre os médicos que atuavam no Brasil entre fins do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX.

Ratos, baratas, sarna, piolhos, moscas entre outros insetos pestilentos e parasitas de toda natureza eram recorrentes nos lares, fossem eles de pobres ou da própria elite, assim como era comum a recorrência de maus hábitos no uso dos espaços públicos e privados, como por exemplo, a eterna mania de escarrar no chão, o descarte a céu aberto das dejecções, o transito nas vias

89 urbanas dos bexiguentos, a ausência de fossas sépticas higiênicas ou mesmo a maneira precária com a qual eram construídas as latrinas nas residências51. O médico higienista Belisário Penna em suas incursões pelo país já denunciava:

[...] dificilmente encontraria alguém com relativa saúde, afirmando que nas suas jornadas deparou com incontáveis impaludados agudos e crônicos, caquéticos, com opilados exangues, bestificados, com papudos e aleijados que em contorções satânicas rastejavam-se como répteis uns, como batráquios outros, com cretinos e seus trejeitos semiescos, com asmáticos e entalados. (ROMERO, 2002, p. 66)

As denúncias frente à ausência generalizada de comportamentos civilizados ligados à precariedade dos hábitos de higiene estavam atreladas aos discursos acerca da necessidade médica, perene e indispensável, do ato de educar e ensinar a formar o “bom cidadão”.

Os hábitos comuns entre as diversas classes começaram, assim, a ser objeto do discurso médico que, ao delimitar o que era higiênico ou não, instituía a diferença entre o civilizado, o culto e o grosseiro. [...] Ao ensinar como evitar a doença e conservar a saúde, [os médicos] pretendiam ensinar também como formar um bom cidadão. A classe dominante haveria de superar sua própria ignorância aceitando os preceitos higiênicos que inspiravam aversão ao suor, urina, fezes, secreções, insetos, ratos, classes trabalhadoras. (ROMERO, 2002, p. 77)

Tais discursos médicos demarcaram uma mudança na forma de interpretação dos problemas relacionados à saúde da população até então correntes. Tratava-se da inserção da questão social nas interpretações sanitárias, o ambiente ganhava agora destaque como motivador da saúde ou da ausência da mesma. As condições impostas pela pobreza, pela má

51 O Doutor Joaquim de Fontes Galvão em palestra realizada no Centro Operário natalense,

proferia sua crítica as latrinas: “com um assento em cima de quatro pernas enfincadas ou dispondo, apenas, de uma trave à entrada, separando o piso da parte onde caem os excrementos, que ficam ao alcance de gallinhas e pórcos que se encarregam da destruição das fezes, e tão affeitas estão a esse serviço que acompanham habitualmente qualquer pessoa que se dirija para esses imundos logares. Os menos favorecidos pela fortuna nem isso possuem e são obrigados a ‘ir no matto’, deixando a descoberto, pelos campos as suas dejecções.” (GALVÃO, 1927, p. 12)

90 remuneração, pelas condições de trabalho, de limpeza urbana, da rua e da casa implicavam na vidas do corpo coletivo. E se tais problemas eram causados por hábitos nocivos, também significava dizer que tais hábitos não eram irreparáveis, mas sensíveis à intervenção médica via educação higiênica.