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METODOLÓGICOS

2.1. A escolha pelo recorte local e a delimitação do recorte temporal

2.1.1. Delimitação do campo de pesquisa

Pesquisar a história da educação é adentrar em um campo de pesquisa que traz a interdisciplinaridade como característica central de suas abordagens. Essa abertura à outras disciplinas tem enriquecido bastante as discussões na área e que, de acordo com Justino Magalhães foram responsáveis pela migração de uma história puramente institucional, centrada sobretudo “na acepção da educação como sistema ou como instituição”, para uma “história problema”, que

8 Apesar da obra ter se constituído como um marco importante para a realização das inspeções

médico-escolares, essa necessidade de intervenção da medicina no interior das escolas já havia se constituído como plataforma de governo da candidatura de Antonio José de Mello e Souza ao cargo de governador do Estado, em 24 de maio de 1919. Para o político, uma equipe médica deveria ser designada para atuarem em todas as escolas que fossem de responsabilidade do Estado, sendo encarregados de “recomendação especial para atenderem particularmente, no exame individual, aos órgãos dos sentidos, ao funcionamento do aparelho gastro-intestinal, às atitudes do menino em pé ou sentado, e a tudo o mais quanto a sua competência naturalmente julgasse necessário. Em relação ao meio, estudariam as endemias porventura reinantes, o impaludismo, as verminoses e outras, e as moléstias parasitarias; examinariam a água potável recomendando e ensinando providencias de prophylaxia usual e solicitando do governo aquellas que, por sua importância e generalidade, estivessem acima dos meios individuais”. (Grifo nosso). As atribuições do corpo médico pareciam assim ilimitadas no interior das escolas, na visão de Antonio José de Mello e Souza, uma vez que estes profissionais teriam uma formação que lhes dava “naturalmente” a capacidade de intervirem em “tudo o mais” que julgassem necessário. (CARTA Familiar, 1919, p. 25.)

9 LYRA, Alfredo. Inspecção Medico-Escolar. Natal: Atelier Typ. M. Victorino; A. CAMARA & C.

33 se abre às relações da educação e das instituições educativas - na sua diversidade sociocultural e pedagógica - com a sociedade, através da qual a historiografia da educação tem apresentado uma “panóplia de conceitos e temas inovadores” (MAGALHÃES, 2004, p. 91).

Assim, a história da educação vem se preocupando em compreender determinadas realidades sociais tendo como eixo os modelos educativos e/ou de escolas privilegiados em um determinado contexto histórico, de maneira que a história e a educação estabeleçam diálogos de igual relevância para ambas as áreas.

Para tanto, torna-se indispensável o entendimento da historiografia da educação como parte integrante da produção da história, o que implica em não considerá-la como elemento isolado ou simples peça de um cenário a se encaixar num contexto mais amplo, uma vez que a “educação não é um fenômeno que aconteça e permaneça no interior do âmbito educacional” ou de suas instituições ela dialoga permanentemente com outros fenômenos sociais (KUHLMANN Jr., 2007, p. 11).

Nesse sentido, a historiografia da educação tem de buscar, portanto, ultrapassar os limites de uma tradição que toma como ponto de partida exclusivamente o interior do âmbito educacional escolar. A educação não seria apenas uma peça do cenário, subordinada a uma determinada contextualização política ou socioeconômica, mas elemento constitutivo da história da própria produção e reprodução da vida social (KUHLMANN Jr., 2007, p. 15).

Estas questões nos levam a pensar qual o lugar social e político que o saber médico passou a ocupar no interior da cidade de Natal/RN durante o período de gestação da educação republicana e de que maneira seus discursos e as práticas educativas daí decorrentes, foram responsáveis por constituir uma imagem de criança fortemente idealizada: a “criança escolarizada” ia muito além daquela que estava circunscrita ao espaço escolar, sua distinção estava nos gestos, na disciplina de seus corpos, na representatividade de sua figura em festividades cívicas, no papel a ser desempenhado na educação de seus pais, na formação de seu caráter físico e moral – a criança escolarizada tornava-se

34 antes de qualquer coisa, uma entidade pública10 e não apenas um indivíduo isolado em seu círculo familiar.

Na tentativa de delimitar um campo de pesquisa que considere a indissociabilidade entre modelos educacionais, instituições escolares e a produção e reprodução da vida social, conforme nos apontou Kuhlmann Jr., nos debruçamos sobre as discussões feitas por José de D’Assunção Barros em O campo da História, a partir das quais compreendemos o quão problemático se torna conseguir situar a pesquisa historiográfica, que traz como cerne a marca da interdisciplinaridade como é o caso da história da educação, no interior de apenas uma dimensão (enfoque) da historiografia contemporânea.

O autor assinala a tendência de especialização das pesquisas em História na contemporaneidade, ressaltando a existência de Dimensões, Abordagens e Domínios. Para o autor, a dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um “modo de ver”. É algo que se situa em um primeiro plano da observação de uma sociedade historicamente localizada. A abordagem, por sua vez, consiste em um modo de fazer a história a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador, aqui estão situadas questões relativas às fontes, métodos e determinados campos de observação. Por fim, o domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será dirigida a atenção do historiador. (BARROS, 2004).

Barros ainda aponta para os problemas que a hiper- especialização pode trazer para as pesquisas na área, uma vez que ela pode “conduzir ao esquecimento de que o mundo humano não pode ser decalcado do social, do político, do mental [...]. Uma vez que, a história é sempre múltipla, mesmo que haja a possibilidade de examiná-la de perspectivas específicas [...]”. Desta forma, é preciso considerar que “todas as dimensões da realidade social

10 Quando falamos na criança escolarizada como uma entidade pública, podemos situá-la

também ao nível das representações do que viria a ser uma cidadania modelo, compreendendo a cidadania, conforme nos aponta José Murilo de Carvalho (2007), como incluindo todas as modalidades possíveis de relações estabelecidas entre os cidadãos, o governo e todas as instituições do Estado, nesse aspecto, a escola enquanto instituição pública tinha sua imagem renovada e valorizada por essa infância escolar que ultrapassava os limites dos muros dos grupos escolares.

35 interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões isoladas” (BARROS, 2004, p. 21-22).

Com base nestas proposições, situamos nossa tese no imbricamento de dimensões variadas. Trata-se, portanto, de uma pesquisa em História Social, ou em uma História Social da Educação, por preocupar-se sobretudo com as relações humanas/sociais e os processos que tornam a história dinâmica e que foram dando forma as práticas educativas que faziam da infância11 uma etapa propícia para intervenção de caráter médico pedagógico, estruturando formas diversas de ver e tratar a criança no período por nós recortado.

Fazemos referência à uma História Cultural, ou uma História Cultural do Social12, tal qual discute Roger Chartier, por trazermos o conceito de representação como categoria de análise central para a compreensão da criança e das construções explicativas sobre a mesma. O entendimento da relação que se estabelece, portanto, entre medicina, pedagogia e criança no interior do recorte cronológico e espacial ora proposto, nos permite compreender não apenas o lugar social ocupado pela criança escolarizada nessa sociedade, como também as dimensões de significação simbólica que essa mesma sociedade construiu para esses sujeitos, estabelecendo novos sentidos e representações para a ideia de infância13. O uso político das representações e da estruturação do discurso médico como um discurso de verdade/poder, por sua vez, contribuíram para a legitimação de uma imagem específica para a infância e para a criança, uma vez que considera-se que,

11 Entende-se nessa pesquisa que a infância possui um significado genérico e, como qualquer

outra fase da vida, se dá em função das transformações sociais e mentais a serem situadas num determinado tempo e espaço – “toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel” (KUHLMANN Jr., 2007, p. 16).

12 Para Roger Chartier uma História Cultural do Social toma por objeto “a compreensão das

formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos actores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19).

13 François Dosse, em seu livro História em Migalhas, ressalta que há um grande perigo em se

contentar em descrever as variações das representações sem preocupar-se em mostrar como elas se articulam com o real histórico, desta maneira preocupa-nos a evidência dos descompassos, conforme assinalado por Georges Duby, “das discordâncias entre a realidade social e a representação ideológica que não evoluem em perfeita sincronia” (DOSSE, 1994, p. 208).

36 As representações inserem-se em um campo de concorrência e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação – em outras palavras são produzidas aqui verdadeiras lutas de representações. E estas lutas geram inúmeras apropriações possíveis das representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano. (CARDOSO, 2005, p. 6)

As dimensões da representação também estão presentes quando analisamos as instituições escolares republicanas por se constituírem como o lugar, por excelência, das práticas, não apenas discursivas que, em certa medida, construíram ou constituíram os objetos de que falavam, como por exemplo, a noção de “criança escolarizada”, mas também daquelas práticas que inseriam a infância no interior de ações variadas, muitas delas de caráter normatizador e prescritivo visando a modelagem e o disciplinamento dos corpos, como por exemplo, as inspeções médico escolares.

2.2. A importância de pensarmos a relação entre educação e infância: