• Nenhum resultado encontrado

O grau de educação se mede pelo uso do sabão: a criança e o projeto médico social da primeira república em NatalL/RN (1892-1922)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O grau de educação se mede pelo uso do sabão: a criança e o projeto médico social da primeira república em NatalL/RN (1892-1922)"

Copied!
162
0
0

Texto

(1)

1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGED

YUMA FERREIRA

O GRAU DE EDUCAÇÃO SE MEDE PELO USO DO SABÃO: A CRIANÇA E O PROJETO MÉDICO SOCIAL DA PRIMEIRA REPÚBLICA EM NATAL/RN

(1892-1922)

(2)

2 YUMA FERREIRA

O GRAU DE EDUCAÇÃO SE MEDE PELO USO DO SABÃO: A CRIANÇA E O PROJETO MÉDICO SOCIAL DA PRIMEIRA REPÚBLICA EM NATAL/RN

(1892-1922)

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação pelo programa de pós-graduação em Educação, Linha de pesquisa Educação, Estudos Sociohistóricos e Filosóficos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Educação.

Orientador: Prof. Dr. Antônio Basílio Thomaz de Menezes

(3)

3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Ferreira, Yuma.

O grau de educação se mede pelo uso do sabão: a criança e o projeto médico social da primeira república em NatalL/RN (1892-1922) / Yuma Ferreira. - 2019.

161 f.: il.

Tese (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Natal, RN, 2019. Orientador: Prof. Dr. Antônio Basílio Novaes Thomas de

Menezes.

1. Natal(RN) - História - Tese. 2. Inspeção médico escolar - Tese. 3. Processo civilizador - Tese. 4. Ensino republicano - Tese. 5. Higiene - Tese. 6. Infância escolarizada - Tese. I. Menezes, Antônio Basílio Novaes Thomas de. II. Título.

(4)

4 YUMA FERREIRA

O GRAU DE EDUCAÇÃO SE MEDE PELO USO DO SABÃO: A CRIANÇA E O PROJETO MÉDICO SOCIAL DA PRIMEIRA REPÚBLICA EM NATAL/RN

(1892-1922)

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação pelo programa de pós-graduação em Educação, Linha de pesquisa Educação, Estudos Sociohistóricos e Filosóficos, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Educação. Banca examinadora:

Prof. Dr. Antônio Basílio Novaes Thomas de Menezes (orientador) UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. Dr. Hélder do Nascimento Viana (examinador interno) UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. Dr. Walter Pinheiro Barbosa Junior (examinador interno) UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. Dr. Iranilson Buriti de Oliveira (examinador externo) UFCG - Universidade Federal de Campina Grande

Profª. Drª. Lenina Lopes Soares Silva (examinadora externa) IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte

Profª. Drª. Marlúcia Menezes de Paiva (examinadora interna suplente) UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Prof. Dr. José Mateus do Nascimento (examinador externo suplente) IFRN – Instituto Federal do Rio Grande do Norte

(5)

5 Ao meu pai, cujos ensinamentos carrego sempre comigo, pois morre o homem, mas sua história continua sendo perpetuada através das lições que deixou no mundo.

(6)

6 AGRADECIMENTOS

Nossa existência é feita de ciclos! Eis um pensamento recorrente para muitos de nós. Alguns ciclos iniciam e se fecham de forma prazerosa, nos ensinando o valor positivo das coisas simples da vida... são amores, encontros ao acaso, amizades passageiras ou com o peso da perenidade. Outros talham marcas, em cada centímetro do nosso ser, que nos fazem refletir sobre o quanto somos infinitamente pequenos, menores até do que o universo de micróbios que assombram nossa existência e que tanto preocupou os homens de outrora, frente às exigências de uma vida corrida e sem pausa para um café.

Esses ciclos, nos ensinam que o controle sobre nós mesmos e sobre nossas escolhas pode ser muito relativo – não há um script! Hoje percebo que tenho pensamentos que não me pertencem e fragilidades com as quais não sei lidar. De certeza, apenas o crescimento enquanto humana.

Quando iniciei minha vida acadêmica sempre pensei no quanto me sentiria realizada quando estivesse com um diploma nas mãos, porque desde cedo aprendemos que escolarização e prosperidade caminham de mãos dadas. Mas não é bem assim, entre diplomas e leituras descobri que o homem aprende a ler o mundo antes de ler a palavra, para citarmos o grande Paulo Freire; e que nem sempre, ou quase nunca, a nossa formação escolar consegue nos transformar em “mais gente”, muitas vezes ela apenas exclui, segrega, quantifica, estigmatiza, envergonha, como diria o próprio Ivan Illich.

Hoje percebo que quem me fez “mais gente” não foram as escolas nem a universidade pelas quais passei, quem me fez “mais gente”, que acima de tudo se preocupa com gente, foram justamente os encontros, efêmeros ou não, que fui vivenciando ao longo destes “caminhos ciclo”.

Eis que agora encerro mais um, com toda a fragilidade existencial que me faz humana e que me impulsiona a agradecer pelas oportunidades que me foram dadas ao longo deste processo. Sou, acima de tudo, um ser verdadeiramente grato.

(7)

7 Agradeço ao meu orientador, Antônio Basílio, por toda compreensão que me dispensou ao longo desses anos de formação doutoral. Este agradecimento também é um pedido de desculpas, apenas não pude ter sido mais do que fui.

Agradeço às instituições que possibilitaram a concretude deste doutorado: Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN; aos órgãos de apoio e financiamento da pesquisa científica e tecnológica - Capes e CNPq, pelo apoio financeiro concedido; e à Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esporte de Currais Novos, pela concessão de licença para meu aperfeiçoamento.

Agradeço todo apoio emocional que recebi da minha família, vocês tem meu abraço afetuoso. Gratidão especial à você mãe, por tudo, sem você eu nada seria, porque é em você que busco meus exemplos e é para você que procuro ser melhor.

Às minhas irmãs, Isis e Simonelle, obrigada! À primeira com sua presença silenciosa e constante, soube me cobrar comprometimento e dedicação. Sua fé em mim chega a ser maior do que a minha própria. À segunda, por gerar os seres que me fizeram dar um sentido diferente a palavra amor - Layla, Lívia e Sofia vocês são os afetos mais puros que carrego dentro de mim.

Não poderia deixar de agradecer neste espaço familiar, a Daniel Maia... amigos são, sem dúvida, os irmãos que escolhemos, assim sendo, gratidão pela escolha, ela é recíproca e você sabe disso.

Falando em amigos, este percurso me mostrou o significado genuíno do que é preocupação e empatia. Ana Zélia, Tainá Bandeira, Sarah Lima, Anna Gabriela, Kilza, Lucinaide Medeiros e Cláudia Lira... cada uma de vocês, em momento diversos, sabendo ou não, me impulsionaram a não desistir e, acreditem, quis muito fazer isso.

Gratidão ainda aos professores-amigos, neologismo composto para designar uma dupla admiração, porque além de amigos, vocês são inspiração para mim: Olívia de Medeiros Neta, Hélder do Nascimento Viana e Raimundo Nonato. Obrigada!

Por fim, deixo aqui registrado os agradecimentos sinceros às contribuições dos professores Walter Pinheiro, Lenina Lopes, Helder Viana e Iranilson Buriti pelo olhar e leitura atenta desta tese, os apontamentos feitos por vocês foram, sem sombra de dúvidas, valorosos.

(8)

8 “Imbuídos do papel de educadores, os médicos criavam uma imagem heroica e onipresente de si mesmos.” Mariza Romero

(9)

9 RESUMO

A presente pesquisa analisa o processo de conformação do saber médico higienista como um saber capaz de educar a criança, estando o mesmo no cerne da elaboração do projeto de educação das primeiras décadas do regime republicano. Interessa-nos a compreensão de como este saber foi ganhando corporeidade dentro da cidade de Natal/RN, legitimando-se como um saber capaz de forjar um “novo homem” – escolarizado, ordeiro, livre de vícios e apto para o trabalho. Tal ideal humano dialogava, de maneira direta, com os anseios de uma elite intelectual local que traçava na cena urbana os caminhos a serem percorridos para alcançar o mesmo grau de civilidade e desenvolvimento dos países considerados símbolos de uma modernidade positiva e científica. Neste projeto, a criança fora tomada como foco de intervenções variadas que atuavam nas suas vidas desde o espaço público da rua, até a privacidade dos lares, a partir da idealização de uma identidade que tinha na plasticidade, física e mental, sua principal característica, o que tornava a criança um indivíduo propenso à transformação. A escolha por um recorte de caráter local, a cidade de Natal/RN, procurou possibilitar a compreensão das especificidades de um projeto educacional próprio, mas que também dialogava com outras realidades mais amplas, em maior ou menor medida. Como recorte temporal desta pesquisa, adotamos a criação da Inspectoria de Hygiene Pública como marco inicial (1892), uma vez que tal instituição constituiu-se como espaço normativo da prática médica, ganhando legitimidade para intervir em amplos aspectos da vida social. O marco final coincide com a publicação do livro “Inspecção Médico-Escolar” do Dr. Alfredo Lyra. Publicada em 1922, a obra buscava dar embasamento científico e técnico para a realização das inspeções sanitárias nas escolas subvencionadas pelo Estado, em especial, os Grupos Escolares. Tais inspeções foram responsáveis por construir para cada escolar um inventário minucioso acerca das condições de saúde - física e mental – dos alunos norte-rio-grandenses, além de atuarem como critério de classificação das crianças em tipos capazes e inaptos à transformação civilizadora via educação escolar. As noções de Representação e Prática propostas por Roger Chartier, constituem-se como categorias de análiconstituem-se centrais nesta pesquisa por possibilitarem o entendimento das tensões sociais que colocavam em movimento os jogos de poder entre aqueles que buscavam impor, de maneira coercitiva ou negociada, um modelo civilizacional estrategicamente construído a partir da criação de um homem pedagogicamente modificado. As fontes utilizadas nesta pesquisa são de caracteres variados sendo compostas por documentos oficiais legais, como leis, decretos, regimentos e regulamentos; escritos memorialísticos; conferências públicas; imagens e recortes de jornais.

Palavras chave: história da cidade de Natal; Inspeção médico escolar; processo civilizador; ensino republicano; higiene; infância escolarizada.

(10)

10 ABSTRACT

The present research seeks to analyze the process of conformity of the hygienist medical knowledge as a knowledge able to educate the child, being the same in the core of the elaboration of the education project of the first decades of the republican regime. We are interested in understanding how this knowledge was gaining corporeity within the city of Natal / RN, legitimizing itself as a knowledge able to forge a new man - educated, orderly, free of addictions and fit for work. Such a human ideal was in direct dialogue with the aspirations of the local intellectual elite who traced in the urban scene the paths to be followed to reach the same degree of civility and development of the countries considered symbols of a positive and scientific modernity. In this project, the child had been taken as the focus of varied interventions, which acted in their lives from the public space of the street, to the privacy of homes, from the idealization of an identity that had in physical and mental plasticity, its main characteristic, which made the child an individual prone to transformation. The choice for a local setting tried to make possible the understanding of the specificities of an educational project of its own, but also to dialogue with other larger realities to a greater or lesser extent. As a research demarcation, we adopted the creation of the Public Hygiene Inspectorate as the initial landmark (1892), since this institution constituted itself as normative space of medical practice, gaining legitimacy to intervene in broad aspects of social life. The final landmark coincides with the publication of the book Inspecção Médico-Escolar of Dr. Alfredo Lyra. Published in 1922, the work sought to provide scientific basis for sanitary inspections in schools subsidized by the state, especially the School Groups. These inspections were responsible for constructing for each school a detailed inventory of the health conditions - physical and mental - of the students from Rio Grande do Norte, as well as acting as criteria for the classification of children into capable types and unsuitable for civilizing transformation through school education. The notions of Representation and Practice proposed by Roger Chartier constitute central categories of analysis in this research, because it allows the understanding of the social tensions that set in motion the relations of power between those who sought to impose, in a coercive or negotiated way, a civilizational model strategically constructed from the creation of a pedagogically modified man. The sources used in this research are varied, being composed of official legal documents, such as laws, decrees, regiments and regulations; memorialistic writings; public conferences; images and newspaper clippings.

Keywords: history of the city of Natal; school medical inspection; civilizing process; republican teaching; hygiene; schooled childhood.

(11)

11 RESUMEN

La presente investigación busca analizar el proceso de conformación del saber médico higienista como un saber capaz de educar al niño, estando el mismo en el corazón de la elaboración del proyecto de educación de las primeras décadas del régimen republicano. Nos interesa la comprensión de cómo este saber fue ganando corporeidad dentro de la ciudad de Natal / RN, legitimándose como un saber capaz de forjar un nuevo hombre - escolarizado, ordenado, libre de vicios y apto para el trabajo. Tal ideal humano dialogaba, de manera directa, con los anhelos de la elite intelectual local que trazaba en la escena urbana los caminos a recorrer para alcanzar el mismo grado de civilidad y desarrollo de los países considerados símbolos de una modernidad positiva y científica. En este proyecto, el niño fue tomado como foco de intervenciones variadas, que actuaban en sus vidas desde el espacio público de la calle, hasta la privacidad de los hogares, a partir de la idealización de una identidad que tenía en la plasticidad, física y mental, su principal característica, lo que hacía al niño en un individuo propenso a la transformación. La elección por un recorte de carácter local buscó posibilitar la comprensión de las especificidades de un proyecto educativo propio, pero que también dialogaba con otras realidades más amplias en mayor o menor medida.Como recorte de investigación, adoptamos la creación de la Inspectoria de Hygiene pública como marco inicial (1892), una vez que dicha institución se constituyó como espacio normativo de la práctica médica, ganando legitimidad para intervenir en amplios aspectos de la vida social.El marco final coincide con la publicación del libro Inspección Médico-Escolar del Dr. Alfredo Lyra. Publicado en 1922, la obra buscaba dar basamento científico para la realización de las inspecciones sanitarias en las escuelas subvencionadas por el estado, en especial, los Grupos Escolares. Tales inspecciones fueron responsables de construir para cada escolar un inventario minucioso acerca de las condiciones de salud - física y mental - de los alumnos norte-rio-grandenses, además de actuar como criterio de clasificación de los niños en tipos capaces e inaptos a la transformación civilizadora vía educación escolar. Las nociones de Representación y Práctica propuestas por Roger Chartier se constituyen como categorías de análisis centrales en esta investigación, por posibilitar el entendimiento de las tensiones sociales que ponían en movimiento los juegos de poder entre aquellos que buscaban imponer, de manera coercitiva o negociada, un modelo civilizacional estratégicamente construido a partir de la creación de un hombre pedagógicamente modificado. Las fuentes utilizadas en esta investigación son de caracteres variados, estando compuestas por documentos oficiales legales, como leyes, decretos, regimientos y reglamentos; escritos memorialísticos; conferencias públicas; imágenes y recortes de periódicos.

Palabras-clave: historia de la ciudad de Natal; inspeccion medico escolar; proceso civilizador; enseñanza republicana; la higiene; la infancia escolarizada.

(12)

12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Fachada do Instituto Padre João Maria – Natal/RN... 97

Figura 2 Asylo de Mendicidade Padre João Maria - Natal/RN... 98

Figura 3 O alagado da Campina da Ribeira (1864)... 126

Figura 4 Fachada do Grupo Escolar Augusto Severo... 129

Figura 5 Planta baixa do Grupo Escolar “Augusto Severo” (1908)... 130

Figura 6 Determinação arredondada para o canto de parede do prédio escolar com um raio de 0,10 cm... 132

Figura 7 Tipo de latrina recomendado para o gabinete sanitário... 134

Figura 8 Cadastro Sanitário da Escola... 135

Figura 9 Ficha sanitária... 141

Figura 10 Ilustração comparativa do crescimento nas diversas fases de desenvolvimento... 142

(13)

13 LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Índice de mortalidade infantil em relação ao número total de óbitos na cidade de Natal... 87

(14)

14 SUMÁRIO

1. Introdução... 14 2. Capítulo I Definição dos pressupostos

teórico-metodológicos... 25 2.1. A escolha pelo recorte local e a delimitação do recorte temporal... 28 2.2. 2.1.1. Delimitação do campo de pesquisa... 32

2.2. A importância de pensarmos a relação entre educação e infância: um olhar metodológico... 35 2.3. Estabelecendo as categorias de análise... 39 2.3.1. Entre práticas e representações: a articulação entre o mental e o social... 40

2.4. A higiene como um discurso transformador... 49 3. Capítulo II Projeto médico social para a I República: intervenções na vida urbana e educação para o progresso... 56

3.1. As transformações da cidade ou qual Natal queremos... 62 3.2. A organização de um campo de saber: por onde andam os esculápios?... 71

3.3. A Inspectoria de Hygiene Publica e a institucionalização do campo de saber médico em Natal... 83

3.4. Higiene: a arte de educar para a vida... 89 4. Capítulo III Moralizar e educar: intervenções médicas para as crianças na escola... 104

4.1. Como atuar no que não tem: Preâmbulos da educação republicana... 109

4.2. A materialização do espaço saudável: prerrogativas médicas na construção do “Grupo Escolar Augusto Severo”... 120

4.3. “Inspecção Médico Escolar”: um inventário médico da criança na escola... 136

Considerações Finais... 149 Referencial Bibliográfico e Fontes... 153

(15)

15 1. INTRODUÇÃO

A pesquisa que ora apresentamos constitui-se como uma continuidade das investigações realizadas durante o mestrado em História, nas quais buscávamos entender os processos que constituíram a criança como uma entidade pública durante as primeiras três décadas do regime republicano na cidade de Natal/RN.

Naquela ocasião, voltamos nosso olhar para as transformações sociais que problematizaram a capacidade familiar de cuidar dos próprios filhos, delegando para outros sujeitos a prerrogativa de criação de uma infância modelar (FERREIRA, 2009).

Estado, educação e medicina foram por nós recortados como entidades importantes para a secularização dos cuidados com a criança, bem como sua constituição enquanto propriedade pública, na qual promessas de futuro operavam no cerne das ações direcionadas para este público no interior do cenário urbano.

Apesar da investigação realizada, sentimos a necessidade de aprofundar nossa pesquisa na vertente educacional, tendo como mote de análise a transformação da medicina higiênica em um “saber que educa”, considerando como recorte espacial a cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, no período que se estende entre os anos de 1892 a 1922.

Para tanto, centramos nossa pesquisa em torno de uma problemática que procura compreender as redes de relações negociadas que foram sendo estabelecidas entre uma sociedade que, neste período, vivenciava as tensões de transformações profundas próprias de um momento de transição, visando o afastamento de um passado considerado arcaico, ao mesmo tempo em que o conciliava com as promessas de um futuro próspero, desenvolvido e civilizado a partir de um projeto médico social que buscava dar conta de diagnosticar e sanar uma população e seu território por meio de uma ideação audaciosa de intervenção sanitária pelo viés da educação.

(16)

16 Por outro lado, as medidas ansiadas por uma intelectualidade cultural e política local esbarravam numa realidade financeiramente precária, implicando na relativização do alcance prático das propostas de intervenção para a cidade de Natal e sua população e que, muitas vezes, aparentava a existência de um amplo descompasso entre os sonhos de progresso prometido e a realidade crua e sólida de uma cidade deficiente de intervenções urbanas e margeada pelo rio e pelo mar.

Transitando entre a cidade, o corpo social e os sujeitos, a medicina higiênica constituiria a criança em indivíduo propício à intervenções variadas de vertente positiva e científica, a partir da noção de plasticidade física e moral, o que possibilitaria sua modificação por via do imperativo educacional: o homem pedagogicamente modificado seria uma promessa futura que garantiria a marcha “sempre constante” rumo ao progresso humano no curso do processo civilizador (ELIAS, 1994).

O estabelecimento da relação direta entre criança e educação, construída discursivamente ao longo da história moderna, irá direcionar nosso olhar para a desnaturalização da infância, bem como da criança, como um ser exclusivamente bio-fisiológico, ou como uma fase de vivências comuns e não variável em todos os tempos, lugar social e/ou espaços.

Desta maneira, considera-se que sua identificação é, antes de qualquer coisa, de uma ordem que é social e culturalmente construída, definida de maneira estável e concreta, a partir de uma rede de práticas distintas e variantes no tempo e no espaço e que são responsáveis por delinear seus próprios processos educativos que, em sua maioria, constituem-se como prescrição e norma a serem engendrados por agentes alheios a esta etapa de vida (MONARCHA, 2001): a criança não fala, não se define, não escolhe e não determina seus processos de vivência no mundo, estas são determinadas pelo mundo adulto e suas instituições, sejam estas normativas construídas legalmente ou mesmo pela força das ações de intervenção costumeiras constituídas no seio familiar.

(17)

17 São por estes olhares que as experiências infantis no tempo e no espaço chegam até nós, encarnando uma visão estrategicamente idealizada pelo mundo adulto, na qual conformam-se promessas futuras de mulheres e homens ideais.

Destarte, para cada tempo histórico há uma idealização da criança pelo que ela possa vir a ser e não pelo o que ela verdadeiramente é. São representações consolidadas pela força dos discursos e conformadas em práticas diversas que situam socialmente lugares e papéis a serem vividos e desempenhados por esses seres pequenos.

É justamente no entendimento desses processos que gestaram um tipo ideal humano: saneado, medicalizado, higiênico, apto ao trabalho, civilizado, culturalmente avançado, obediente, docilizado, útil à nação, republicanos, etc., que está centrada a relevância desta pesquisa para a construção de um conjunto de explicações possíveis que dão uma feição própria à História da Educação norte-rio-grandense, mesmo que este dialogue, em maior ou menor medida, com outras realidades.

O recorte espacial localizado nesta cidade, portanto, nos ajuda a construir de forma sincrônica, relações diversas entre as determinações de uma educação republicana brasileira, de maneira geral, cujas bases estavam amparadas num forte idealismo que procurava aproximar o país à realidade dos países considerados símbolos de civilização e progresso, e a realidade de um estado carente de recursos e limitado pela confluência de um conjunto de hábitos que, muitas vezes, se negava a aceitar as intervenções externas em sua vida privada e que não dispunha de recursos financeiros suficientes para construir um aparato educacional sólido, com infraestrutura e recursos humanos aptos à implantação de seus próprios projetos.

Para tanto, nossa discussão compactua com as premissas apresentadas por Maria Madalena Silva de Assunção quando discorre acerca da mudança de paradigma da historiografia da educação, no qual uma “História da Pedagogia” abre espaço para uma “História da Educação”, saindo de análises do ambiente exclusivamente institucional e das práticas pedagógicas ali vigentes, para dar conta de realidades ampliadas, nas quais sociedade e escola dialogam mutuamente (FARIA FILHO, 2004).

(18)

18 Neste sentido, devemos buscar problematizar, assim como nos intuiu Rosa Fatima de Souza (1998), sobre os motivos que levam uma determinada sociedade a ensinar o que ensina em detrimento de outras escolhas, desnaturalizando, desta maneira, processos, discursos e práticas, para entendermos que toda e qualquer ação pedagógica traz consigo uma identidade que é sempre, ou quase sempre, intencional.

Para isso seremos levados a pensar sobre o lugar social e político que o saber médico passou a ocupar no interior da cidade de Natal/RN durante o período de gestação da educação republicana, bem como em que medida seus discursos e as práticas educativas deles derivadas foram responsáveis por constituir uma imagem de criança fortemente idealizada: a criança escolarizada.

A partir da temática da educação higiênica e da medicina social adotamos como título de nossa pesquisa O grau de educação se mede pelo uso do sabão: a criança e o projeto médico social da Primeira República em Natal (1892-1922).

Nosso título faz alusão à célebre frase cunhada pelo médico higienista Almeida Junior e proferida em 1922: “O grau de educação de uma pessoa se mede pela quantidade de sabão que consome”, que buscava associar o problema educacional à crítica em torno da falta de higiene perceptível, aos olhos e ao nariz, em praticamente toda a população brasileira, constituindo-se como mote de intervenção do saber médico sobre a vida e a morte do povo.

A simbologia desta máxima é facilmente explicada quando confrontada com a situação sanitária do país nos primeiros anos do período republicano e que deram embasamento à justificativa imperativa que colocava a necessidade de urbanização e remodelação da cidade como ações prioritárias do poder púbico recém implantado.

Em praticamente toda a extensão do território nacional era constante se deparar com toda sorte de imundície e parasitas. Eles estavam espalhados por todos os recantos e em todos os lares, do rico ao pobre, do velho ao nascituro, e davam sustentação ao conjunto de críticas médicas acerca dos maus hábitos da população brasileira e que faziam do país um “grande hospital”. Sendo assim,

(19)

19 A limpeza, principalmente a do corpo, tornar-se-ia um dos objetivos fundamentais da medicina e ligar-se-ia intimamente à superação de um modo de viver permeado pela ignorância. Esta, definida como desconhecimento dos princípios higiênicos, reinaria soberana, inclusive no seio da elite, que, a partir de então, deveria sentir-se envergonhada por atitudes que estivessem próximas das restantes da população da qual deveria afastar-se. (ROMERO, 2002, p. 74)

Em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, tal crítica resultou na projeção de médicos dentro da cidade, cujo saber foi se constituindo enquanto saber normativo influindo na gestação, nos discursos e nas práticas que foram dando feição ao projeto de educação republicana vigente entre os anos de 1892 e 1922, assim como, fora construindo novas representações para a infância.

A medicina higienista com suas ramificações de cunho psicológico e pedagógico atuará no âmbito doméstico, mostrando-se eficaz na tarefa de educar as famílias a exercerem vigilância sobre seus filhos. Aqueles que não pudessem ser criados por suas famílias, tidas como incapazes ou indignas, seriam de responsabilidade do Estado. (RIZZINI, 2008, p. 25)

Fora do ambiente doméstico, tiveram na escola um dispositivo estratégico ímpar com funções ampliadas e para além do simples repasse dos conteúdos. Era o espaço por excelência da conformação da norma: pretensamente secularizado, constituindo-se como lugar de embates variados entre saberes, práticas e sujeitos, que visavam uma educação que deveria confluir para a modificação do corpo e do espírito do aluno do ponto de vista médico.

O nosso recorte temporal procura fugir de um corte exclusivamente político, 1889, comum para aqueles que tratam desta temática, uma vez que o início do regime republicano constituiu-se em marco importante para a mudança no caráter educacional brasileiro, já que conflui para os ideais de secularização, universalização, recorte dos conteúdos baseados em saberes modernos de base positiva e científica, gratuidade, infraestrutura própria, etc.

(20)

20 Apesar de considerarmos essas questões como de relevância indispensável para o entendimento do período, as quais serão aqui levadas em consideração, demos ênfase a um crivo de caráter médico, a partir da criação de uma instituição pública em Natal/RN, a “Inspectoria de Hygiene Publica”. Tal órgão passava a reposicionar o papel social do médico dentro da cidade, dando a este uma importância até então não vista, como também possibilidades de normalização de seu saber, por isso, justificamos o ano de 1892 como nosso marco inicial.

Como recorte temporal final, adotamos a publicação do livro “Inspecção médico-escolar” (1922), escrito pelo doutor Alfredo Lyra, como primordial para a entrada efetiva do saber médico na escola. Confundindo a escola com a clínica, as inspeções sanitárias escolares, colocarão sob o olhar vigilante do esculápio, por via do exame, toda a possibilidade de vivência do aluno naquele ambiente, e em menor medida, fora dele.

O processo de construção de nossa tese foi guiado por alguns questionamentos que também conformou nossa apreciação metodológica em relação as fontes: a que crianças/infância estava destinada a educação republicana? Como esse modelo educacional foi gestado? A partir de que ideais? Como o saber médico se constituiu como saber normatizador e ganhou legitimidade no interior desta sociedade tornando-se um dos educadores da infância? De que maneira esses saberes deram forma a determinadas práticas educativas institucionalizadas? Em que medida as negociações entre população e saber médico implicaram em aceitação ou resistência no alcance dessas intervenções?

Na busca por responder a estes questionamentos procuraremos percorrer ao longo do trabalho caminhos diversos, a partir da entrada da figura do médico no rol dos responsáveis pela construção de uma sociedade sã, até a entrada efetiva desse indivíduo na vida escolar dos estudantes. Nossos olhares e caminhos serão guiados, teórico e metodologicamente, pelas categorias de análise de Representação e Prática apresentadas por Roger Chartier (1990).

As noções de Representação e Prática nos guiarão por todo o processo de pesquisa, ao longo do qual buscaremos entender a constituição do saber

(21)

21 médico como uma saber que educa, tendo o entendimento da higiene como um discurso salvacionista e civilizador1.

Para além das categorias de análise acima citadas, outras conceituações aparecerão como guias para o entendimento da realidade por nós recortada, como infância, compreendida aqui como constructo social, na acepção de Philippe Ariès (1981); as formulações de Norbert Elias (1994) acerca do processo civilizador, que nos ajuda a problematizar os recortes discursivos da intelectualidade local que influíam na urbanização da cidade e na delimitação de comportamentos exemplares, constituindo estes como ações indispensáveis na determinação do que viria a ser ou não comportamentos adequados para aquele momento histórico, constituindo-se assim como um processo civilizador próprio.

A conceituação de disciplina, tal qual nos apresenta Foucault (1986), e que foi amplamente disseminada pelo modelo educacional moderno, enquanto dispositivo de poder, comparado a conformações das instituições austeras, como por exemplo, as prisões, os conventos, as fábricas, os hospitais etc., nas quais a conformação espacial de sua estruturação física era pensada com a finalidade de normatizar as ações do corpo no espaço e no tempo, bem como, o auto adestramento advindo da internalização não consciente de micro poderes, que buscavam como questão fim, controlar de maneira efetiva as vontades individuais, docilizando os corpos na mesma proporção que os deixavam mais úteis e produtivos.

Neste ponto, quando analisamos a construção dos Grupo Escolares devemos atentar para a ritualização, simbologia e gramática silenciosa de sua espacialidade interna e externa, tanto para aqueles que estavam dentro, quanto fora de seus muros. Neste sentido, é ímpar analisarmos o porquê do estabelecimento de determinados modelos estruturais para a construção dos prédios escolares modernos em detrimento de outros. Cada medida, altura, tamanho, material empregado, localização na cidade, tempos cronometrados

1 De acordo com Machado (et all, 1978), “a higiene será um tipo de intervenção característica de

uma medicina que coloca em primeiro plano a questão d sua função social; que produz conceitos e programas de ação através de que a sociedade aparece como o novo objeto de suas atribuições e a saúde dos indivíduos e das populações deixa de significar unicamente a luta contra a doença para se tornar o correlato de um modelo médico-político de controle contínuo.” (p. 53)

(22)

22 para ações dos corpos no espaço, foram judiciosamente pensados e planejados para transmitir uma mensagem. Era a escola um templo do saber, da racionalidade republicana, da educação dos corpos, da modelação da infância e, por consequência, da idealização do adulto.

As fontes por nós analisadas são de naturezas variadas. Demos visibilidade à fontes escritas ligadas aos órgão oficiais do Estado, como mensagens dos presidentes de estado, regulamentos, decretos, legislação e regimentos que davam normatização ao funcionamento institucional dos órgãos ligados à assistência, à medicina e à educação, cujos conteúdos nos ajuda a delinear os discursos daqueles responsáveis por normatizar e construir uma visão ideal de ensino e educação para a criança republicana; utilizamos também recortes de periódicos locais, a partir dos quais pudemos ouvir as vozes das pessoas comuns, num diálogo constante entre Estado e população letrada; fizemos uso de memórias e conferências públicas proferidas pela intelectualidade local, que por via de suas relações com o poder público, confluíam para a construção de um ideário republicano de progresso e crescimento, ressaltando a importância do homem público. Ainda analisamos um conjunto de documentação diversa para além da escrita, como imagens, produção literária e afins, assim como um conjunto de escritos ligados às práticas médicas locais e trabalhos acadêmicos produzidos por uma historiografia da educação com os quais dialogamos ao longo da nossa pesquisa.

Tais documentações encontram-se sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGBRN, outros estão em formato digitalizado e fazem parte do acervo da pesquisadora ou do Núcleo de Estudos Históricos, Arqueológicos e documentação do Departamento de História da UFRN.

Tal seleção nos ajudará a compreender os processos sociais que deram legitimidade ao saber médico social como um saber que educa, considerando todo o conjunto de tensões entre ideias, sujeitos e instituições, guiados por interesses, imposições, ações de resistência, negociações sociais, etc., demarcando necessidades que geraram inúmeras apropriações possíveis das

(23)

23 representações por parte da sociedade e que se confrontaram no mundo humano.

A partir deste entendimento, apresentamos como estruturação para nossa tese um percurso longo que dá corpo aos anseios de transformação das condições físicas da cidade, que exigiram das políticas públicas investimentos contundentes em sua infraestrutura, na busca por construir para a cidade uma identidade que fosse apartada dos tradicionalismos culturais de uma urbe que estava muito mais voltada para uma vida íntima e privada, do que para as exigências de uma existência pública, tão reclamada pela nascente República.

A partir daí, direcionaremos nosso olhar para as intervenções que procuravam dar uma nova feição ao homem republicano, valorizando um conjunto de conhecimentos técnicos e científicos que colocavam na cena urbana sujeitos até então pouco visíveis. Com seus conjuntos de saberes normalizados, engenheiros, arquitetos, educadores e médicos eram chamados a cena urbana com a missão de unir carne e pedra, a partir das exigências para uma cidade saneada a ser ocupada por homens pedagogicamente modificados.

No capítulo I - “Definição dos pressupostos teórico-metodológicos”, buscaremos delinear o conjunto de influências teóricas e metodológicas que darão corpo a nossa tese, ressaltando a importância de pensarmos a relação entre educação, medicina e criança no interior do projeto republicano de educação. Discutiremos nossa problemática de pesquisa e como esta se insere no campo da historiografia da educação, a partir de uma abordagem que ultrapassa a noção de história das práticas pedagógicas.

Transitaremos entre o espaço público e privado no capítulo II - “Projeto médico social para a I República: intervenções na vida urbana e educação para o progresso”, para demonstrarmos as estratégias que buscavam dar legitimidade aos agentes da mudança, implicando na sua presença cada vez mais constante na vida íntima do natalense. Fazendo uso de um projeto médico social que buscava problematizar a condição da família de gerir seus próprios filhos, a partir da ideia da higiene como condição de “poder, progresso e civilização” (RIZZINI, 2008, p. 108), a institucionalização da assistência à criança desvalida construía para si a probabilidade de romper com uma herança perniciosa, demonstrando

(24)

24 que havia possibilidades concretas de distanciar-se de um passado vicioso, que transformava a infância pobre e abandonada num grave problema social.

O movimento que se constituiu com o objetivo de ‘salvar a criança’ tem sua origem exatamente a partir da crença de que heranças e meio deletérios transformavam em monstros, crianças já marcadas por certas inclinações inatas, acarretando consequências funestas para a sociedade como um todo. Salvar essa criança, era uma missão que ultrapassava os limites da religião e da família e assumia a dimensão política de controle, sob a justificativa de que havia que se defender a sociedade em nome da ordem e da paz social. (RIZZINI, 2008, p. 101)

No capítulo III - “Moralizar e educar: intervenções médicas para as crianças na escola”, propomos compreender como a escolha pelo dispositivo escolar, materializado na construção dos grupos escolares como mote para a educação, mostrou-se campo fértil para a adoção de medidas normativas e/ou persuasivas em relação a educação moral e mental do escolar pelo viés da medicina social e/ou higiênica.

Neste campo, a higiene enquanto ciência social e política, confluiriam todas as suas forças para o aperfeiçoamento humano: “essa meta não seria alcançada apenas com medidas oficiais- que levavam frequentemente à indiferença, à antipatia pela lei e até mesmo à revolta a mão armada -, mas com uma campanha contínua e persuasiva”. (ROMERO, 2002, p. 80)

Tais ações teriam nas Inspeções Médico-escolares sua convergência principal. Ao transformar a escola num “espaço clínica” o saber médico atua como figura animada capaz de explicar o escolar nos seus mais íntimos aspectos. Tratava-se de um rigoroso exame profissional, cujo olhar minucioso seria capaz de diagnosticar, intervir e prever os rumos futuros da humanidade. Atuando em várias frentes, a inspeção deveria observar “todos os elementos que pudessem concorrer para as condições sanitárias e higiênicas dos escolares, bem como para a pronta solução de seus problemas”. (CAMARA, 2013, p. 77).

Nas considerações finais teceremos apreciações que buscam compreender o que há de próprio no processo de escolarização da infância

(25)

25 natalense, pelo viés das intervenções promovidas pelo campo médico na vida das crianças e de como estas dialogam com realidades mais amplas, sejam estas dentro ou fora do país. Também buscaremos responder as questões que guiaram as análises presentes nesta tese e que, por sua vez, nos auxiliaram no entendimento dos diversos processos que deram ao saber médico uma conotação de um saber que educa.

(26)

26

2. CAPÍTULO I: DEFINIÇÃO DOS PRESSUPOSTOS

TEÓRICO-METODOLÓGICOS

O grau de educação de uma pessoa se mede pela quantidade de sabão que consome.

Dr. Almeida Junior, 1922

A proposta de se trabalhar com a temática sobre a conformação do projeto médico social para a educação da criança na Primeira República em Natal/RN - (1892-1922), foi fruto das inquietações geradas quando ainda construíamos nossa dissertação de mestrado. Naquela ocasião, buscávamos compreender as relações que iam sendo estabelecidas entre a infância e uma cidade que se empenhava em ganhar ares modernos e civilizados na mesma proporção em que buscava se distanciar de tudo aquilo que era considerado como arcaico e de uma urbanidade de feição quase rural2.

Tomamos a infância como uma categoria de análise central para o entendimento do que propúnhamos como objeto de pesquisa, na medida em que a infância ia sendo constituída como entidade pública e fase propícia à transformações e intervenções variadas e, portanto, passava a ser vista como possibilitadora de um futuro promissor nos moldes dos padrões civilizacionais então estabelecidos.

Apesar das discussões realizadas em nossa dissertação de mestrado, consideramos que um olhar voltado para a tomada da criança como objeto de investimento e intervenção pelo projeto médico social se constitua como um objeto de análise importante para a compreensão dos processos que deram feição ao projeto educativo daquela realidade social, assim como, para o

2 Ver: FERREIRA, Yuma. A criança e a cidade: as transformações da infância numa Natal

Moderna (1890-1929). Dissertação (mestrado em História) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 190 f.

(27)

27 entendimento dos processos sociais, políticos e culturais que deram legitimidade a esse mesmo saber, considerando-o capaz de moldar a infância a partir de um projeto educacional fortemente imbuído de preceitos normatizadores e higiênicos e que fora institucionalizado pela educação republicana neste período.

Conforme nos aponta o historiador José Gonçalves Gondra, o saber médico estava associado ao desejo de construção de uma sociedade/nação moderna, cujas bases estavam amparadas, sobretudo, na educação do corpo e da mente. Para o autor, educação escolar e educação médica construiriam juntas os pilares da civilidade republicana: “civilizar e higienizar conformavam uma gramática fortemente articulada” (GONDRA, 2002, p. 315).

Importa-nos ressaltar que a educação3, própria ao período estudado, também se apresentava como um campo de negociações, no qual sociedade, instituições e saber médico estabeleciam relações que se interpenetravam. Se, por um lado, o discurso de uma medicina social adquiria um poder que era sobretudo normatizador e prescritivo, fosse no campo discursivo ou das práticas daí derivadas, por outro passavam a estabelecer diálogos com uma sociedade que vivenciava as tensões de um momento de transição e que, aos poucos, ia retirando da família a função de educadora de seus próprios filhos.

Essa visão nos permite compreender os processos educacionais, sejam eles políticos, pedagógicos, médicos, etc., que forjaram a educação da Primeira República de forma mais problematizada, conforme nos apresenta o historiador Durval Muniz concebe a história, vista como resultado de:

Jogos múltiplos, de inúmeros afrontamentos entre forças e saberes, ela [a história] é fruto da emergência de uma dispersão dos conhecimentos que são resultado de embates que emergem em meio a forças litigantes. Por isso a história praticada como genealogia ‘restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações. (ALBUQUERQUE Jr., 2007, p. 167).

3 A palavra educação aqui aplicada também se refere às práticas educativas que iam além

daquelas institucionalizadas no interior das escolas da I República, mas antes, faz referência aos diversos esforços da intelectualidade potiguar e da elite política em associar a ideia de desenvolvimento local/nacional e progresso à necessidade de modelação dos comportamentos sociais e sociabilidade urbana.

(28)

28 Por esta razão, propomos como problemática de pesquisa a imbrincada relação entre a sociedade natalense e o projeto médico social para a educação da criança4 que começou a ser trilhado na cidade de Natal/RN durante o período que compreende os anos de 1892 e 1922, a partir da temática O grau de educação se mede pelo uso do sabão: a criança e o projeto médico social da Primeira República em Natal (1892-1922).

Nossa tese está centrada na proposição de que no período acima compreendido, o saber médico foi se constituindo enquanto saber normativo influindo na gestação, nos discursos e nas práticas que foram dando feição ao projeto de educação republicana vigente entre os anos de 1892 e 1922, assim como fora construindo novas representações para a criança.

Neste período, a escola passava a ser tida como um dispositivo estratégico, cujas funções iam além do repasse de conteúdos pré-selecionados, constituindo-se como um espaço pretensamente secularizado e lugar de embates variados entre saberes, práticas e sujeitos, visando uma educação que deveria confluir para a modificação do corpo e do espírito.

De maneira geral, a educação republicana centrava-se na divulgação da ciência, na formação do sentimento nacional e na regeneração da sociedade, sendo na infância uma etapa de vida propícia à intervenções de múltiplos caracteres que buscavam a efetivação desses anseios e que acabou dando à educação, deste início de República, um aspecto que também era político5, conforme assinalado pela historiadora Carlota Boto (1996) acerca da emergência de um projeto educacional cujas raízes já podiam ser encontradas no pensamento iluminista e enciclopédico francês e que resultaria em um homem pedagogicamente modificado.

4 Essa relação se estabelece, na medida em que, considera-se a infância, sobretudo como

“construção de ordem social e cultural, eficaz e significativa, a qual, em cada época, tem-se a pretensão de definir de forma estável e concreta, engendrando, frequentemente, práticas e processos educativos de natureza prescritiva e normatizadora”. (MONARCHA, 2001, p. 2).

5 Trata-se de uma visão não naturalizada dos processos escolares, conforme acentua a

historiadora Rosa Fátima de Souza, quando nos incentiva a questionar sobre o porquê a escola ensina o que ensina. Sendo esse um questionamento central para a compreensão da finalidade social, cultural e política das instituições educativas e do tipo de homens e mulheres que uma dada sociedade em determinado tempo deseja formar (SOUZA, 2008).

(29)

29 Para a historiadora, “creditou-se à instrução o ofício de palmilhar a arquitetura da nova sociedade. A escola – como instituição do Estado – deveria gerir e proteger a República” (BOTO, 1996, p. 16).

Considerando o início do regime republicano em Natal/RN, Ferreira (2009) demonstra que o novo momento político centrou a educação da infância em três eixos principais: O primeiro consistia no tratamento da infância e da sua educação como sendo indispensáveis para a produção de uma cidade moderna e civilizada; o segundo eixo caracterizava a Pedagogia e a Medicina como saberes especializados que, como outras ciências, tomaram a criança como seu objeto de estudo, através de um processo de desqualificação das práticas familiares6, não só no que dizia respeito aos cuidados com os filhos, como também, com a sua educação; por fim, a educação passava a ser considerada um meio de ordenamento das práticas sociais, através da submissão e da educação moral da infância.

2.1. A escolha pelo recorte local e a delimitação do recorte temporal

A escolha por um recorte de caráter local/regional7 - Natal/RN - assinala para a importância de compreendermos diferentes realidades sociais de forma menos generalizante. Em nosso caso realizar uma pesquisa que busca reconstruir parte da história da educação das crianças natalenses nos possibilita o estabelecimento de diálogos com outras realidades sociais de forma sincrônica, na busca por compreender permanências, rupturas e diferenciações.

6 Um exemplo dessa tentativa de desqualificação da capacidade familiar de gerir e educar seus

filhos pode ser encontrado, por exemplo, num pequeno manual publicado pelo Instituto de Proteção e Assistência a Infância intitulado de “50 conselhos de hygiene infantil para uso das mães pobres” (s/d). Nele havia uma sequência de passos designando cuidados e atenção a serem adotados pelas mães desde o primeiro dia de nascimento de seu filho até este completar um ano de vida. (FERREIRA, 2009, p. 154-155).

7 Janaína Amado entende por região a “categoria espacial que expressa uma especificidade,

uma singularidade, dentro de uma totalidade; assim, a região configura um espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla, com a qual se articula”. (AMADO, 1990, p. 15 apud CARVALHO; CARVALHO, 2010, p.98).

(30)

30 Para Carvalho, a importância do recorte local, situa-se na permissão de:

Redimensionar o aparente antagonismo entre o centro e a periferia, isto é, o local e o global, ao deslocar a centralidade do problema da discussão para a apropriação de informações concernentes às relações que plasmaram os grupos sociais existentes (CARVALHO; CARVALHO, 2010, p. 86).

A partir do exposto sabemos que muitos pesquisadores da História da Educação já se debruçaram sobre o mesmo recorte temporal em espacialidades distintas, construindo bases interpretativas importantes para o entendimento da educação republicana, como por exemplo as pesquisas realizadas por Rosa Fátima de Souza (1998), Farias Filho (2004; 2005), Monarcha (2001), Freitas e Kuhlmann Júnior (2002), só para citarmos trabalhos usualmente utilizados em pesquisas realizadas sobre esse tema, nas quais destacam-se experiências institucionais variadas que vão desde a construção dos grupos escolares até educação doméstica.

Considerando estas pesquisas podemos perceber que, de maneira geral, Natal/RN partilhava do projeto de educação republicana tal como ocorria em outras partes do país, ao aderir ao dispositivo escolar, em especial os Grupos Escolares, como as instituições onde as bases da nacionalidade republicana deveriam ser gestadas, assim como ao enfatizar a,

Centralidade da criança nas relações de aprendizagem, o respeito às normas higiênicas na disciplinarização do corpo do aluno e de seus gestos, a cientificidade da escolarização de saberes e fazeres sociais e a exaltação do ato de observar, de intuir, na construção do conhecimento do aluno (VIDAL, 2003, p. 497).

Por outro lado, a opção pelo recorte regional não visa, apenas, opor ou inserir uma análise local nesse contexto global, mas antes entender os processos internos que deram legitimidade ao modelo de educação republicana na cidade de Natal/RN, enfatizando como o saber médico assumiu uma função de caráter educativo constituindo-se, dessa maneira, como sendo também um

(31)

31 educador da infância. Nesse aspecto, consideramos importantes as apreciações de Norbert Elias sobre o recorte local. Para o sociólogo,

O uso de uma pequena comunidade social como foco da investigação de problemas igualmente encontráveis numa grande variedade de unidades sociais, maiores e mais diferenciadas, possibilita a exploração desses problemas com uma minúcia considerável – microscopicamente, por assim dizer. Pode-se construir um modelo pronto para ser testado, ampliado e, se necessário, revisto através da investigação de figurações correlatas em maior escala (ELIAS, 2000, p. 20).

Em relação ao recorte temporal, apesar de considerarmos a importância do início do regime republicano (1889) como sendo um marco na história educacional brasileira, optamos por um recorte de caráter mais específico ligado a relação entre saber médico e educação. Para tanto, propomos como marco inicial a criação de uma repartição sanitária estadual – a Inspetoria de Hygiene Pública, instituída através da Lei nº 14, de 11 de junho de 1892, uma vez que esta demarcava no estado do Rio Grande do Norte a fundação de um órgão institucionalizado que tinha como uma de suas funções a inspeção de escolas, repartições públicas, fábricas, estabelecimentos de empresas, oficinas, hospitais, lazaretos, hospícios, prisões, quartéis, instituições de caridade e beneficência, arsenais, asilos e quaisquer habitações coletivas, públicas e particulares. Demonstrando dessa maneira, uma intervenção médica mais efetiva, com amparo legal, no cotidiano dos cidadãos e suas respectivas instituições, além de constituir-se como espaço de debates de caráter positivo e de recolocação social do médico na cidade.

O recorte final da nossa pesquisa faz referência a publicação da obra

Inspecção Medico-Escolar, escrita pelo Dr. Alfredo Lyra e publicada em 1922 em

Natal pelo Atelier Typ. M. Victorino; A. Camara & C. Essa obra se constituiu como um estudo sistemático das ações médicas, tanto do ponto de vista sanitário, como também higiênico, a serem adotadas no interior das escolas.

(32)

32 De acordo com o manual de Alfredo Lyra8, essas inspeções atuariam em três pontos principais: o primeiro ponto dizia respeito a vigilância sanitária do meio escolar; o segundo, ao exame individual dos alunos; e por fim, o terceiro ponto dizia respeito a prevenção das doenças transmissíveis9.

Essa obra se constitui, portanto, como um elemento central na formalização das inspeções médico-escolares enquanto elemento prescritivo no interior das instituições escolares, unindo higiene e pedagogia para fazer um estudo sistemático dos alunos e de seu entorno, buscando conhecê-los com exatidão, permitindo assim, julgar os encaminhamentos necessários para efetuar a transformação física e mental dos escolares.

2.1.1. Delimitação do campo de pesquisa

Pesquisar a história da educação é adentrar em um campo de pesquisa que traz a interdisciplinaridade como característica central de suas abordagens. Essa abertura à outras disciplinas tem enriquecido bastante as discussões na área e que, de acordo com Justino Magalhães foram responsáveis pela migração de uma história puramente institucional, centrada sobretudo “na acepção da educação como sistema ou como instituição”, para uma “história problema”, que

8 Apesar da obra ter se constituído como um marco importante para a realização das inspeções

médico-escolares, essa necessidade de intervenção da medicina no interior das escolas já havia se constituído como plataforma de governo da candidatura de Antonio José de Mello e Souza ao cargo de governador do Estado, em 24 de maio de 1919. Para o político, uma equipe médica deveria ser designada para atuarem em todas as escolas que fossem de responsabilidade do Estado, sendo encarregados de “recomendação especial para atenderem particularmente, no exame individual, aos órgãos dos sentidos, ao funcionamento do aparelho gastro-intestinal, às atitudes do menino em pé ou sentado, e a tudo o mais quanto a sua competência naturalmente julgasse necessário. Em relação ao meio, estudariam as endemias porventura reinantes, o impaludismo, as verminoses e outras, e as moléstias parasitarias; examinariam a água potável recomendando e ensinando providencias de prophylaxia usual e solicitando do governo aquellas que, por sua importância e generalidade, estivessem acima dos meios individuais”. (Grifo nosso). As atribuições do corpo médico pareciam assim ilimitadas no interior das escolas, na visão de Antonio José de Mello e Souza, uma vez que estes profissionais teriam uma formação que lhes dava “naturalmente” a capacidade de intervirem em “tudo o mais” que julgassem necessário. (CARTA Familiar, 1919, p. 25.)

9 LYRA, Alfredo. Inspecção Medico-Escolar. Natal: Atelier Typ. M. Victorino; A. CAMARA & C.

(33)

33 se abre às relações da educação e das instituições educativas - na sua diversidade sociocultural e pedagógica - com a sociedade, através da qual a historiografia da educação tem apresentado uma “panóplia de conceitos e temas inovadores” (MAGALHÃES, 2004, p. 91).

Assim, a história da educação vem se preocupando em compreender determinadas realidades sociais tendo como eixo os modelos educativos e/ou de escolas privilegiados em um determinado contexto histórico, de maneira que a história e a educação estabeleçam diálogos de igual relevância para ambas as áreas.

Para tanto, torna-se indispensável o entendimento da historiografia da educação como parte integrante da produção da história, o que implica em não considerá-la como elemento isolado ou simples peça de um cenário a se encaixar num contexto mais amplo, uma vez que a “educação não é um fenômeno que aconteça e permaneça no interior do âmbito educacional” ou de suas instituições ela dialoga permanentemente com outros fenômenos sociais (KUHLMANN Jr., 2007, p. 11).

Nesse sentido, a historiografia da educação tem de buscar, portanto, ultrapassar os limites de uma tradição que toma como ponto de partida exclusivamente o interior do âmbito educacional escolar. A educação não seria apenas uma peça do cenário, subordinada a uma determinada contextualização política ou socioeconômica, mas elemento constitutivo da história da própria produção e reprodução da vida social (KUHLMANN Jr., 2007, p. 15).

Estas questões nos levam a pensar qual o lugar social e político que o saber médico passou a ocupar no interior da cidade de Natal/RN durante o período de gestação da educação republicana e de que maneira seus discursos e as práticas educativas daí decorrentes, foram responsáveis por constituir uma imagem de criança fortemente idealizada: a “criança escolarizada” ia muito além daquela que estava circunscrita ao espaço escolar, sua distinção estava nos gestos, na disciplina de seus corpos, na representatividade de sua figura em festividades cívicas, no papel a ser desempenhado na educação de seus pais, na formação de seu caráter físico e moral – a criança escolarizada tornava-se

(34)

34 antes de qualquer coisa, uma entidade pública10 e não apenas um indivíduo isolado em seu círculo familiar.

Na tentativa de delimitar um campo de pesquisa que considere a indissociabilidade entre modelos educacionais, instituições escolares e a produção e reprodução da vida social, conforme nos apontou Kuhlmann Jr., nos debruçamos sobre as discussões feitas por José de D’Assunção Barros em O campo da História, a partir das quais compreendemos o quão problemático se torna conseguir situar a pesquisa historiográfica, que traz como cerne a marca da interdisciplinaridade como é o caso da história da educação, no interior de apenas uma dimensão (enfoque) da historiografia contemporânea.

O autor assinala a tendência de especialização das pesquisas em História na contemporaneidade, ressaltando a existência de Dimensões, Abordagens e Domínios. Para o autor, a dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um “modo de ver”. É algo que se situa em um primeiro plano da observação de uma sociedade historicamente localizada. A abordagem, por sua vez, consiste em um modo de fazer a história a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador, aqui estão situadas questões relativas às fontes, métodos e determinados campos de observação. Por fim, o domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será dirigida a atenção do historiador. (BARROS, 2004).

Barros ainda aponta para os problemas que a hiper- especialização pode trazer para as pesquisas na área, uma vez que ela pode “conduzir ao esquecimento de que o mundo humano não pode ser decalcado do social, do político, do mental [...]. Uma vez que, a história é sempre múltipla, mesmo que haja a possibilidade de examiná-la de perspectivas específicas [...]”. Desta forma, é preciso considerar que “todas as dimensões da realidade social

10 Quando falamos na criança escolarizada como uma entidade pública, podemos situá-la

também ao nível das representações do que viria a ser uma cidadania modelo, compreendendo a cidadania, conforme nos aponta José Murilo de Carvalho (2007), como incluindo todas as modalidades possíveis de relações estabelecidas entre os cidadãos, o governo e todas as instituições do Estado, nesse aspecto, a escola enquanto instituição pública tinha sua imagem renovada e valorizada por essa infância escolar que ultrapassava os limites dos muros dos grupos escolares.

(35)

35 interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões isoladas” (BARROS, 2004, p. 21-22).

Com base nestas proposições, situamos nossa tese no imbricamento de dimensões variadas. Trata-se, portanto, de uma pesquisa em História Social, ou em uma História Social da Educação, por preocupar-se sobretudo com as relações humanas/sociais e os processos que tornam a história dinâmica e que foram dando forma as práticas educativas que faziam da infância11 uma etapa propícia para intervenção de caráter médico pedagógico, estruturando formas diversas de ver e tratar a criança no período por nós recortado.

Fazemos referência à uma História Cultural, ou uma História Cultural do Social12, tal qual discute Roger Chartier, por trazermos o conceito de representação como categoria de análise central para a compreensão da criança e das construções explicativas sobre a mesma. O entendimento da relação que se estabelece, portanto, entre medicina, pedagogia e criança no interior do recorte cronológico e espacial ora proposto, nos permite compreender não apenas o lugar social ocupado pela criança escolarizada nessa sociedade, como também as dimensões de significação simbólica que essa mesma sociedade construiu para esses sujeitos, estabelecendo novos sentidos e representações para a ideia de infância13. O uso político das representações e da estruturação do discurso médico como um discurso de verdade/poder, por sua vez, contribuíram para a legitimação de uma imagem específica para a infância e para a criança, uma vez que considera-se que,

11 Entende-se nessa pesquisa que a infância possui um significado genérico e, como qualquer

outra fase da vida, se dá em função das transformações sociais e mentais a serem situadas num determinado tempo e espaço – “toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel” (KUHLMANN Jr., 2007, p. 16).

12 Para Roger Chartier uma História Cultural do Social toma por objeto “a compreensão das

formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das representações do mundo social – que, à revelia dos actores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19).

13 François Dosse, em seu livro História em Migalhas, ressalta que há um grande perigo em se

contentar em descrever as variações das representações sem preocupar-se em mostrar como elas se articulam com o real histórico, desta maneira preocupa-nos a evidência dos descompassos, conforme assinalado por Georges Duby, “das discordâncias entre a realidade social e a representação ideológica que não evoluem em perfeita sincronia” (DOSSE, 1994, p. 208).

(36)

36 As representações inserem-se em um campo de concorrência e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação – em outras palavras são produzidas aqui verdadeiras lutas de representações. E estas lutas geram inúmeras apropriações possíveis das representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, com as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano. (CARDOSO, 2005, p. 6)

As dimensões da representação também estão presentes quando analisamos as instituições escolares republicanas por se constituírem como o lugar, por excelência, das práticas, não apenas discursivas que, em certa medida, construíram ou constituíram os objetos de que falavam, como por exemplo, a noção de “criança escolarizada”, mas também daquelas práticas que inseriam a infância no interior de ações variadas, muitas delas de caráter normatizador e prescritivo visando a modelagem e o disciplinamento dos corpos, como por exemplo, as inspeções médico escolares.

2.2. A importância de pensarmos a relação entre educação e infância: um olhar metodológico

Conforme assinalamos anteriormente, a pesquisa em história da educação tem perpassado por questões bastante abrangentes que ultrapassam o âmbito institucional da escola. Neste aspecto, Maria Madalena Silva de Assunção ressalta a importância das transformações epistemológicas ocorridas no interior do campo da pesquisa em História da Educação nas últimas três décadas, isso porque houve um certo abandono do que ela chama de “História da Pedagogia”, em detrimento de uma “História da Educação”. Esse rompimento com o “modelo unitário e continuísta de antes” deu espaço para um modelo de pesquisa mais problematizador, atentando para novas maneiras de observar a história dos eventos pedagógicos-educativos – a educação vista como um conjunto de práticas sociais (FARIA FILHO, 2004).

Referências

Documentos relacionados

O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANÁLISE DE BACIAS E FAIXAS MÓVEIS, DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –UERJ, torna público o presente Edital, com normas,

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Esta pesquisa discorre de uma situação pontual recorrente de um processo produtivo, onde se verifica as técnicas padronizadas e estudo dos indicadores em uma observação sistêmica

Por meio dos registros realizados no estudo de levantamento e identificação de Felinos em um remanescente de Mata atlântica, uma região de mata secundária

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o

confecção do projeto geométrico das vias confecção de projeto de drenagem, dimensionamento e detalhamento de 20 lagos de retenção, projeto de pavimentação e

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

Ao fazer pesquisas referentes a história da Química, é comum encontrar como nomes de destaque quase exclusivamente nomes masculinos, ou de casais neste caso o nome de destaque