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METODOLÓGICOS

2.3. Estabelecendo as categorias de análise

Conforme apontamos anteriormente, nossa tese perpassa por diversas questões que fogem à análise exclusiva das instituições escolares de maneira isolada, apesar de também nos debruçarmos sobre elas, uma vez que busca-se compreender os diversos processos que gestaram e consolidaram um determinado tipo de pensamento educacional – o médico – e as formas de apropriação da criança/infância por esse grupo de profissionais no período correspondente ao recorte temporal escolhido.

Para tanto, nos apropriamos de categorias de análise que guiarão nosso olhar sobre as fontes, assim como o nosso percurso teórico ao longo dessa pesquisa.

São centrais nesse trabalho os conceitos de Representação e Prática discutidos por Roger Chartier e, para além dessas categorias centrais, utilizamos outros delineamentos metodológicos que aparecerão de forma interligada às categorias centrais, sendo elas: infância, disciplina, civilização e higiene, algumas das quais já foram apresentadas e discutidas anteriormente.

41 2.3.1. Entre práticas e representações: a articulação entre o mental e o

social

Na apresentação do livro História, Infância e Escolarização, organizado por José Gonçalves Gondra (2002), Marcos Cezar de Freitas lança uma provocação que nos instiga a desnaturalizar uma visão quase preponderante de que o lugar da criança/infância é na escola.

Longe de uma afirmação despretensiosa, ela nos leva, enquanto pesquisadores, a questionar o porquê ao longo de nossa história a rua foi transformada em perigo iminente, enquanto a escola resguardaria, quase que instantaneamente, esses entes (crianças) de qualquer ameaça externa – “quase todos afirmam que escolas e instituições para a infância existem para impedir que a violência se esparrame pelas vielas da sociedade onde criança e rua se (des) encontram”. (FREITAS, 2002, p.7).

Nesta provocação há três aspectos a serem considerados:

1º - Faz referência a forma como esse pensamento tornou-se corrente o bastante para que, instantaneamente ou naturalmente, se considere a escola como o lugar por excelência da infância, sobretudo quando pensamos nas cidades; 2° - Diz respeito à institucionalização da educação consolidada em uma espacialidade física e seu poder simbólico. A visão de que esse espaço está destinado à infância e sua proteção desconsidera muitas vezes sua própria estruturação, a sua função vem antes de sua conformação e subtrai desta última qualquer responsabilidade – “ainda que investidos de tal responsabilidades, esses espaços institucionais não se eximem de, até arquitetonicamente, se assemelharem a cadeias. São da cor cinza, para economizar a tinta, são feias para economizar na esperança” (FREITAS, 2002, p. 7);

3° - Faz referência a nossa própria visão, enquanto pesquisadores da infância e sua educação, e a internalização dessa relação proposta por Freitas, na medida

42 em que articulamos, de maneira quase natural, essas duas entidades (criança/escola) atuando, por nossa vez, como reprodutores dessa mesma relação.

Como estratégia de fuga, o pesquisador adverte:

A análise histórica desse estranhamento entre sociedade, instituições, criança e rua exige um esforço (...) capaz de recuperar desde elementos conformadores das falas médicas sobre criança até incontáveis aspectos do jogo família—escola- criança versus pátria-cultura-cidadania. (FREITAS, 2002, p. 7)

Na busca por problematizar a relação entre educação e criança, assim como nos aconselhou Marcos Cezar de Freitas, e compreender os processos que foram secularizando o cuidado para com a infância ao longo da Primeira República, nos debruçamos sobre o viés do estabelecimento do saber médico como um saber que educa e as formas de apropriação da infância por esse mesmo saber.

A relação entre uma medicina intervencionista no espaço escolar pode nos parecer hoje muito estranha, como se a educação estivesse totalmente fora do métier médico. No entanto, foi um conhecimento que esteve praticamente no bojo da formação da cultura escolar republicana no caso brasileiro.

Num contexto mais amplo, a relação entre medicina e pedagogia era algo que vinha se consolidando nos países europeus há algum tempo. Se tomarmos as Inspeções Médico Escolares (posteriormente também adotada no Brasil) como exemplo, veremos que a ideia de uma intervenção mais enérgica dos médicos nas instituições escolares se propagava na Europa já a partir do século XVIII, fruto da idealização de Lakanal, Sièyés e Daunou (1922).

Historiando essas Inspeções veremos que na América Latina, houve sua adoção pela Argentina em 1884, enquanto que no Brasil, o decreto 778, de 9 de maio de 1910 criava na cidade do Rio de Janeiro seu próprio serviço de Inspeção Médico Escolar. A união entre medicina e pedagogia tornou-se ainda mais fortalecida no país, em 1914, a partir das ações do italiano Ugo Pizzoli, encarregado, pelo governo de São Paulo, pelo Gabinete de Psicologia e

43 Antropologia Pedagógica16. Ferreira (2009) destaca que esse gabinete procurava colocar a pedagogia de um ponto de vista totalmente científico, se desvinculando da filosofia para unir-se a nova ciência da psicologia.

A partir daí estava traçado o itinerário da entrada dos discursos e práticas médicas no interior das instituições escolares, assim como especificada suas funções; e essa tendência não tardaria a penetrar no ideário dos políticos natalenses e de seus projetos de desenvolvimento para a cidade. É o que ocorreu no início dos anos 1920, por exemplo, com o Governador de estado Antonio José de Mello e Souza, quando destacava que a falta de asseio das escolas e dos escolares eram causadores de grandes males à saúde infantil. Para ele, as Inspeções Médico-Escolares reverteriam esse quadro e teriam a função principal de fiscalizar e empregar os modernos preceitos higiênicos no interior das escolas (FERREIRA, 2009, p. 163). Desta maneira, absolutamente tudo na escola deveria passar pelo inquisidor olhar médico, desde a estrutura predial até o material humano.

O pesquisador Alain Corbain (2001), ao tratar sobre as dimensões culturais e sociais de apropriação dos corpos ao longo da história, problematiza esse processo e chama a nossa atenção para o longo processo de apropriação do corpo17 pela medicina, sobretudo pela influência dos preceitos da cenestesia de Cabanis, que buscava unir os aspectos fisiológicos do corpo á esfera moral, “ao vínculo existente entre a vida orgânica, a vida social e a atividade mental”,

16 As funções do gabinete, materializadas nas Inspeções Médico Escolares, eram bastante

abrangentes. De acordo com Marta Maria Chagas de Carvalho, as inspeções ‘deveria ser generalizada a todos os grupos escolares e abranger registros acerca da vida do aluno nos cinco anos do curso. Deveria ser elaborada e assinada pelo diretor do estabelecimento, pelos professores das classes e pelo médico escolar. Constando se nove páginas, a Carteira reunia fotografias anuais do aluno e inúmeros registros de mensuração resultantes de ‘observações antroplógicas’ e ‘fisio-psicológicas’, além de anotações registradas como ‘dados anamnésticos da família’ e ‘notas anamnésticas’, estas últimas obtidas por exame médico”. (FREITAS, 2002, p. 295).

17 Salientamos a importância da percepção do corpo enquanto território tanto biológico quanto

simbólico, e que historicamente constituiu-se no interior de ambições, muitas delas direcionadas a governabilidade e organização do corpo a partir de interesses tanto pessoais quanto coletivos. Para Sant’Anna, o corpo é “processador de virtualidades infindáveis, campo de forças que não cessa de inquietar e confortar, o corpo talvez seja, o mais belo traço da memória da vida. Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua fisiologia mas, ao mesmo tempo, escondê-los. Pesquisar seus segredos é perceber o quanto é vão separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre ‘biocultural’, tanto em seu nível genérico, quanto em sua expressão oral e gestual.” (SANT’ANNA, 2004, p. 3)

44 através de uma atitude individual que buscava a percepção interior do corpo e do seu conjunto de sensações orgânicas (ARIÈS; DUBY, 2001, p. 438).

Por outro lado, a preocupação médica com a saúde infantil não restringiu- se apenas ao asseio ou a profilaxia de doenças, mas também esteve relacionada com a constituição de corpos fortes e saudáveis, aptos para a vida e para o trabalho. A concepção das aulas de ginástica nos currículos escolares, inclusive femininos, por exemplo, englobava esses ideais de transformação do corpo e da vontade infantil.

A partir do exposto, a centralidade das intervenções médicas na cultura escolar conforma representações e práticas que atuam em conformidade com os preceitos higiênicos e sanitários, sobre a infância de maneira sistemática.

Quando pensamos nessas práticas, nos referimos ao que Roger Chartier (2002) considera central na significação do mundo social. Para o autor, não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao seu mundo. Neste aspecto, os discursos não podem ser considerados como neutros, uma vez que comporta diversos embates ideológicos daqueles que tentam impor ou legitimar um determinado tipo de pensamento. Para o pesquisador,

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...) As percepções do social não são, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. (CHARTIER, 2002, p. 17)

A concepção acima apontada, nos permitirá estabelecer relações importantes entre discursos e práticas sociais, como também a pensar a própria

45 construção identitária18 da infância no período explorado, através da concepção das “relações de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesmo”, conforme nos apontou Foucault ao discorrer acerca das instituições disciplinares, das quais as escolas fazem parte. (FOUCAULT, 1986)

Por outro lado, a ideia de um saber médico que se tornou impositivo- normativo-prescritivo19 não nos exime de pensá-lo enquanto processo, processo este através do qual consolidou-se um determinado tipo de classe ou grupo - médicos, assim como de um tipo de pensamento - médico-pedagógico, e forma de representação – higienizada, do mundo social, através do que Chartier (2002) considera como estando no campo da luta de representações, compreender esses processos é atentar para “os mecanismos pelos quais um grupo impõe ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.” (p. 17)

Para o autor, o uso dessa categoria de análise (representação) consegue articular três modalidades da relação com o mundo social que ora nos propomos a analisar. Primeiro, “o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos” (p. 23). Nesse aspecto, a forma/processos que assinalam a constituição da classe médica como um grupo cujo saber, no interior da comunidade natalense, ganha ares de legitimidade, marcando de maneira distintiva os indivíduos que o possuem. O Dr. Januário

18 O conceito de identidade adotado na nossa pesquisa segue as discussões levantadas por

Claude Dubar, nas quais consideram que “todas as identidades são denominações relativas a uma época histórica e a um tipo de contexto social. Assim, todas as identidades são construções, em maior ou menor grau, por racionalizações e reinterpretações que às vezes as fazem passar por ‘essências’ intemporais”. (DUBAR, 2005, p. 130)

19 Em Vigiar e Punir, Foucault destaca o aparecimento de uma nova “anatomia política” cujas

bases estavam ancoradas em um novo sentido para o que ele conceitua de disciplina. Nesse sentido, o saber médico, assim como outras instituições disciplinares (escolas, fábricas, hospícios, prisões, conventos etc.) atuariam sobre os corpos com o intuito de docilizá-los. Para ele, “o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.” (FOUCAULT, 1997, p. 135).

46 Cicco20 ressaltava, por exemplo, em suas “Notas de um médico de província” que

[...] no curso da existência humana, o homem sofre muitas doenças, cuja extirpação está somente reservada a Medicina, mas infelizmente nesta cidade e em todo o resto da Província, não existe um só Médico, ou cirurgião, que ministre os socorros da arte, seguindo-se desta falta os mais funestos resultados, por isso que os curiosos em

Medicina são um flagelo mais temível do que o próprio

mal que sofre. (CICCO, 1928, p. 6-8 grifo nosso)

A escolha das palavras utilizadas pelo médico: somente reservada, socorros da arte, funestos resultados, curiosos da medicina, flagelo mais temível; adquirem assim uma dupla função, não apenas constitui a classe médica como um grupo distinto, como também estigmatiza aqueles que não possuem tal saber, e portanto, estão à margem dessa distinção. Essa significação bilateral, distinção e estigmatização21, é analisada por Norbert Elias em seu livro Os estabelecidos e os Outsiders (2000), para o sociólogo,

As categorias estabelecidos e outsiders se definem na relação que as nega e que as constitui como identidades sociais. Os indivíduos que fazem parte de ambos estão, ao mesmo tempo, separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência (ELIAS, 2000, p. 6)

20 Januário Cicco foi um médico norte-rio-grandense nascido 1881 em São José do Mipibu/RN.

Formou-se na faculdade de medicina da Bahia em 1906, se mudando para Natal em 1909. Foi responsável pela organização da assistência hospitalar na capital, sendo considerado o fundador do sistema hospitalar do Estado, faleceu em 1952 na cidade de Natal/RN (DAVIM, 1999, p. 48).

21 Em outra passagem das memórias de Januário Cicco essa dupla relação, de identificação e

negação, se torna ainda mais perceptível. Diz ele, “haveria muito mais que se comentar a respeito das atribuições do médico entre os seus pares, na sociedade, no lar, nos campos, na defesa da coletividade e nas administrações, se fosse meu intento falar só dos médicos, e não contar histórias também, comentar costumes e defeitos nossos, dos clientes e dos curandeiros, os mais sérios inimigos da saúde. Ninguém ignora o mal que o homeopata de província faz todos os dias no lar dos incautos, para não dizer dos poucos cuidadosos dos seus deveres de chefes de família. E não se compreende que um pai amantíssimo entregue aos cuidados de um ignorante, desconhecido dos mais rudimentares princípios de fisiologia e patologia, a vida de um ente querido, se não for por absoluta ignorância também”. (CICCO, 1928, p. 64)

47 A segunda articulação, permitida pela utilização do conceito de representação, faz referência às práticas “que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (CHARTIER, 2002, p. 23).

Tal proposição, por sua vez, nos leva ao delineamento dos percursos, simbólicos e/ou objetivos, efetivados pelo saber médico e de como este saber ganhou legitimidade, influindo também na forma de pensar a educação para essa parcela da sociedade - infância, incorporando ao seu campo de conhecimento, “a dimensão médica de quase todos [...] fenômenos físicos, humanos e sociais, construindo para cada um deles uma tática específica de abordagem, domínio e transformação.” (COSTA, 1999, p. 30).

Nesse contexto, é mister compreendermos os mecanismos de apropriação da infância pelo saber médico e de como este mesmo saber penetrou na vida privada e pública das crianças, seja desqualificando a capacidade familiar de cuidar isoladamente de seus filhos, seja legitimando a institucionalização da infância através do processo de escolarização ou da assistência à saúde infantil em espacialidades próprias para este fim.

Muitos médicos viam nas escolas uma forma promissora de isolar os filhos de suas famílias, em se tratando, sobretudo da infância pobre, como uma maneira de controlar vícios, sobretudo o álcool, o fumo e as desordens sexuais, como também tirar da esfera familiar a função de educar seus descendentes, dever que passava a ser considerado incumbência de outros autores. A ideia de construir cidadãos do mundo tentava desarticular a maneira tradicional de perceber as crianças somo uma espécie de propriedade familiar. (FERREIRA, 2009, p. 156)

Por outro lado, importa-nos atentar para os limites da imposição social desse mesmo saber, conforme nos adverte Olivier Faure ao analisar as representações médicas:

Seria, contudo, exagerado e falso imaginar que as representações médicas se impunham espontaneamente a toda uma sociedade apenas por suas virtudes demonstrativas. Se a medicina transforma-se no principal guia de leitura do corpo e da

48 doença é porque a ciência médica se elabora no seio da sociedade e como resposta a seus questionamentos, e não num universo científico totalmente subtraído da realidade (FAURE, 2012, p. 15).22

Por último, a terceira articulação empreendida por Roger Chartier diz respeito as “formas institucionalizadas e objectivadas graças as quais uns ‘representantes’ (instancias colectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência de um grupo, da classe ou da comunidade” (CHARTIER, 2002, p. 23).

Desta maneira, o saber médico formulou um projeto sanitário que se embasava na necessidade de reversão “das nefastas perspectivas” que viam no brasileiro um povo inferior e, portanto, que dificilmente poderia atingir qualquer grau mais elevado de civilidade23.

Transitando, por sua vez, dos corpos individuais24 ao tecido social, e vice versa, a ordem médica constituiu a infância em tema caro, ao ponto de defender a criação de uma área da medicina que fosse exclusivamente destinada ao tratamento das crianças – a “sciencia da infância”, ou a “sciencia da hygiene”, conforme apontado por Gondra. De acordo com o pesquisador,

22 Mais uma vez podemos atentar para o discurso de Januário Cicco em suas Notas e da clara

percepção dos próprios limites de seu saber. Para o médico, “nessas condições e no estado atual de nossa civilização, o que resta ainda ao homem é fugir das moléstias, pela hygiene, para nunca ter necessidade dos médicos, que acertam por acaso e curam com as resistências individuais [...]”. (CICCO, 1928, p. 329)

23 A valorização da ciência e da técnica trazidas pela Revolução Industrial ajudou a construir a

figura do médico como o único capaz de avaliar as mazelas que assolavam as regiões mais longínquas do país. Assim como restaurar essa sociedade que se encontrava avariada através de um combate efetivo às causas que tornavam o progresso nacional incerto. (MOTA, 2003, p. 20)

24 Alain Corbin analisa o corpo como uma espécie de ficção, como sendo um conjunto de

representações mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito, com a mediação dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos. (CORBIN, 2012, p. 9). Nesse aspecto, as inspeções médico-escolares ao tomarem o corpo como objeto é representante de um momento de transição do saber médico. Se por um lado o fragmentava em partes – membros, olhos, ouvidos, músculos, órgãos, ossos, sangue, cabeça - para melhor ser descrito e examinado, culminando, consequentemente, numa espécie de desumanização do corpo, ou de redução do mesmo a uma série de órgão, células e de mecanismos gerados por leis psicoquímicas, conforme apontado por Faure, por outro, algumas permanências do que seria uma “medicina tradicional”, ainda chamava o espírito para o corpo, ao fazerem do corpo um organismo que também era “dependente de seu ambiente e do comportamento daquele que o possuía” (FAURE, 2008, p. 14).

49 A radicalidade expressa nesta posição convive com uma perspectiva colonizadora desse saber, em cuja órbita foram instalados temas tais como o quartel, hospital, clima, topografia, água, ar, bordel, cidade e escola. Ou seja, tratava-se de uma racionalidade que também deveria se ocupar da infância, colocando-a no âmbito do extenso projeto de modelação

higiênica dos sujeitos e do social. (GONDRA, 2002, p. 290

grifo nosso)

A apropriação da infância pelo saber médico-pedagógico, assim como a secularização de sua educação prescrita às instituições oficiais e seus