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A Pedagogia das Competências e a Educação Para o Trabalho

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2. O SURGIMENTO DE NOVAS DEMANDAS DE QUALIFICAÇÃO E A

2.4. A Pedagogia das Competências e a Educação Para o Trabalho

A crise estrutural do capital, desencadeada no início dos anos setenta, deflagrou um conjunto de mudanças cuja expressão pode ser demarcada pelos seguintes elementos: a) esgotamento do modelo de produção taylorista-fordista; b) crise da esfera financeira no novo processo de internacionalização do capital; c) desregulamentação dos mercados e da força de trabalho, como resultado da crise da organização assalariada do trabalho e do contrato social; d) reconfiguração da relação entre o Estado e a sociedade civil. Esta crise é o “pano de fundo” para as discussões do modelo de competência a partir dos anos 1980.

A reação do capital à sua crise estrutural pode ser dimensionada pelas reestruturações realizadas no próprio processo produtivo, pela forma de produção flexível, pela inovação científico-tecnológica aplicada aos processos produtivos e pelos novos modos da organização do trabalho e do saber dos trabalhadores, como explica Souza (2004, p. 11):

Esse processo de flexibilização do trabalho e da produção é, na realidade, uma universalização do modelo japonês de produção por parte do capitalismo como forma de implementar mecanismos renovados de controle sobre o processo de trabalho e de conformação psicofísica do trabalhador. A flexibilidade toyotista incorpora, de forma bem mais intensa, a subjetividade operária ao processo de valorização do capital do que a rigidez do modelo fordista.

Esse processo provocou uma profunda reestruturação do capitalismo, com a substituição da tecnologia eletromecânica por uma tecnologia que permitiu a produção mais automatizada e acelerada, possibilitando o crescimento da produtividade com a diminuição da força física do trabalhador. Essa revolução tecnológica determinou uma grande mudança no mundo do trabalho e demandava um novo tipo de profissional, mais adequado ao novo tipo de organização do trabalho e da produção. Com o avanço do capitalismo flexível e o aprofundamento da globalização e das atividades capitalistas, houve um deslocamento do conceito de qualificação profissional para a noção de competências que, segundo Ramos (2006, p. 34-5).

O uso mais corrente do termo qualificação profissional se relacionou aos métodos de análise ocupacional, que visavam identificar as características dos postos de trabalho e delas inferir o perfil ocupacional do trabalhador apto a ocupá-lo. Em outras palavras, procurava-se identificar que tipo de qualificação deveria ter o trabalhador para ser admitido num determinado emprego. Dessa forma, o termo qualificação esteve associado tanto ao processo quanto ao produto da formação profissional, quando visto pela ótica da preparação da força para o trabalho. Nesse sentido, um

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trabalhador desqualificado poderia vir a ser qualificado para desempenhar funções requeridas pelo posto de trabalho por meio de cursos de formação profissional. Por outro lado, visto pela ótica do posto de trabalho, o termo qualificação se relacionou ao nível de saber acumulado expresso pelo conjunto de tarefas a serem executadas quando o trabalhador viesse a ocupar aquele posto. Essa abordagem contribuiu para a formulação dos códigos das profissões e para sua classificação no plano da hierarquia social.

O termo qualificação refere-se tanto aos processos de trabalho quanto ao desenvolvimento do conhecimento profissional e social do trabalhador sob o modo de produção capitalista, que exige saberes e atitudes bastante diferentes das qualificações formais do tipo de trabalho taylorista-fordista. Portanto, a crise da sociedade capitalista das décadas de 1970 a 1990 e das mudanças surgidas como resultado da busca de respostas para a crise, com o predomínio do mercado, como regulador das relações sociais, a noção de competência passou a ordenar as relações de trabalho. Ramos (2006, p. 47) ressalta que:

A dimensão conceitual da qualificação é o que se refere, justamente, à formação e ao diploma, portanto, ao nível de domínio dos conceitos e do conhecimento. Qualquer que seja o seu modo de aquisição, esse domínio reverte em um importante capital em todo uso profissional da noção de qualificação. O diploma é, então, frequentemente perseguido como interface entre a formação e o emprego. Ele garantiria uma qualificação, um status, uma remuneração. Garantiria a competência? Recentemente questionada essa última dimensão da qualificação, o diploma deixa de ser o único ou principal pressuposto para o emprego e passa a concorrer com as formações ditas qualificantes, que visam à adaptação ao emprego.

O mundo empresarial adota o modelo das competências, pois está relacionada à formação, avaliação e controle do desempenho da força de trabalho face às novas exigências impostas pelo padrão de acumulação capitalista flexível. No campo pedagógico, manifesta-se

sob as noções de competência, empregabilidade, competitividade, habilidade,

transferibilidade, polivalência e qualidade total. Isso significa, portanto, que para atender às novas exigências do mundo do trabalho, em que o novo modelo da acumulação flexível, associada à incorporação de novas tecnologias, implica dispor de trabalhadores flexíveis para lidar com mudanças no processo produtivo, que sejam capazes de: enfrentar imprevistos; ter capacidade de mobilidade de uma função para outra na empresa, demonstrando sua polivalência ou “múltipla capacidade”; apresentar interesse em renovar constantemente o seu “acervo de competência”, garantindo sua “empregabilidade” através de sua “multiqualidade”. A esse respeito, Ramos (2006, p. 72-3) observa que:

A abordagem por competência enfatiza a ação que se processa em contextos específicos de produção, sendo então geridas segundo os interesses da própria empresa, tornando difícil construir um sistema global e genérico que possa ser aplicado externamente à empresa. Outra dificuldade é o fato de essa abordagem enfatizar, também, as características pessoais e a capacidade de mobilizar competências num contexto específico, o que torna muito complexo realizar medidas dessas competências objetivamente, em particular se elas tiverem de ser reconhecidas fora do contexto em que foram desenvolvidas.

Dessa maneira, a noção de competência, embora apresente variados significados, tanto no mundo do trabalho quanto na esfera da educação, representa diferentes concepções teóricas que estão fundamentadas em matrizes epistemológicas diversas e expressam interesses diferentes para sujeitos coletivos que possuem propostas e estratégias sociais distintas, e buscam a hegemonia de suas intenções políticas. Essas matrizes epistemológicas são classificadas por Ramos (2006, p. 89-94) e por Deluiz (2001, p. 19-22) da seguinte forma:

26 Matriz Condutivista: tem como fundamento a psicologia de Skinner e a pedagogia

dos objetivos de Bloom (objetivos comportamentais), entre outros autores. Os processos de aprendizagem ficam submetidos aos comportamentos e desempenhos observáveis na ação. O desempenho efetivo é um elemento central na competência e se define como a forma de alcançar resultados específicos com ações específicas em um contexto dado de políticas, procedimentos e condições da organização. Trata-se da externalização das habilidades, capacidades e conhecimentos através dos padrões de desempenho e atitudes das pessoas. Neste sentido, a competência é, sobretudo, uma habilidade que reflete a capacidade da pessoa e descreve o que ela vai fazer e, não necessariamente, o que faz, independentemente da situação ou circunstância. Dessa forma, as competências são as características que diferenciam um desempenho superior, médio ou fraco, constituindo-se como as competências centrais ou efetivas. As características necessárias para realizar um trabalho, mas não conduzem a um desempenho superior, são denominadas competências mínimas.

Matriz Funcionalista: fundamenta-se no pensamento funcionalista da sociologia e

adota a Teoria dos Sistemas Sociais como fundamento metodológico para analisar e compreender as relações entre o sistema em si e a relação do sistema com o seu entorno. Nesta perspectiva, os objetivos e funções da empresa devem ser formulados considerando sua relação com o ambiente externo (mercado, tecnologia e as relações sociais e institucionais). Consequentemente, a função de cada trabalhador na empresa deve ser entendida em relação com o entorno da empresa e seus subsistemas internos, onde cada função é o entorno da outra.

Matriz Construtivista: Tem suas origens na França e um dos principais

representantes é Bertrand Schwartz. Um dos princípios da metodologia construtivista consiste na construção de competências não só a partir da função do setor ou empresa, que está vinculada ao mercado, mas concede igual importância às percepções e contribuições dos trabalhadores diante de seus objetivos e potencialidades em termos de sua formação. Entretanto, a construção do conhecimento é considerada um processo individual, subjetivo, numa perspectiva naturalista de aprendizagem, pois não enfatiza o contexto social dos sujeitos. Limita a concepção de autonomia restringindo à sua dimensão individual, focada no mundo do trabalho. Seu ponto positivo é atribuir importância à constituição de competências voltadas para o mercado de trabalho e também direcionadas para os objetivos e potencialidades do trabalhador.

Matriz Crítico Emancipatória3: Tem como fundamento teórico o pensamento

crítico-dialético e pretende ressignificar a noção de competência com base em princípios orientadores para a investigação dos processos de trabalho, para a organização do currículo e para uma proposta de educação profissional que supere a dimensão puramente técnica e leve em consideração a dinâmica e as contradições do mundo do trabalho, os contextos macroeconômicos e políticos, as transformações técnicas e organizacionais, os impactos socioambientais, os saberes do trabalho e as lutas dos trabalhadores a partir dos próprios trabalhadores.

A noção de competência nas matrizes condutivista e funcionalista tem uma conotação produtivista porque tem um forte apelo econômico, pois ordena as relações de trabalho. A concepção construtivista aborda a construção das competências atribuindo igual importância tanto à função da empresa, que está vinculada ao mercado, quanto à valorização das percepções, objetivos e potencialidades dos trabalhadores. O ponto negativo está no processo de construção do conhecimento e da autonomia que não enfatiza o papel do contexto social para além do trabalho na aprendizagem dos sujeitos, ficando limitado à dimensão individual, embora apresente uma concepção mais ampla de formação, porém, restrita em sua dimensão sócio-política. Já a matriz crítico-emancipatória, ressignifica a noção de competência, tendo

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27 como base a dinâmica e as contradições do mundo do trabalho numa ótica de superação das propostas educacionais meramente técnica.

A apropriação pela escola da pedagogia das competências é que ela promoveria a formação e garantiria o emprego. Nessa lógica, o ensino escolar formalizado em conhecimentos disciplinares passou para um ensino enfatizado na construção de competências diretamente observáveis em atividades específicas, limitando o ensino a uma visão utilitarista e reducionista do trabalho em oposição ao trabalho como princípio educativo.

No caso da reforma da educação brasileira, para atender aos parâmetros do mercado, foram determinados dois princípios básicos: a separação obrigatória entre a educação geral e a educação profissional e adesão à pedagogia das competências para a empregabilidade expressos no Decreto nº 2.208/1997, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (Parecer CNE/CEB nº 16/1999 e Resolução CNE/CEB nº 04/1999), o que Deluiz (2001, p. 17), com base nesses documentos oficiais, explicita:

A noção de competência proposta nos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação de Nível Técnico, conceitualmente se aproxima de uma visão construtivista compreendendo as competências “enquanto ações e operações mentais, (que) articulam os conhecimentos (o ‘saber’, as informações articuladas operatoriamente), as habilidades (psicomotoras, ou seja, ‘o saber fazer’ elaborado cognitivamente e socioafetivamente) e os valores, as atitudes (o ‘saber ser’, as predisposições para decisões e ações, construídas a partir de referenciais estéticos, políticos e éticos), constituídos de forma articulada e mobilizados em realizações profissionais com padrões de qualidade requeridos, normal ou distintivamente, das produções de uma área profissional”. Se conceitualmente a noção de competência está ancorada em uma concepção construtivista, pela qual se atribui grande ênfase aos esquemas operatórios e domínios cognitivos superiores, na mobilização dos saberes, operacionalmente ela se funda em uma perspectiva funcionalista, ao traduzir as competências nos perfis de competências que descrevem as atividades requeridas pela natureza do trabalho (grifo da autora).

O conceito de competência da educação profissional de nível técnico expressa nas Diretrizes Curriculares Nacionais - Resolução CNE/CEB nº 04/1999 - (BRASIL, 2001, p. 152) como: “A capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessárias para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”, assim, esse conceito de competência apresenta em parte, um aporte construtivista, mas quando é transposto para as Diretrizes e RCN, acaba descrevendo as atividades requeridas pela natureza do trabalho, pois o método aplicado na investigação dos processos de trabalho é a análise funcional que enfoca as funções das pessoas e dá pouca importância aos aspectos cognitivos, aproximando-se mais da psicologia condutivista.

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