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A perda relativa de prestígio

No documento A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIRO (páginas 89-93)

O CENÁRIO E OS ATORES

CATEGORIA SOCIAL

3.2.3 A perda relativa de prestígio

O novo paradigma da formação por especializações é objeto de enfoque de vários estudos, verdadeira “trame du malaise”, que se abate sobre este grupo social. Três pontos destacam-se, porém, na construção da profissionalidade do engenheiro, a partir da crise dos anos 30: o sistema escolar de onde se define a profissão, as associações que a defendem, e o espaço de trabalho onde ela se exerce.

Multiplicando-se o número de escolas e de especializações, surge uma outra questão. A defesa dos direitos de exercício da profissão. As associações e sindicatos também proliferaram-se na defesa da categoria engenheiro. Em primeiro lugar, destaca- se a busca de um código comum, uma linguagem comum a esta “Babel tecnológica”,

como é batizada por André Grelon. Em 1933, o congresso da Confederação Internacional de Trabalhadores Intelectuais discutia as possibilidades de uma regulamentação internacional tanto para a proteção do título de engenheiro, quanto para a determinação de equivalência entre os diplomas de engenheiro expedidos por diferentes países.

Por outro lado, a proliferação dos títulos desvalorizava seu portador. O secretário geral da USIF – sindicato nacional dos engenheiros franceses - desabafava, em 1930: “o título de engenheiro se deprecia, o valor do quadro técnico abaixa, há uma superprodução de engenheiros que são aviltados no seu tratamento”. Ele referia-se não somente aos baixos salários então percebidos, mas também aos seus efeitos diretos: “diminution de la nupcialité , de la natalité”. (Robert, 1986:144) Ou seja, seus efeitos sobre a reprodução social.

Os engenheiros mobilizavam-se em diferentes associações. Na França, chama a atenção a USIC – união social dos engenheiros católicos, encarregada de difundir a doutrina social da igreja entre as elites industriais. Essa instituição nos parece curiosa pelo fato de, direta ou indiretamente, ter causado ecos no Brasil, através de engenheiros brasileiros pós-graduados nas escolas e universidades francesas.

Mas foram sobretudo, segundo Grelon (1986:19), os engenheiros formados pelas pequenas e médias escolas aqueles que mais sofreram, porque : “sua rede de antigos-alunos é menos poderosa, menos antiga e menos organizada nas empresas para os proteger das demissões e para lhes abrir oportunidades de emprego”. Thépot (1986) coloca o problema em termos de um “movimento geral de abandono do liberalismo” e, ao mesmo tempo de “defesa corporativa dos antigos alunos das grandes escolas”. Na verdade, estes foram menos afetados e muitos mantiveram altos salários, enquanto os jovens engenheiros formados recebiam algo próximo de um contramestre. Mas foi

também uma mobilização vital reativa contra o desemprego originário da crise de 30, afirma ainda Thépot.

Outra variante da questão, discutida por Boltanski (1982), refere-se ao valor do diploma. A posse do título de engenheiro, pelos formandos das novas escolas, não era bem vista pelos antigos alunos das grandes escolas. Uma publicação citada, editada pela USIC, em 1934, chega a afirmar que estes novos portadores do diploma não teriam “a cultura geral nem a tecnicidade que caracterizam um verdadeiro engenheiro da indústria”. Por trás da discussão estariam os efeitos do “crash” : desvalorização da moeda, erosão do patrimônio, falência da indústria e, de outra parte, a desvalorização do capital cultural – sendo o diploma um dos seus signos:

“a desvalorização do capital cultural que, com a falência da carreira, leva à frustração das aspirações as mais ‘elevadas’, as mais ‘sublimes’, engendradas pelo sucesso escolar (...) a ruína do capital cultural, capital incorporado cuja aquisição resulta do duplo registro do dom e do mérito, e que, nos empregos subalternos, não somente não alcança as gratificações esperadas mas se degrada (...), afeta a identidade de seu portador da maneira a mais intensa e mais total. Nesse caso como em todos os outros, provoca degradação e escândalo”.

(Boltansky, 1982: 123-4)

Por trás da discórdia entre antigos e novos títulos escondem-se as diferenças de classe social. Os engenheiros do Estado, os polytechniciens, originam-se freqüentemente da alta burguesia. Já a engenharia de fábrica, nascida das novas escolas, é centrada sobre a formação técnica para a indústria privada, e recruta seus estudantes nas “classes médias e inferiores da média burguesia”, para quem os estudos e a carreira de engenheiro são um meio de se elevar na hierarchia social.40 Para os antigos alunos das grandes escolas, a defesa do patrimônio cultural e do seu valor dependem da posse

de um “título raro e prestigiado” e, para frear sua desvalorização, eles recorrem a medidas restritivas e elitistas: afirmação da distinção, ampliação das diferenças através da criação de hierarquias múltiplas próprias à produção de um número ilimitado de divisões: “o diploma é utilizado muito mais como um princípio de divisão do que como princípio de unificação”.

Por sinal este debate da sociologia das profissões, sobre o caso francês, não nos leva a refletir sobre a hierarquia das profissões e das escolas em outros países e em outros momentos também de crise?

Continuando, vale a pena recorrer à obra de Bourdieu (1989) : “La Noblesse d’Etat: Grandes Ecoles et esprit de corps” para melhor compreender o “espírito” que anima nossos antigos alunos, particularmente os oriundos das grandes escolas, sua “homogamia social”:

“mais profundamente, o amor de si nos outros e no grupo inteiro que favorece a união prolongada dos assemelhados é o verdadeiro fundamento disso que se chama o “esprit de corps” (onde o espírito de família é um caso particular). É com efeito a adesão encantada aos valores a ao valor de um grupo que constitui esse grupo como corpo integrado e disposto a toda espécie de trocas próprias a reforçar a integração e a solidariedade entre seus membros: estes se encontram assim duravelmente inclinados a colocar a serviço de cada um (ao menos até certo ponto) os recursos detidos por todos os outros, segundo a fórmula “Um por todos, todos por um”. A noção de fato extraordinária do “esprit de corps”, que lembra a linguagem mística dos canonistas (corpus

corporatum in corpore corporato), designa então a relação

subjetiva que, enquanto corpo social incorporado num corpo biológico, alguns dos membros do corpo mantém com o corpo ao qual ele é imediatamente e como que milagrosamente ajustado. Este espírito de corpo é a condição de constituição do capital social, esse recurso de posse coletiva que permite a cada um dos membros de um grupo integrado de participar do capital individualmente possuído por todos os outros.”

(Bourdieu, 1989: 258-9)

O “esprit de corps”, paradigmático das grandes escolas francesas, pode ser também observado em outros ambientes da mesma natureza. Ele se encontra, por

exemplo, no interior das escolas de engenharia brasileiras, unindo internamente os membros de um mesmo “departamento”, que corresponde à unidade de formação de cada uma das especialidades, ou “engenharias”, como são freqüentemente chamadas. Muitas vezes ocasionando mais a divisão do que a união com os outros departamentos, de forma análoga ao argumento de Boltansky, quando se referia aos diplomas. Essa divisão, muitas vezes hierarquizada, e o “esprit de corps” dos engenheiros, são encontrados também no interior das organizações, espaço de exercício profissional predominante para os membros deste corpo social.

No documento A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIRO (páginas 89-93)