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Relação salarial e construção de identidades profissionais

No documento A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIRO (páginas 62-67)

O CENÁRIO E OS ATORES

2 SUCESSO O ESGOTAMENTO DO FORDISMO

2.4.4 Relação salarial e construção de identidades profissionais

O regime pós-fordista de acumulação e de organização produtiva vai implicar em novos padrões de relações salariais ou de trabalho.

Zarifian (1993) analisa as modalidades de remuneração, baseadas no complemento salarial ligado ao resultado ou ao mérito, ou sistema “donnant/donnant”, expressão que poderia ser traduzida pelo “é dando que se recebe”, conhecida pelos políticos brasileiros. Esta modalidade de remuneração eqüivale a uma fórmula onde mais responsabilidade = mais salário. Ao tornar-se “moeda-de-troca” automática, o crescimento da responsabilidade, numa organização que evolui rapidamente graças às constantes sugestões dos trabalhadores, e onde o novo modelo de assalariamento se

generaliza, pode rapidamente tornar-se inflacionista. Sobretudo pode desorganizar o sistema estabelecido de remuneração multiplicando situações locais de modalidades específicas de remuneração, com potencial de destruição da equidade global do sistema. Isso ocorreria pelo fato das novas regras salariais freqüentemente incidirem sobre uma base organizacional tayloriana, o que necessariamente resulta em fortes tensões sobre o conjunto dos trabalhadores.

A tensão introduzida pelo sistema de remuneração “donnant-donnant” numa empresa de base taylorista, é evidente. Porque, no taylorismo, o princípio é claro: remunera-se o valor de uma capacidade de trabalho, segundo o grau de qualificação vinculado ao emprego, a partir da cotação daquele emprego. O salário sobre o rendimento pode introduzir pequenas variações sobre o esforço desempenhado. Mas o salário por rendimento não é um compromisso essencial no sistema taylorista. Neste, o rendimento salarial somente complementa um princípio, segundo o qual o salário remunera uma capacidade de trabalho, de acordo com o grau de complexidade das tarefas prescritas e para um emprego específico, além de incitar o trabalhador a respeitar o cumprimento dessas tarefas, mediante o qual ele é pago. ( Zariffian, 1993: 186)

Surge, então, uma espécie de “taylorismo suavizado” (Zariffian, 1993). Taylorismo, porque permanece a estrutura organizacional autoritária e, suavizado, porque as relações sociais são apoiadas em um modelo paternalista. Combina-se o autoritarismo, na medida em que certas decisões não são delegadas, ao jogo da confiança interpessoal (Zariffian,1993: 156), onde muitas vezes as regras não são claras.

Analisando a mesma questão, Reynaud (1996) observa que o sistema de remuneração “donnant-donnant” incita a concorrência interna entre os trabalhadores de uma mesma empresa, num ambiente de geral concorrência inter-firmas. Cria-se, desta

forma, uma relação de natureza mercantil na qual, a concorrência entre os indivíduos, no lugar de ser estimulante, degenera em rivalidades. Considerando que são os preços o principal modo de avaliação dos grandes mercados, esse mecanismo resulta, por analogia, na permissão de subordinar uma parte da remuneração à realização de resultados. O sistema traz incerteza aos trabalhadores, na medida em que condiciona uma parte da renda salarial aos resultados efetivos. (Reynaud, 1995:141)

A emergência de um modelo cooperativo de atividade profissional suscitaria, portanto, a concepção de um novo modelo de remuneração, nos seus princípios de base, o qual deveria relativizar o efeito da remuneração no reconhecimento social. Para Zariffian (1993:188), a inteligência com a qual a pessoa vai assumir sua função, levando em conta os objetivos globais da unidade de produção, parece essencial. Não é uma simples questão de salário. Como então essa valorização pode ser expressa? No quadro das possibilidades de evolução profissional. “Nós começamos a reencontrar a mobilidade como componente de base do novo modelo” (Zariffian, 1993:187). Uma mobilidade que encontra sua referência na qualidade do trabalho realizado; ou na possibilidade de desenvolver um projeto de evolução profissional; ou no reconhecimento do valor de uma iniciativa que será tomada pelo trabalhador, individualmente ou em equipe, sobre uma ação de progresso.

Os novos princípios de remuneração colocam novas questões, principalmente quando comparados à relação salarial fordista. Salama (1996) chama a atenção para o caso do México, onde os modos de remuneração também são alterados, tomando como exemplo o princípio de cálculo dos tempos de trabalho sobre o ano, mais do que sobre a tarefa, o que diminui, de fato, o salário. Há indicações de uma inversão de valores quando se confrontam as modalidades fordista e pós-fordista de remuneração. Se o princípio virtuoso do fordismo baseava-se nos “bons salários” e, consequentemente, no

amplo consumo de bens produzidos pelo sistema, hoje, os princípios pós-fordistas parecem funcionar de forma contrária. No âmbito das práticas da mundialização financeira, acrescenta Salama (1993), a concentração de rendas, tanto quanto o benefício dos rendimentos do capital em relação aos do trabalho, termina produzindo novos (e reduzidos) mercados para os bens de consumo duráveis (Salama,1996: 228).

Produzindo para uma parcela restrita da população, e apoiando-se não mais nos investimentos produtivos mas nos investimentos financeiros o que, por sua vez resulta na restrição das oportunidades de emprego e salário, o regime de acumulação pós- fordista é diferente do anterior. Um “círculo vicioso”.

Essas mudanças terminam por afetar o modo como se constróem as identidades profissionais. A análise de Bertrand (1995: 126-7) parte da noção de relação salarial, a qual abre um vasto campo de estudo da construção econômica do social, de suas instituições e de seus atores coletivos. A noção de relação salarial permite uma análise do fundamento, da matriz social, da maneira como, historicamente, os grupos sociais se constituem, suas contradições e conflitos, cruzando reprodução econômica e social.

A questão central refere-se à passagem do individual ao coletivo, do modo como se constróem os atores coletivos intermediários, não como “agentes representativos” mas como mediações sociais constitutivas de identidades sociais e profissionais comuns duráveis, progressivamente institucionalizadas. As análises sobre a relação salarial fordista acentuaram o resultado das mediações coletivas, ou seja, a fórmula salarial dominante. Já a análise das transformações atuais, pode ter o acento deslocado para outros elementos. Por exemplo, o modo como se elaboram e se transformam as regras comuns através do jogo dos atores coletivos. Essa seria uma condição para passar das análises retrospectivas às análises prospectivas.

A análise das relações profissionais, do ponto de vista da construção dos atores coletivos, pode ser vista segundo duas vias principais: uma orientada para a construção do emprego e da relação de emprego, que é a matriz da produção dos grupos profissionais e a dos atores sociais; outra mais voltada para a fabricação e a gestão das identidades e das representações coletivas, remontando até os sistemas educativos.

Na primeira via, o sindicato assume um papel relevante. Ator coletivo por excelência é, no entanto, menos um produtor de resultados, que um produtor de regras (Bertrand, 1995:130). A construção de identidades profissionais é regida por regras, muito mais que por mecanismos de mercado, e é também mais apta a gerar qualidades e aprendizagens qualitativas. O espaço da organização do trabalho é fundamental para definir essas relações e, com a emergência das modalidades mais complexas do universo produtivo, o espaço de projeção profissional dos indivíduos pode explicar, ao menos parcialmente, o enfraquecimento dos antigos atores coletivos, a falta de identificação clara e a grande dificuldade de emergência de novos (atores, lugares, conteúdos) capazes de produzir novas regras e senso coletivo.(Bertrand, 1995: 132)

Assiste-se de um lado ao surgimento de uma nova divisão econômica do trabalho entre, de um lado, unidades de produção, com vocação profissional e especializada e, de outro lado, grandes empresas ou grupos com forte vocação financeira, exercendo uma atividade de agregação estratégica. O enxugamento das grandes empresas, o deslocamento rápido do emprego para as pequenas e micro empresas, independentes ou controladas, ilustram esse movimento (Bertrand, 1995).

O novo sistema, como o das cadeias produtivas, modifica fortemente as relações de emprego, que podem ir do contrato salarial ao contrato comercial. As novas regras diferem profundamente da relação salarial fordista, onde prevaleciam as relações de trabalho estáveis e a presença do Estado Previdência, dando suporte ao desempregado.

No atual sistema, mais autônomo, novos problemas se colocam em termos de incerteza. A curto prazo, a unidade produtiva passa a ter exigências profissionais fortemente especializadas, decorrentes de sua atuação focalizada. Por outro lado, a incerteza sobre o futuro daquela unidade produtiva e do próprio coletivo de trabalho, freqüentemente contratado em condições precárias ou temporárias; a incerteza do trabalhador sobre seu próprio lugar, sobre o papel das atuais profissões, da evolução de novos ramos profissionais e produtivos, fazem emergir a idéia de que o processo de formação profissional precisa ser repensado e uma nova “relação educativa”30 construída (Bertrand, 1995).

A noção de “relação educativa”, também concebida no âmbito da Teoria da Regulação, reconhece o papel essencial do sistema educativo na formação das identidades e das categorias profissionais, principalmente através dos pontos de entrada no sistema produtivo e nas suas relações com o mercado de trabalho. Os pontos de entrada diferem fortemente segundo cada país e os seus sistemas educativos, tendo uma contribuição essencial na construção tanto das identidades, quanto das separações profissionais (Bertrand, 1990: 133).

Este é o tema, por excelência, do próximo capítulo. Antes, porém, a seção seguinte enfoca certos aspectos do pós-fordismo no Brasil, particularmente no que se refere à qualificação da mão-de-obra.

No documento A TRAMA E O DRAMA DO ENGENHEIRO (páginas 62-67)