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A persistência de componentes não-lingüísticos

4.2 O que se entende aqui por ciência?

4.2.3 A persistência de componentes não-lingüísticos

Para os propósitos deste estudo, cabe realçar apenas alguns elementos da filosofia madura de Kuhn e, em particular, isso pode ser feito passando ao largo de suas análises sobre a incomensurabilidade. Assumidamente, portanto, tal exploração pode ser considerada contrária aos seus interesses e desenvolvimentos efetivos, mas não às possibilidades abertas pela sua perspectiva. Dessa forma, esta seção prossegue com comentários sobre dois aspectos já enfatizados na primeira seção deste capítulo — o procedimento ostensivo e as relações de similaridade —, e finaliza com uma apresentação da noção de léxico orientada para sua modificação — especulativa e a ser exposta na próxima seção — a fim de integrá-la em um estudo sobre representações visuais na ciência. O que se ganha com a incorporação da perspectiva kuhniana, sustento, é uma integração dos aspectos lingüísticos da ciência ao quadro que estamos desenvolvendo e não sua tradução para uma perspectiva lingüística.

Em relação à ostenção, esse elemento do processo de aprendizagem faz com que este, como um todo, não possa ser efetuado em termos meramente lingüísticos. Este é um ponto pouco enfatizado pelo próprio Kuhn36 que, não obstante, leva-nos a uma caracterização de um conceito central de suas análises, os exemplares, como entidades essencialmente não-lingüísticas. Também a literatura secundária é parca em comentários sobre esse particular aspecto da filosofia kuhniana. Hoyningen-Huene é uma exceção. Em sua reconstrução da obra kuhniana ele afirma:

36 Ele se expressa nesses termos apenas nos artigos elaborados no fim da década de sessenta (Kuhn 1970b/2000, 1970c/1996).

A formação das relações imediatas de similaridade (...) é um processo de aprendizado no qual a ostensão e suas sub-espécies, atribuição e exclusão, cumprem um grande papel e, portanto, é um processo que contém não apenas momentos lingüísticos, mas também um importante momento extra-lingüístico. [Hoyningen-Huene 1989/1993, p.77]

Apesar de não haver muitas discussões nesses termos, esse é um ponto francamente reconhecido da perspectiva kuhniana e ele é retido, embora não seja explorado, mesmo em seus últimos escritos. A ele estão relacionadas nada menos que todas as suas investigações sobre a ligação entre linguagem e mundo, bem como a reiterada alegação de que quando alguém aprende sobre um sistema conceitual, invariavelmente aprende algo sobre o mundo ao qual tal sistema se aplica. Vimos isso no artigo sobre os experimentos mentais sob a designação de função legislativa dos conceitos. Temos isso nos últimos escritos como o caráter projetável dos conceitos (Kuhn 1993/2000)37. E, como conseqüência, relaciona-se também a um aspecto ignorado na seção anterior, qual seja, a caracterização kuhniana da pesquisa científica. Nesta, como uma aprendizagem sem instrutor, emprega-se um sistema conceitual de modo coerente, a partir dos domínios concretos de sua aplicação e expandindo-se através de expectativas que ordenam aquilo que é concebível. Tais expansões não são guiadas por regras, as expectativas em questão são decorrentes de buscarmos entender as novas situações como semelhantes àquelas a que fomos anteriormente expostos. Outra discussão relacionada a este momento extra-lingüístico do aprendizado nos permite marcar o afastamento da questão da incomensurabilidade que mencionamos acima. Em Commensurabiliy,

37 Goodman (1954/1983) formula o problema da projeção associado ao problema da indução. Numa abordagem construtivista, o mundo é o resultado de predicados que nós projetamos na realidade. A questão de quais são os conceitos utilizados nessa projeção (como o par de conceitos que ele tornou um conhecido exemplo, green/blue ou grue/bleen) é pragmática. O uso do termo ‘projeção’ é aqui mais próximo da concisa formulação de Hacking: “A projetabilidade (...) define as classes de possibilidades imaginadas ou capazes de serem levadas a sério por uma ciência em um momento” [Hacking 1993, p.296]. É nesse mesmo artigo que Hacking caracteriza Kuhn como um nominalista, posição avocada por Goodman desde seus primeiros escritos. Daqui em diante, utilizo a noção de expectativa para me

Comparability, Communicability (Kuhn 1983/2000), justamente o texto no qual ele

aproxima a incomensurabilidade da intradutibilidade, Kuhn indica seu afastamento de Quine insistindo nas diferenças entre interpretação e tradução. No caso então discutido, a tradução pressupõe a interpretação e esta, por sua vez, pressupõe algo como a ostensão. E não o contrário.

Enfim, todas essas discussões pressupõem que classes de similaridade sejam formadas através de operações pré-lingüísticas de reconhecimento de semelhanças e dessemelhanças. Na maior parte das vezes Kuhn descreve tais operações como ostensões, mas o que lhe importa, notemos, é, precisamente, um modo de caracterizar o processo de aprendizado que não dependa exclusivamente de relações entre palavras. Em alguma parte desse processo, em geral logo no início, é necessário mostrar as semelhanças em vez de falar delas.

Com isso já delineamos a centralidade das relações imediatas de similaridade no processo de aprendizado e os comentários que seguem são direcionados a caracterizá-las, ainda, como conteúdo do conhecimento. Num primeiro instante, Kuhn distingue três tipos de situações que as empregam, mas sua discussão posterior não assume uma diferença em relação à sua presença nos processos de aprendizagem38. Eis os tipos:

Essas situações similares podem ser sucessivas apresentações sensoriais de um mesmo indivíduo — digamos, da mãe, que é finalmente reconhecida à vista como ela mesma e como diferente do pai ou da irmã. Podem ser apresentações dos membros de famílias naturais — de cisnes, por um lado, e de gansos, por outro. Ou podem ser, para os membros de grupos mais especializados, exemplos de uma situação newtoniana, isto é, de situações que são semelhantes por estarem sujeitas a uma versão da formulação simbólica f=ma e que são diferentes daquelas situações às quais, por exemplo, se aplicam as leis da óptica. [Kuhn 1970c/1996, p.194]

38 Tal distinção torna-se relevante nas leituras cognitivas de Kuhn. O caso é que as idéias kuhnianas impõem aos indivíduos, minimamente, determinadas capacidades inerentes ( e.g., reconhecimento de semelhanças e propensão indutiva) e elas, tal como parecem sugerir os estudos empíricos, não operam da mesma forma para as três classes expostas.

Desse modo, as relações imediatas de similaridade são constitutivas de classes de similaridade e, em relação à natureza do processo de aprendizagem, as diferentes instâncias exemplares estão para os conceitos assim como as diferentes situações exemplares estão para uma generalização simbólica. Como elas estão relacionadas é algo que aparece claramente em uma discussão com Suppe e Putnam (Kuhn 1974b). O primeiro caracterizara então tais idéias de Kuhn ainda como uma identificação da teoria a uma generalização simbólica interpretada que, entretanto, apresenta uma nova forma de interpretação — ou seja, os exemplares seriam as regras de correspondência de Kuhn39. A resposta de Kuhn salienta que os exemplares não devem ser tomados apenas como interpretações, mas como “um dos veículos essenciais do conteúdo cognitivo das teorias”. Seu problema não é o de individualizar a teoria, mas se uma leitura assim for feita, tudo aquilo envolvido na vinculação entre a linguagem e a natureza deve ser considerado parte dela. O importante para nós é que isso inclui elementos não lingüísticos40. Também nesse contexto, Kuhn identifica sua única discordância com Putnam, que sugerira a substituição das regras de correspondência por ‘proposições auxiliares’ — que arcariam com as ligações linguagem-mundo, sem necessariamente definir os termos de tal linguagem. Para Kuhn, entretanto, isso ainda corresponde a um modo “puramente lingüístico” de lidar com o problema, enquanto que ele não pretende condicionar sua análise a tornar explícito, mediante formas lingüísticas, aquilo que é incorporado tacitamente na adequação entre linguagem e mundo41.

39 Posteriormente a situação é outra. Ele identifica uma contradição na utilização, por teóricos da visão semântica mais próximos a Kuhn (Sneed, Stegmüller e Moulines), de sentenças de Ramsey para analisar termos teóricos, justamente porque “a idéia-chave de Kuhn é a rejeição das regras de correspondência” (Suppe 1989, p.19).

40 Digno de nota é que Kuhn menciona, mesmo que apenas de passagem, imagens e diagramas com um dos elementos não lingüísticos (Kuhn 1974b, p.505).

Bem, até aqui temos repetido o exposto na seção anterior apenas enfatizando seus aspectos não-lingüísticos. Para concluir, falta submeter a noção de léxico ao mesmo tratamento. A própria escolha do termo ‘léxico’, tomado emprestado da lingüística, confere-lhe conotações que parecem afastar uma possível apreciação de seus aspectos não-lingüísticos. Além disso, tal como exposto na seção anterior, ele responde pelo sistema conceitual empregado por uma comunidade e, em relação a este, pela característica específica de o holismo semântico local estar associado ao modo pelo qual os conceitos empíricos são aprendidos.

No entanto, segundo o que temos argumentado, a orientação lingüística de Kuhn é decorrente de seus interesses, das questões que ele se dispôs a investigar, mas não de sua perspectiva. Essa diferença é por ele identificada e pode ser percebida, especificamente em relação ao léxico, no seguinte conjunto de passagens:

Eu tenho descrito [minhas idéias correntes sobre a incomensurabilidade] como concernentes a palavras e em uma taxonomia lexical, e continuarei a fazê-lo desse modo: os tipos de conhecimento com os quais lido se apresentam em formas explicitamente verbais ou simbólicas. [Kuhn 1991a/2000, p.94]

Ou seja, a terminologia desenvolvida é adequada para os objetos de sua análise que, neste caso, são modos lingüísticos de representação. Não é o caso de a ciência estar sendo reduzida aos seus aspectos proposicionais na caracterização kuhniana, e sim que sua investigação estava orientada para o esclarecimento de tais aspectos. Também não é o caso que o domínio de sua perspectiva seja exaurido pelo que é ‘explicitamente verbal’, e sim que ela era aplicada a tal domínio. Não por outro motivo, o trecho acima prossegue com a seguinte adversativa:

Mas pode esclarecer o que tenho em mente sugerir que seria mais apropriado falar em conceitos que em palavras. Isto é, o que eu venho chamando de taxonomia lexical poderia ser chamado de um esquema conceitual, onde a ‘própria noção’ de esquema conceitual não é a de um conjunto de crenças, mas um modo particular de operar de um módulo mental, pré-requisito para ter crenças, um modo que ao mesmo tempo

supre e limita o conjunto de crenças passíveis de serem concebidas. Algo deste módulo taxonômico eu considero pré-lingüístico, e também os animais o possui. É presumível que ele tenha evoluído originalmente com o sistema sensorial, provavelmente com o visual. No livro eu apresentarei razões para supor que ele tenha sido desenvolvido a partir de um mecanismo ainda mais fundamental, que permite aos organismos vivos re-identificar outras substâncias ao traçar suas trajetórias espaciais e temporais. [Kuhn 1991a/2000, p.94]

Como mencionei acima, a exegese kuhniana permanece inconclusa até que venham à publicação seus últimos escritos. No entanto, condizente com as observações anteriores sobre a centralidade dos procedimentos ostensivos e das relações imediatas de similaridade, não é um grande passo identificar no trecho acima uma reformulação cognitiva desses mesmos componentes. Se anteriormente falamos de certas capacidades inerentes, aqui elas se encontram como uma determinante biológica do léxico, “resultado de uma filogenia partilhada”. A estes — ao menos para alguns organismos42 — somam-se as determinações específicas do processo de aprendizagem. O resultado dessas determinantes sobre um indivíduo é o léxico como módulo mental. O resultado dessas mesmas determinantes numa comunidade é a estrutura do léxico. O que vale ressaltar dessa caracterização é que a determinação biológica e cultural do léxico, ao extremo, poderia se dar apenas em termos não lingüísticos. Ou seja, a linguagem não é pensada como condição necessária para a partilha, numa comunidade, de uma mesma estrutura do léxico e, no mesmo movimento, as práticas lingüísticas não constituem os meios fundamentais de representação. Mas não precisamos ir tão longe — e certamente não devemos ir tão longe numa caracterização da atividade científica —, para falar das representações visuais.