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3.2 O que se entende aqui por representação?

3.2.2 Crítica das condições miméticas

O conceito da arte como mímesis corresponde a uma forma de entender o conhecimento que é próprio da operação artística como uma representação. Ele designa a pretensão de fazer da arte um espelhamento da natureza e, assim o fazendo, alude à cópia e à imitação. Mas designa também a deliberada construção de uma natureza idealizada e, assim o fazendo, alude à caricatura e à reprodução seletiva. Tais concepções

deitam origem na filosofia antiga e, na filosofia da arte do século XX, foram tematizadas em termos de uma tendência para a figuração ou para a abstração. Qualquer representação artística, como meio de conhecimento, tem sua mímesis associada à noção de semelhança. No primeiro caso, a relação mimética consiste na semelhança com as aparências; no segundo, com as estruturas subjacentes. É característico desses estudos que a argumentação proceda de forma abrangente, de um modo tal que os problemas são encaminhados nos termos de uma noção geral da representação. Ela pode comportar aspectos históricos, sociológicos ou psicológicos, mas, nesses casos, as discussões são consideradas válidas, ou a princípio aplicáveis, a diferentes tipos de representação artística — pictóricos, literários, musicais. O movimento descrito anteriormente, de buscar na noção de representação em geral o encaminhamento dos problemas relacionados aos modelos, estende-a ao domínio científico através da criação de mais um tipo: a representação científica.

A seção anterior apresentou a relação de similaridade justamente como aquilo que, em vez da noção de verdade, responde pela relação representacional. Contudo, a concepção mimética não é a única teoria da representação disponível. Aliás, ela é objeto de pesadas críticas:

A visão mais ingênua da representação talvez possa ser expressa de algum modo como este: ‘A representa B se, e somente se, A assemelha-se sensivelmente a B’, ou ‘A representa B na medida em que A assemelha-se a B’. Vestígios dessa visão, com refinamentos variados, persistem na maioria dos escritos sobre representação. Ainda assim, dificilmente erros maiores poderiam ser resumidos numa fórmula tão curta [Goodman 1968/1976, pp.3-4]

Ao fim, Goodman conclui que a semelhança é irrelevante para o estabelecimento de uma relação representacional e, portanto, ela não deve ser pensada como um critério capaz de definir quando algo é uma representação. Tal critério, para ele, é a simbolização, os modos de estabelecimento de referência no interior de um sistema

algumas críticas à noção de semelhança como constituinte da relação representacional, inspiradas em Goodman, mas levadas a cabo em meio à discussão sobre os modelos na ciência. Acompanharei basicamente o tratamento de Suárez (1999, 2003, 2004) a essa questão.

Suárez (2003) apresenta cinco argumentos contra as noções de similaridade e de isomorfismo — o argumento da variedade, o das propriedades formais (lógico, em seus termos), o da representação imprópria25, o da não-necessidade e o da não-suficiência. Tais argumentos estão primeiramente direcionados a teorias que identifiquem tais noções às condições necessárias e suficientes para que um objeto ou evento (fonte) represente outro (alvo). Eles só podem ser totalmente apreciados, portanto, quando em contraposição às teorias da representação que se valem exclusivamente destas noções para o estabelecimento de uma relação representacional. Além disso, os argumentos, do modo como são expostos, têm seu alcance limitado pelas definições prévias das mesmas noções de similaridade e de isomorfismo. Entretanto, tal estratégia não impede que, uma vez apresentadas, as críticas não possam ser novamente interpretadas para tratar de variações desse quadro inicial.

O Isomorfismo, assim como a semelhança, é entendido como um caso especial de similaridade. Comecemos, portanto, por essa última noção. Suárez a descreve como uma relação estabelecida entre dois objetos que exibem alguma característica em comum. ‘A e B são similares se, e somente se, eles partilham um subconjunto de suas propriedades’. Segundo tal concepção, pode-se avaliar, como uma relação factual, se um objeto é similar a outro. Por extensão, se tomarmos a similaridade como critério necessário e suficiente para a representação, a identificação desta, por sua vez, se resume a uma inspeção das propriedades da fonte e do alvo. Quando encontrarmos uma

25 O termo é misrepresentation. Suárez, como veremos, desenvolve algumas de suas conotações. A escolha da expressão ‘representação imprópria’ pretende manter a neutralidade do termo original em relação a elas e a outras não analisada por ele.

identidade entre uma, ou várias delas, estabelecemos que há entre eles uma relação representacional. A semelhança é apenas a similaridade em relação à aparência visual, já o isomorfismo é a similaridade em relação à estrutura. Isomorfismo é uma relação entre estruturas, na qual há uma correspondência ponto-a-ponto entre os objetos (elementos) de duas estruturas que preserve as relações entre eles. Há uma identidade das relações entre os objetos (elementos) em cada uma das estruturas. Suárez admite, no entanto, um significado não matemático para a noção ao considerar dois objetos isomórficos quando as estruturas que eles exemplificam são isomórficas. Isso posto, tornemos às críticas.

O argumento da variedade não é direcionado a mostrar que a similaridade e o isomorfismo não são os constituintes da relação representacional, mas que eles não são os únicos meios efetivamente empregados pelos cientistas para, a partir de uma fonte, realizar uma investigação sobre o alvo. Importa notar, para Suárez, que a base de nossas operações sobre a fonte, que levarão a conclusões sobre o alvo, são diversas e que este raciocínio de transferência (raciocínio surrogativo) é, na prática científica, o propósito da representação. Outros possíveis meios elencados por ele são a convenção, a verdade e a instanciação.

O argumento lógico consiste em mostrar que tanto a similaridade quanto o isomorfismo não têm as mesmas propriedades formais da representação. A relação representacional não é necessariamente simétrica, ou seja, uma fonte não é representada pelo alvo apenas porque o alvo é representado pela fonte. De que uma foto representa uma pessoa, não costumamos extrair que tal pessoa represente a foto. Em geral, a representação é considerada uma relação de mão única. Já a similaridade é necessariamente simétrica. Se A é similar a B por partilharem algumas propriedades, B é similar a A pelas mesmas razões. O mesmo vale para o isomorfismo. Além disso, a representação não é reflexiva, no sentido de que não costumamos dizer que algo seja representado por si mesmo. Em relação à similaridade e ao isomorfismo, elas são

reflexivas. No primeiro caso, aliás, isso corresponde a um grau máximo de similaridade porquanto está envolvida uma identidade entre todas as propriedades. Finalmente, a representação não é necessariamente transitiva. Velásquez retratou o papa Inocêncio X e Bacon, por sua vez, fez uma série de variações desse quadro. Que as telas de Bacon representam o retrato e não o papa é algo que deve ser considerado em uma apreciação de sua obra. Temos nesse caso duas relações representacionais diferentes. Contrário a isso, temos o que se mantém em transformações isomórficas. Se uma estrutura geométrica é isomórfica a uma segunda e esta, por sua vez é isomórfica a uma terceira, então, necessariamente, a primeira é isomórfica à terceira. Tal condição, no entanto não se aplica à semelhança. A pode ser similar a B por partilhar algumas propriedades com este e, por sua vez, B pode ser similar a C por partilhar com estes outras propriedades diferentes das anteriores. Nesse caso, A não é similar a C.

O argumento da representação imprópria é apresentado em duas variantes. A primeira é concernente à incorreção quanto ao estabelecimento do alvo (mistargeting), ou, mais precisamente em considerar um alvo que a fonte, de fato, não tem. Se vejo uma foto de alguém que tenha um irmão gêmeo, posso enganar-me em relação a quem, de fato, a fotografia representa por tomar um pelo outro. Isso não seria possível caso a similaridade ou o isomorfismo fossem os únicos constituintes da relação representacional. Por oposição a estes, a representação permite tais enganos. A segunda variante se refere à imprecisão que a maioria das representações comportam, em algum grau ou em relação a diversos aspectos. O isomorfismo não permite graus, ou a fonte é uma representação fiel do seu alvo, sendo nesse caso isomórfica a ele, ou não é em absoluto uma representação. Já a similaridade é uma relação que permite graus, pois se baseia na partilha de algumas, mas não necessariamente todas, propriedades entre dois objetos. Podemos deixar de lado várias propriedades e, assim o fazendo, temos uma representação idealizada, o que responderia pela imprecisão.

O argumento da não-necessidade estabelece que uma relação representacional pode ser obtida mesmo que não haja uma similaridade ou isomorfismo entre a fonte e o alvo. Para a similaridade, tal argumento passa por uma qualificação, pois é admitido, de modo trivial, que qualquer objeto é similar a qualquer outro em algum aspecto. Definitivamente, se consideramos todas as propriedades possíveis de um objeto, estaremos sempre nos referindo a inúmeras propriedades partilhadas — Suárez dá como exemplo ‘não ser nem preto ou azul’ e ‘estar do lado de cá da Lua’. Tais propriedades não parecem estar envolvidas especificamente na relação representacional, sendo irrelevantes para ela. No entanto, disso decorre o problema de definir quais os aspectos a serem considerados relevantes.

[Q]ual é o critério de relevância que é invocado aqui? É presumível que tal critério deva ligar a relevância à própria relação representacional, pois, de outro modo, não haveria razões para esperar que uma similaridade relevante fosse necessária para uma representação. As propriedades partilhadas que são relevantes são precisamente aquelas que pertencem à representação. Desse modo, obtemos que A representa B se, e somente se, A e B são similares naqueles aspectos em relação aos quais A representa B. Apesar do quão esclarecedor isso possa ser sobre a efetiva utilização da similaridade, é uma análise circular da representação! [Suárez 2003, p.235]

Mesmo superado tal problema, não seguiria que tais similaridades fossem constituintes da relação representacional. Esta parte é ilustrada por Suárez através do

Guernica de Picasso. Nele, o alvo da representação é identificado tanto ao bombardeio à

cidade de Guernica pela aviação alemã e italiana, quanto à ameaça da ascensão do nazi- fascismo aos ideais progressistas tal como se mostravam presentes na república espanhola. Nenhum dos dois pode ser colocado numa relação de similaridade com a pintura. Há semelhanças entre partes da pintura e muitos objetos — um olho, um touro, uma mulher, uma criança —, mas elas não são orientações para os alvos da representação.

O argumento da não-suficiência estabelece que a relação representacional pode não ser obtida mesmo que haja similaridade ou isomorfismo entre a fonte e o alvo. Central no argumento é algo que já estava implícito em alguns dos anteriores, a saber, que a representação envolve uma certa direcionalidade26. Tal direcionalidade é definida como a capacidade da relação representacional de levar da fonte ao alvo uma pessoa competente e informada. Tanto o isomorfismo quanto a similaridade em qualquer grau não são capazes, por si sós, de responder por esse aspecto da relação representacional. A imagem retratada de uma face humana numa colina em Marte não constitui uma representação de uma face humana, mas uma coincidência pela qual uma semelhança inegável pôde ser apreciada.