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3.2 O que se entende aqui por representação?

3.2.3 Apologia das condições miméticas

A última seção apresentou a crítica de Suárez à noção de similaridade como um elemento constitutivo da relação representacional. Segundo ela, na caracterização de uma noção geral de representação a similaridade é irrelevante. Ao englobar os domínios artísticos e científicos, a análise da representação em geral revelou que a similaridade não pode ser considerada uma condição necessária e suficiente para representação. Isso não significa que ela não possa ser identificada em diversas circunstâncias que envolvem representações, nem mesmo que ela não tenha um importante papel na utilização efetiva da maioria das representações. Mas e quanto à positividade de uma análise geral da representação?

26 Em Suárez (1999) esse aspecto era descrito em termos de intencionalidade. Sua preocupação ao incluir essa modificação é a de evitar confusões com a filosofia da mente. Segundo ele, “não parece ser uma metodologia promissora a de invocar uma difícil e obscura noção (intencionalidade) para explicar uma difícil, mas não particularmente obscura atividade humana (representação)” (Suárez 2003, pp. 237-38). No entanto, a noção de intencionalidade é constantemente invocada, em Suárez (2003, 2004), sob a forma dos ‘usos pretendidos’. Continuarei, portanto a utilizá-la para expor seus argumentos, considerando que seu cuidado se refere apenas a uma possível caracterização da representação como

Um dos aspectos de importância para nós é o caráter intencional inerente à representação. Ele também é uma das bases da apresentação, por Suárez (2004), de uma teoria minimalista da representação científica. Sua questão é: em virtude do quê um modelo é uma representação? Tal teoria dispensa a pretensão de caracterizar a representação científica em termos de condições necessárias e suficientes, mas deve estar de acordo com as críticas anteriormente levantadas no âmbito de uma noção geral de representação. A direcionalidade, anteriormente mencionada é, nesse contexto, abarcada como uma propriedade da fonte, denominada força representacional. Como antes, consiste na capacidade — agora da fonte — de levar o usuário da representação, competente e informado, a uma consideração sobre o alvo. Ela corresponde a uma propriedade contextual da fonte na medida em que é fixada pelos usos representacionais aos quais ela está submetida, tais como são pretendidos pelos agentes da representação. Na ausência desses propósitos não há como atribuir a qualquer objeto uma força representacional.

O outro elemento que está na base da teoria minimalista é que a fonte possua uma estrutura interna tal que propicie a usuários, competentes e informados, extrair inferências corretas sobre o alvo. Em outras palavras, que permita o raciocínio por transferência. Para Suárez, a inclusão desse elemento é o que garante a objetividade das representações científicas, entendida estritamente como aquilo que as permite prover informações específicas sobre o alvo. Propositadamente, ele não especifica o que torna possíveis tais inferências, entendendo que tal pretensão é o que gera as ‘metáforas de espelhamento’, tentativas de atribuir a uma relação — verdade, isomorfismo, similaridade —, como constitutiva da representação, tal capacidade de permitir inferências.

Em resumo, a concepção minimalista da representação científica proposta por Suárez pode ser expressa por: ‘A representa B somente se (1) a força representacional de

inferências específicas sobre B’. Em tal concepção, portanto, a noção de representação apresenta como característica geral e definida apenas seu aspecto intencional ou estipulativo, tal como descrito na força representacional. Outro aspecto geral, que ela suporta um raciocínio por transferência, completa a relação representacional. Este, no entanto, permanece indefinido até que aplicado a um caso específico, quando a inferência pode ser atribuída a uma relação específica — num caso, uma abdução baseada em semelhança; noutro, uma dedução baseada na verdade, etc. Além de suas próprias virtudes, a concepção de Suárez é particularmente alinhada com este estudo por extrair dos usos efetivos das representações sua caracterização. No entanto, da indefinição acima relatada resulta que não podemos, exclusivamente através dela, avançar nossas questões. Para os objetivos deste estudo, o que a análise geral da representação oferecida por Suárez mostra é a inutilidade das análises gerais da representação.

No restante desta seção, procurarei reabilitar a noção de semelhança como um componente definido da relação representacional para as representações visuais. Que a noção de representação em geral seja baseada em semelhança é algo já argumentado a partir de diferentes disciplinas. Watson (1995) alega, nada menos, que todas as teorias da representação já oferecidas, da antiguidade à neurofilosofia, são dependentes de alguma noção de semelhança, seja isso admitido ou não pelos seus criadores. Na filosofia da ciência, French (2003) não só defende o isomorfismo como base de uma teoria da representação, como considera supérfluos justamente os aspectos intencionais27. Ele chega a associar diretamente, por um lado, a ênfase nos aspectos denotativos a um entendimento das teorias como um conjunto de enunciados e, por outro, a valorização das noções de semelhança, similaridade e isomorfismo à abordagem

27 Cabe notar que em French e Saatsi (no prelo) sua posição já aribui um papel, ainda que secundário, aos aspectos intencionais.

modelo-teorética. Independente do mérito de tais alegações, detenho-me por ora no quadro apresentado por Suárez.

De início, acolho o caráter intencional da relação representacional. Isso quer dizer que não considero tal relação meramente como a semelhança ‘objetiva’ entre dois objetos e que a semelhança, portanto, em qualquer grau, não é suficiente para o estabelecimento de uma relação representacional. Não existem representações naturais. Considero, portanto, que se um objeto é semelhante a outro isso quer dizer apenas que ele pode vir a representá-lo e não que ele necessariamente o faça.

Se retornarmos aos argumentos da seção anterior, veremos que alguns deles não se aplicam a uma concepção como esta e que os demais podem ser tratados conjuntamente. O argumento da não-suficiência é trivialmente endereçado na medida em que a semelhança é pensada como apenas um dos componentes da relação representacional. Pelo mesmo motivo, a incorreção no estabelecimento do alvo é possível e, como não se trata de argumentar a favor do isomorfismo — que precisaria ser defendido quanto à imprecisão —, todo o argumento da representação imprópria é evitado. Além disso, ao evitar a identificação da relação de semelhança com a de representação, pouco importa agora que elas tenham propriedades formais diferentes e, desse modo, também o argumento lógico é contornado28. Os dois argumentos restantes, o da variedade e o da não-necessidade, são justamente os contestados aqui para as representações visuais.

Para manter tal posição, temos que tornar plausível a alegação de que alguma relação de semelhança esteja sempre envolvida na utilização das representações visuais, ainda que em conjunção com outros elementos29.

28 Tal ponto não poderia ser contornado tão facilmente caso a representação fosse considerada como irreflexiva, assimétrica e intransitiva. Embora Suárez (2003) dê mostras de assim considerá-las, não é este o caso na apresentação dos argumentos.

Um esclarecimento preliminar se faz necessário. Os exemplos empregados por Suárez não raro estão associados a questões autorais. No argumento da necessidade, por exemplo, é relevante que o alvo de Guernica tenha sido identificado àquilo que Picasso pretendeu representar. Ao ressaltar o aspecto intencional, creio que seja de grande valia dissociá-lo da questão autoral. Outros usos representacionais podem ser atribuídos à tela de Picasso. O que Guernica representaria em uma exposição retrospectiva ao lado de outras obras de suas diferentes fases? Ou ainda, o que ela representaria em uma exposição temática sobre a paz? Creio que podemos dizer, sem controvérsias relativas a questões de interpretação, que seus alvos nesses casos podem diferir daqueles pretendidos pelo autor. Isso nos leva a considerar os curadores como autores por estabelecerem novas relações representacionais a cada utilização diferente da tela. Em vez de uma multiplicação de autores, opto por identificar aquilo que estabelece a representação com a utilização do objeto que serve de fonte.

Pois bem, começo constatando que, mesmo ao tomar os aspectos intencionais como feições gerais da relação representacional, isso não confere a eles nenhum tipo de primazia em relação à semelhança, tomada como um aspecto específico das representações visuais.

Digamos que eu esboce uma planta de um hotel no qual me hospedei. Alguns meses depois, volto a me hospedar em um hotel da mesma rede, mas em uma cidade diferente. Para minha surpresa, descubro que a disposição dos quartos, móveis, elevadores, restaurante e até mesmo dos pontos de luz é a mesma que a do hotel que eu conhecera. Comento isso com o gerente e ele me informa que todos os hotéis da rede são assim construídos, que isso é um atrativo para pessoas com deficiência visual, e outras supostas vantagens que não são de nosso interesse aqui. Nessas circunstâncias, uma investigação sobre os constituintes da representação e não dos seus meios. Contudo, na abordagem deste estudo tais termos não podem ser pensados como completamente dissociados e, portanto, trato os dois argumentos do mesmo modo.

poderíamos inferir que aquela planta que eu havia desenhado, tendo como base o hotel no qual eu me hospedara anteriormente, serviria, aqui, aos mesmos propósitos de antes. Eu poderia usá-la da mesma forma. Mais do que isso, se considerarmos a informação do gerente, a mesma planta serve agora para outros hotéis que eu nem cheguei a conhecer.

Nesse caso, a fonte permaneceu a mesma e os alvos mudaram. Na criação da fonte, apenas um alvo foi considerado e quaisquer aspectos intencionais presentes nesse momento não podem ser transferidos para as experiências posteriores. A mesma fonte, no entanto, representa os demais hotéis e, portanto, a relação representacional pode ser transferida. Poder-se-ia dizer que não se trata, rigorosamente da mesma fonte — ainda que seja a mesma planta —, pois estaríamos tratando de representações diferentes, a segunda caracterizada pelo estabelecimento de uma nova intenção. Bom, como identificamos anteriormente o estabelecimento da representação com a utilização do objeto que serve de fonte, poderíamos argumentar que, sendo esta última idêntica em ambos os casos, trata-se aqui da mesma representação. Mas isto não é necessário. Basta mostrar aqui que a minha suposta nova intenção, de qualquer forma, é posterior ao reconhecimento da semelhança.

Um outro caso ilustra agora outra particularidade do caráter intencional da representação. Num estudo sobre sítios arqueológicos na Grã-Bretanha, Aubrey, no século XVII, apresentou as primeiras descrições minuciosas de Stonehenge, incluindo algumas representações visuais. Já na primeira metade do século XVIII, Stukeley notou que o monumento foi deliberadamente planejado para corresponder a um alinhamento tal que o Sol incida sobre o centro através de um de seus mais destacados dolmens exatamente no solstício do verão. Uma planta de Stonehenge pode representar, digamos, a inclinação do eixo da Terra em relação à eclíptica. Mas não apenas isso. No século XX, Hawkins, procedeu a um estudo extenso sobre os possíveis alinhamentos de Stonehenge, obtidos não apenas através dos blocos de pedra, mas por outras marcas no terreno, dentre as quais 56 buracos descobertos por Aubrey. Concluiu que o

monumento é um calendário bastante elaborado, capaz de prever, entre outros eventos astronômicos, eclipses solares. Desse modo, todas as representações visuais de Stonehenge que descrevem a disposição espacial dos megálitos e dos buracos de Aubrey podem ser lidas como representações visuais de determinados aspectos do sistema Sol- Terra-Lua, independente das intenções de seus criadores. É claro que ainda podemos argumentar que os elementos intencionais, que ligariam o monumento ao sistema físico, entram nesse exemplo através dos propósitos dos construtores de Stonehenge. Mas a retorquida indica algo muito característico de práticas arqueológicas: com base em quê inferimos tais intenções?

Resumindo: No primeiro caso as representações independem da intenção associada à criação do objeto e o reconhecimento das relações de semelhança é o que permite suas novas aplicações. No segundo, as intenções associadas à criação do objeto são inferidas das semelhanças descobertas na representação.

Uma vez assumida a semelhança como constituinte da relação representacional, portanto, não há porque pensá-la como secundária em relação aos aspectos intencionais. Falta ainda, no entanto, estabelecê-la como característica universal das representações visuais. Como vimos no argumento da não-necessidade, qualquer objeto pode ser dito semelhante a outro em algum aspecto. Até aqui nada pode ser levantado contra a universalidade. Ao considerá-la trivial, no entanto, isso nos leva a falar apenas de semelhanças relevantes. Temos agora, portanto, que mostrar que há semelhanças relevantes em todas as representações visuais. Uma vez que admitimos um componente intencional para a representação, considerá-lo para reduzir nosso campo de busca parece apropriado. De início, é fácil notar que eliminamos, para a maioria dos casos, as semelhanças triviais sugeridas, como ‘estar do lado de cá da Lua’. Prosseguindo, podemos formular que quando uso uma fonte para representar um alvo, estou me valendo, conscientemente, das semelhanças relevantes entre eles. Pelo argumento da não-necessidade, isso poderia corresponder a uma análise circular, mas não é este agora

o caso, uma vez que quem determina o critério de relevância é aquele que estabelece o uso da representação. Ademais, mesmo que alguma circularidade permaneça associada a este passo, a semelhança relevante ainda é encontrada na relação representacional, o que lhe mantém a universalidade.

Retornemos à Guernica. A alegação é a de que, apesar de a tela conter semelhanças discerníveis entre partes da pintura e certos objetos, tais semelhanças não nos guiam para a consideração dos alvos — correspondentes às intenções de Picasso. Para que o exemplo seja utilizado dentro do argumento da não-necessidade, seria preciso mostrar que é possível desconsiderar tais semelhanças e mesmo assim atingir o alvo. Que precisemos de outras informações sobre Picasso ou sobre a história da guerra civil espanhola, isso mostra apenas que as semelhanças são insuficientes. Não creio ser exato, neste caso, atribuir a força representacional de Guernica exclusivamente a tais informações. Acho plausível supor que o autor, na medida em que pretendeu pintar seu alvo, e a fim de expressá-lo, escolheu preservar em sua fonte as semelhanças que julgou relevantes de acordo com seu estilo e percepção de época. Do contrário, se apenas tais informações fossem suficientes para nos levar ao alvo, quaisquer informações expressas pela paleta seriam igualmente irrelevantes. O mesmo vale para os demais usos representacionais de Guernica.

O parágrafo anterior apenas apresentou o exemplo de Suárez e encaminhou o argumento de que a exclusão da consideração às semelhanças como um dos guias na interpretação da obra nos deixaria tão somente com outros elementos externos à obra. Há, portanto, um tipo de representação que associa a fonte ao alvo que independe das relações de semelhança entre ambos. Trata-se, e ela já foi mencionada anteriormente, de uma mera estipulação. Suárez a havia desconsiderado em sua concepção minimalista pelo caráter científico das representações. Também o faço, mas por outro motivo, por considerar que as representações visuais em questão neste estudo não são as desse tipo, afinal, todas as letras desta folha são, nesse sentido estipulativo, representações visuais.

Apenas para esse tipo de representação a semelhança não é necessária. Isso ainda não mostra que na utilização de todas as representações visuais sempre esteja envolvido algum tipo de semelhança, agora significativa. Para isso, enfim, o que resta é um argumento ostensivo ad infinitum. Não imagino nenhum caso para o qual isso não seja válido.