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4.2 O que se entende aqui por ciência?

4.2.2 A virada lingüística de Kuhn

Como a seção anterior recorre à filosofia madura de Kuhn, torna-se indispensável qualificar sua utilização neste estudo. Pois, num certo sentido, a abordagem que seguimos contrasta com ela em relação a pelo menos dois aspectos, tais como são largamente destacados na literatura secundária sobre Kuhn. O primeiro é o seu caráter eminentemente lingüístico e o segundo é o seu afastamento de uma posição naturalista. Sobre o primeiro ponto, dois autores já mencionados, Giere e Nersessian, mantêm certas reservas quanto à filosofia kuhniana e as apresentam justamente em artigos que tratam do tema da representação visual. Giere as expressa do seguinte modo:

Kuhn, ele próprio, não salientou o papel dos modos visuais ou não-proposicionais de representação na ciência. De fato, ele evitava falar sobre representação. Eu presumo que era em grande parte porque ele, como quase todos, pensava a representação em termos proposicionais e isso leva imediatamente ao conceito de verdade. Sua imagem

da ciência como uma atividade de resolução de enigmas pretendia ser uma alternativa a uma visão da ciência como produtora de verdades. Além disso, sua ênfase na incomensurabilidade de termos nas linguagens de paradigmas rivais mostra sua tendência a pensar o conhecimento científico através de categorias lingüísticas. [Giere 1996, p.270-71]

Apesar do comentário, Giere nota que a abordagem de Kuhn foi a que abriu as portas para a consideração dos modos visuais de representação na ciência. Isso porque seu trabalho permitia que a questão sobre a importância ou não dos aspectos não- proposicionais da ciência fosse respondida através do exame da prática científica e não de concepções epistemológicas anteriores a este. Em outras palavras, devido a sua abordagem ser naturalista. Por outro lado, temos a apontada ‘tendência’ em encaminhar seus questionamentos centrais como aspectos lingüísticos dessa mesma prática científica. Isso é manifesto no que se refere à noção de incomensurabilidade, mas a reserva de Giere nesse ponto é mais acertada em relação aos desdobramentos pós-Estrutura que a aproximaram de problemas de tradução. Por si só, no entanto, a questão da incomensurabilidade não inibe quaisquer investigações sobre as representações visuais na ciência, donde o aspecto relevante do comentário de Giere estar associado à representação.

A insatisfação de Nersessian é expressa num contexto diferente e relacionado diretamente à incomensurabilidade. Tal noção a fez uma interlocutora de Kuhn e seu tratamento dos problemas relacionados a ela se vale diretamente de estudos sobre a cognição, dissociando as questões relativas a sistemas conceituais de um tratamento lingüístico. Ela não nega que sistemas conceituais possam ser representados lingüisticamente, mas não crê que isso queira dizer que possamos aprender sobre a natureza da mudança conceitual na ciência simplesmente, ou ainda, principalmente, investigando a natureza da linguagem e de seu aprendizado. Disso resulta o seguinte diagnóstico dos descaminhos das análises anteriores:

O que tanto os positivistas quanto seus críticos historicistas têm em comum é que o problema da mudança conceitual está centrado na natureza das relações entre a velha e a nova estrutura lingüística. [Nersessian 1998, p. 159]

Qual é a forma da representação de um conceito? Subjacente tanto aos relatos positivistas quanto aos historicistas radicais está a aceitação ao menos tácita da clássica noção de que um conceito é representado por um conjunto de condições necessárias e suficientes que o definem. [Nersessian 1998, p.160]

Devo admitir que essa é uma passagem incomum dos escritos de Nersessian. Em diversas outras ocasiões ela reconhece claramente que Kuhn se encontra muito distante de uma caracterização como esta. Nestas, suas exposições das idéias de Kuhn sobre o aprendizado de conceitos empíricos são bastante precisas. Além disso, a autora se preocupa em localizá-las de modo coerente com desenvolvimento das pesquisas cognitivas sobre categorização, sugerindo que muitas destas podem ser consideradas reivindicações empíricas para as intuições de Kuhn. A qualificação de que se trata de uma aceitação tácita, entretanto, não é desenvolvida em outros textos. O que podemos extrair dessa citação é que a ênfase, por parte de Kuhn, no encaminhamento lingüístico das questões que lhe pareciam interessantes é algo particularmente incômodo aos estudiosos com orientações próximas às dele. Contudo, em vista do exposto na seção anterior, não podemos deixar de rechaçar as opiniões de Nersessian sugeridas nessa passagem. Kuhn rejeita, afinal, desde seus primeiros escritos, a exigência da exposição de uma série finita de condições necessárias e suficientes para que alguém utilize um termo corretamente. Esse aspecto se mantém central quando, na década de oitenta, ele se volta especificamente sobre o significado dos termos científicos. Não vejo como ele poderia ser mais explícito em relação a isso.

Feita essa ressalva, os comentários de Giere e Nersessian não apresentam empecilhos para um encaminhamento de uma discussão sobre representações visuais numa perspectiva kuhniana. Em vez disso, registram o fato de Kuhn não tê-lo feito e que isso se mostra contrário, ainda, às suas motivações. De todo modo, mesmo que isso

constitua um esclarecimento acerca do desenvolvimento efetivo de suas idéias, da correta observação que ele assim explorava as questões que julgava importantes, segue apenas a descrição de sua virada lingüística como um estreitamento de foco — uma abdicação de algumas possibilidades de desenvolvimento de sua perspectiva em detrimento de uma concentração em outras. Motivações de outras espécies também são sugeridas na exegese kuhniana e, dentre elas, reproduzo as identificadas por Bird, numa tentativa de apresentar a viabilidade de um ‘retorno’ à abordagem kuhniana do

Estrutura35:

Com o desenvolvimento da carreira de Kuhn, seu trabalho se tornava mais reconhecidamente filosófico. Havia maior ênfase nos fenômenos lingüísticos e as tentativas de Kuhn de explicar a incomensurabilidade recorriam a trabalhos familiares na filosofia da linguagem. (...) Minha própria visão é a de que a abordagem crescentemente filosófica e anti-naturalista de Kuhn foi em parte causada pela reação negativa que seu trabalho obteve entre os filósofos em combinação com o desejo de ser aceito pela comunidade filosófica. [Bird 2005, p.110]

Mais uma vez, mesmo que agora já estejamos iniciando o segundo ponto — o afastamento de uma posição naturalista —, há uma menção ao problema da incomensurabilidade. Ao ver de Bird (2002) os dois pontos estão intimamente ligados, na medida em que “a tese da incomensurabilidade é o principal veículo para sua mudança de um pensamento filosófico naturalista para um a priori”.

Para os que consideram os últimos trabalhos de Kuhn uma virada tão equivocada a ponto de colocar em questão seus resultados obtidos através das estratégias naturalistas que ele anteriormente adotara ou de tornar suas considerações a partir de então estéreis, basta insistir que as análises descritas na seção 2.2 são as que tomo como exemplares. Mas não creio, em o fazendo, que isto seja motivo para não ponderar suas idéias

35 Retorno este informado por perspectivas conexionistas em inteligência artificial. Como já adiantava a nota 7, há uma grande tendência numa filosofia da ciência estreitamente ligada aos estudos cognitivos,

posteriores. Se há algum motivo para tanto, ele se deve ao fato de as exposições sistemáticas de suas posições maduras nunca terem vindo à publicação. Em relação a estas, apenas fragmentos são disponibilizados em seus últimos artigos e as demais referências resumem-se a relatos de apresentações orais e discussões privadas.