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2.2 O que se entende aqui por função?

2.2.3 Kuhn e a função dos experimentos mentais

O primeiro parágrafo de A Function for Thougth Experiments (Kuhn 1964/1977), apresenta uma forma que é comum a diversas estratégias naturalistas empregadas no estudo da ciência. Nele, Kuhn reconhece a importância de um expediente utilizado na prática científica e mostra descontentamento com a insuficiência das reflexões sobre o assunto.

Os experimentos mentais por mais de uma vez cumpriram um importante papel no desenvolvimento da ciência física. Ao menos o historiador deve reconhecê-los como ferramentas potentes para o entendimento crescente do homem sobre a natureza. Apesar disso, está longe de ser claro como eles poderiam ter exibido tais efeitos tão significativos. [Kuhn 1964/1977, p. 240]

Kuhn não define um experimento mental, não parte do estabelecimento de critérios precisos para diferenciá-los dos experimentos propriamente ditos. Em alguns casos eles antecipam cenários ainda não construídos para algum exame empírico específico; em outros, exibem situações impossíveis de serem examinadas. Além de confiar aos leitores o entendimento do conceito, Kuhn dá alguns poucos exemplos, no

10 Note que as quatro categorias indicadas na citação são, em geral, indissociadas da dimensão intencional da noção de função.

início e ao longo do artigo, e explora o tema valendo-se exclusivamente de um desses exemplos, por considerá-lo “um caso típico de uma classe importante”.

Mesmo uma caracterização sucinta como esta já é uma base crível para discernir três linhas de questionamentos. A primeira pergunta pelas condições de verossimilhança da situação apresentada no experimento mental. Se ela não é arbitrária, de que modo se relaciona com aquilo que, na realidade, ela supostamente expõe? A segunda busca os nexos entre o conhecimento assumido para a formulação do experimento mental e o novo conhecimento obtido através dele. Se todas as informações sobre as quais é estabelecido o experimento mental já são familiares, como é possível que ele produza uma nova compreensão da natureza? A terceira requer esclarecimentos acerca do que pode ser aprendido através do experimento mental. Dadas suas características singulares, de serem efetuadas em pensamento, qual é o tipo de conhecimento que ele proporciona? Que essas três linhas mereçam atenção, podemos avaliar pelo termo geral usado para designá-las: perplexidades. Agora, em seu descontentamento, Kuhn não quer dizer que o tema não fora tratado, ou não poderia ser tratado, mediante as análises epistemológicas correntes. Segundo tais interpretações usuais, tal como Kuhn as expõe, o conhecimento adquirido quando alguém ‘realiza’ um experimento mental não constitui um maior entendimento da natureza, mas exclusivamente do aparato conceitual utilizado pelo cientista. A função por ele realizada estaria assim limitada à facilitação do reconhecimento de contradições conceituais presentes num modo de pensar. Além de tratar do tema, portanto, tais interpretações são diretamente voltadas ao terceiro problema mencionado. Ainda mais, elas avançam a solução dos dois problemas anteriores pois, na medida em que os experimentos mentais não dizem nada a respeito da natureza, não há a necessidade de perguntar sobre as condições de verossimilhança ou de explicar qualquer conteúdo adicional legado pelo experimento. Posto de outra forma, elas descartam essas duas linhas de investigação.

O cerne do descontentamento de Kuhn, no que se refere à insuficiência dessas respostas, repousa justamente nas conclusões que vão de encontro às concepções assumidas na formulação das duas primeiras linhas de questionamento. Se tratarmos os experimentos mentais meramente como clarificação lógica, suas funções estarão dissociadas de qualquer componente empírico.

Para Kuhn, isso é implausível do ponto de vista histórico. É uma solução trivial que não parece fazer jus ao exemplo que expõe, extraído das críticas de Galileu à teoria aristotélica do movimento. Isto porque é para ele ao menos suspeito que se trate ali da correção de um equívoco formal elementar que foi capaz de persistir por quase dois mil anos.

Não há dúvidas, no entanto, que eles dizem respeito à confusão conceitual. Tanto é assim que preliminarmente, em sua exposição do exemplo, ele segue as linhas gerais dessa concepção e distingue três momentos característicos presentes na ‘execução’ de um experimento mental: a adoção inicial de critérios distintos para a utilização de um conceito; a apresentação de uma situação na qual é revelado um conflito entre eles; e a reformulação dos conceitos a fim de que a confusão seja resolvida. Ou seja, há uma contradição implícita que o experimento mental esclarece. Mais ainda, Kuhn reconhece que uma parte daquelas duas questões pode assim ser preservada. A situação apresentada não é arbitrária, exatamente no sentido em que ela deve apresentar as limitações da aplicabilidade dos conceitos tais como eles eram familiarmente empregados, ou então a contradição não poderá ser exposta. Quanto à outra parte, não há aqui como prosseguir e isso marca uma inflexão.

Trata-se agora de alterar as interpretações que guiaram a exposição do exemplo e apresentar uma alternativa que viabilize a exploração dessas linhas em sua totalidade, o que corresponde a estabelecer, no plano epistemológico, que os experimentos mentais podem articular conteúdo empírico. Não é o bastante se basear na constatação histórica como evidência capaz de fundamentar essa alegação? Ou ainda, buscar a caracterização

para a função efetivamente realizada pelos experimentos mentais na história apenas? Ela é, afinal, o motivo inicial da insistência nas três linhas de questionamento anteriormente expostas. A argumentação de Kuhn neste artigo indica que sua resposta seria negativa. Para ele, isso passa por mostrar como as pressuposições tradicionais podem ser alteradas de um modo tal que essa alegação possa tornar-se um objeto de estudo.

Apesar de o vocabulário da epistemologia contemporânea não fornecer quaisquer locuções verdadeiramente úteis, gostaria agora de argumentar que, a partir dos experimentos mentais, a maioria das pessoas aprende sobre seus conceitos e sobre o mundo conjuntamente. [Kuhn, 1964/1977, p. 253]

Kuhn não irá deitar fora esse vocabulário, mas introduzir modificações profundas em seu entendimento. Nesse artigo, isso é feito em torno da noção de conceito. Continuemos a acompanhá-lo. Em primeiro lugar, a contradição conceitual que está envolvida com o experimento mental não é uma impossibilidade lógica, como o exemplo de um círculo quadrado. Nestes casos, a contradição é estabelecida entre definições impossíveis de serem predicados de um mesmo objeto. Os conceitos de ‘circulo’ e ‘quadrado’ não podem ser aplicados simultaneamente a nada imaginável, um tal objeto não poderia ser exemplificado em nenhum mundo possível. Já em relação aos diferentes critérios empregados na contradição revelada pelo experimento mental — que corresponderão a diferentes conceitos após a reestruturação —, eles podem ser aplicados a uma ampla gama de situações sem apresentar problema algum. Apenas em circunstâncias particulares, como a descrita no experimento mental, é que eles entram em conflito. Em segundo lugar, também há qualificações a serem feitas se tentarmos descrever a contradição como um estado de confusão mental. Se, afinal, os cientistas haviam empregado com sucesso os diferentes critérios indistintamente às situações com as quais se defrontaram, tal estado de confusão não pode a eles ser atribuído antes, mais uma vez, da exposição à situação descrita no experimento mental. Seus pensamentos eram claros o suficiente para lidar com os problemas que conheciam e o mundo poderia

ser tal que, em nenhuma situação, a utilização dos critérios diferentes resultasse inadequada. Enfim, tanto do ponto de vista lógico, quanto do ponto de vista psicológico, a contradição, ou confusão, é introduzida pelo experimento mental, de modo que não podemos, a princípio, imputá-la aos próprios critérios.

Dessa forma, está aberto o caminho para relacionar a função dos experimentos mentais tanto aos aspectos lógicos como aos empíricos. A situação por ele descrita é essencial no estabelecimento da contradição por revelar que não há como prosseguir com emprego habitual do aparato conceitual de um modo consistente em um mundo como o nosso. A tal revelação corresponde a exigência lógica de uma reforma conceitual. Ou seja, aprender a reconhecer as limitações conceituais é aprender sobre o mundo e sobre os conceitos conjuntamente.

Com esse movimento, o papel dos experimentos mentais mostra-se próximo ao que segue dos resultados anômalos de quaisquer outros experimentos. Estes, no entanto, mesmo para serem considerados como tais, são constatações fiáveis de algum aspecto do mundo. Além disso, fornecem uma informação nova e inesperada. O que nos leva de volta às duas linhas de questionamento, agora numa nova formulação. Ao identificar essa nova formulação ao quadro geral da imagem kuhniana da ciência, esta seção já terá alcançado seu objeto. Trato, por isso, com brevidade seu desfecho.

Uma anomalia é isto: a consciência de que, de algum modo, a natureza violou as expectativas. Que expectativas? As proporcionadas pelos próprios conceitos, ou mais precisamente, pelo composto de leis, teorias, técnicas instrumentais, bem como um repertório de suas aplicações concretas. Tal composto é o que governa os usos efetivos dos conceitos, em suas aplicações conhecidas e na extensão a outras nas quais supostamente eles poderiam ser empregados. Caso tais anomalias passem a ser reconhecidas como tais, a comunidade científica estará às voltas com um conteúdo empírico de algum tipo que não pode ser assimilado pela prática usual. Os experimentos mentais são formulações claras dessa inadequação. Nas palavras de Kuhn:

Ao transformar a anomalia sentida em uma contradição concreta, o experimento mental informou aos nossos sujeitos o que estava errado. Essa primeira visão clara do desajuste entre a experiência e as expectativas implícitas proporcionou os indícios necessários para pôr em ordem a situação. [Kuhn 1964/1977, p.264]

Donde a caracterização mais notória herdada de Kuhn para os experimentos mentais: ferramentas analíticas essenciais a serem empregadas em momentos de crise e que promovem a reformulação conceitual.