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Sumário: a ubiqüidade dos modelos na ciência

2.3 Ilustrações

3.1.1 Sumário: a ubiqüidade dos modelos na ciência

Ao nos afastarmos de uma imagem puramente enunciativa da ciência, estabelecemos negativamente uma orientação teórica. Uma contrapartida positiva deve ser apresentada. Ainda assim, preliminarmente, podemos formulá-la através de uma contraposição trivial. Nesta, a alternativa a considerar uma teoria científica um conjunto de enunciados é considerá-la um conjunto de entidades não-lingüísticas. Alegações como esta se tornaram o lema característico de estudos que, desde meados da década de sessenta, são agrupados sob denominações como ‘visão não-enunciativa’ ou ‘visão semântica’. Meu interesse não é, contudo, particularmente orientado para tais estudos, mas para a noção que eles, ao erigirem uma alternativa, identificaram como tais entidades e, com isso, trouxeram para o primeiro plano da reflexão epistemológica: a noção de modelo científico.

Há diversas caracterizações para a noção. Algumas delas são anteriores aos trabalhos dos teóricos da visão semântica — a partir de onde, afinal, eles puderam apresentar sua re-elaboração. Outras foram concebidas a partir de críticas endereçadas a ela — e são, de certa forma, um fruto do interesse por ela suscitado. Para completar nosso quadro,

devemos ainda mencionar que há diferenças mesmo entre os autores comumente associados à visão semântica. Atualmente, tais versões são manifestas em trabalhos que nem sempre exploram as mesmas questões. Essa situação é bem sumarizada no recente verbete Models in Science, elaborado para The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Sua conclusão, de apenas quatro linhas, serve aqui de epítome15:

Os modelos cumprem um importante papel na ciência. Contudo, além do fato de terem gerado um considerável interesse entre os filósofos, permanecem lacunas significativas no entendimento filosófico sobre o que são os modelos e como eles funcionam. [Frigg e Hartmann 2006]

Das caracterizações anteriores, nas décadas de cinqüenta e sessenta, sobressaem as articuladas em torno do debate, nos termos de Braithwaite, entre ‘contextualistas’ e ‘modelistas’.

Os primeiros abordavam a questão a partir de um entendimento prévio dos problemas relativos à reconstrução de teorias científicas (Cf. 1.2). Isso os levou a considerar a discussão pelo enfoque dos modelos semânticos para linguagens formais, localizando suas supostas funções, mas por fim concluindo pela sua irrelevância em tais reconstruções. Assim como as regras de correspondência, os modelos são interpretações de um cálculo. No entanto, diferentemente delas, eles podem estar completamente dissociados do contexto experimental sob investigação. Uma breve qualificação de Carnap indica essa relação:

Toda interpretação (no sentido estrito deste termo, isto é, a interpretação observacional) que se pode dar para Lt, é dada nas regras-C, e sua função é essencialmente a interpretação de determinadas sentenças que contêm termos

15 Essa mesma situação, no que diz respeito à ontologia dos modelos, já havia recebido de Goodman uma exposição, no mínimo, mais bem humorada: “Poucos termos são usados no discurso popular e científico mais promiscuamente que ‘modelo’. Um modelo é algo a ser admirado e emulado, um padrão, o caso em questão, um tipo, um protótipo, uma espécie, um manequim, uma descrição matemática — quase qualquer coisa, de uma loura nua a uma equação quadrática — e pode manter com aquilo que ele modela quase toda relação de simbolização.” (Goodman 1968/1976, p.171).

descritivos, e por isso indiretamente a interpretação dos termos descritivos de Vt. [Carnap 1956/1988, pp.227-28]

Os modelos são portanto interpretações latu sensu de um cálculo e o preço que pagam por tal liberdade é o de, ao fim, consistirem em meros acessórios a serem dispensados em uma reconstrução diligente.

Já os modelistas, na esteira de Campbell, associavam a noção de modelo à de analogia e argumentavam que ela cumpria um papel essencial na aplicação das teorias. As conhecidas críticas de Hesse são direcionadas a mostrar que a análise contextualista não faz jus ao papel desempenhado pelos modelos na prática da ciência. Ela evidencia uma distinção tripartite entre as relações analógicas que uma teoria mantém com seu modelo: as analogias positivas seriam aquelas nas quais há uma correspondência reconhecida entre as características da teoria e do modelo. As analogias negativas seriam os aspectos em relação aos quais sabidamente a correspondência não se mantém. Finalmente, com as analogias neutras Hesse se refere às relações ainda desconhecidas que podem ser estabelecidas entre uma teoria e seu modelo, e é justamente pelo papel conferido a elas que sua análise se diferencia. Isto porque são elas os veículos do ‘conteúdo adicional’ atribuído aos modelos na medida em que os contextos familiares neles dispostos guiam a atividade científica, instigando o prosseguimento da investigação e, nesse processo, expandindo a teoria. Parte do argumento ainda está baseada no fato de diversas teorias terem efetivamente se desenvolvido dessa forma, e mesmo terem surgido a partir de uma analogia frutuosa. Nesse sentido, os modelistas não estavam a apresentar apenas uma concepção alternativa para os modelos, mas, ao atribuir a eles funções relacionadas ao surgimento e desenvolvimento de teorias, seus trabalhos contribuíram para estender a atenção epistemológica para domínios além de uma reconstrução sincrônica.

É interessante apresentar como os contextualistas situavam observações como essas. Sob a ótica de Braithwaite (1962, p.229), a alegação de Hesse é a de que o modelo

proporciona um ‘argumento por analogia’. Em outras palavras, ela legitima um tipo de inferência com a qual podemos extrair, das características conhecidas dos modelos, as características ainda não conhecidas da teoria. É correto afirmar que a analogia é capaz de sugerir possíveis extensões da teoria, mas ela é incapaz de proporcionar algo além disso. Pode ser o caso de tais sugestões serem viáveis e pode ser o caso de serem completamente infundadas. Em ambos os casos, aquilo que é epistemologicamente relevante é o que decidiria entre essas duas possibilidades: um teste efetuado sobre as generalizações deduzidas da teoria assim expandida.

A questão, para os modelistas, poderia ainda ser levantada em termos do

entendimento de uma teoria e aqui retornamos ao problema da interpretação. Os

modelos seriam necessários para proporcionar uma gama de conceitos com os quais já estaríamos familiarizados, guiando desse modo as interpretações dos conceitos que, na mesma estrutura lógica da teoria, não são observáveis. Para Braithwaite (1962, p.230- 31), no entanto, tal interpretação pode dispensar quaisquer modelos. Os conceitos puramente teóricos são determinados por interpretações do cálculo capazes de expressar a teoria ‘da base ao topo’. Nesse quadro, os últimos teoremas do cálculo seriam interpretados como a expressão de generalizações empiricamente testáveis e os axiomas seriam as proposições das quais tais generalizações seguiriam logicamente. Os conceitos teóricos receberiam interpretações implícitas de acordo com o contexto em que emergem, ou seja, pela sua posição no cálculo.

Um dos problemas com as respostas como a de Braithwaite é o de basear-se em noções que já naquela época estavam sob intensa suspeita na discussão filosófica acerca da estrutura das teorias científicas. É de questões sobre o que são, afinal, as teorias científicas que surge a alternativa proporcionada pela visão semântica. As interpretações implícitas são definições abertas, que limitam as interpretações possíveis para um certo conjunto de enunciados de um cálculo, mas que de forma alguma as determina. Se tal determinação estiver calcada nas generalizações empiricamente testáveis, é necessário

que algo faça a ligação entre os termos implicitamente definidos do cálculo e aquilo que é experimentalmente determinado. Para explicar tal ligação é que uma variedade de noções foi proposta, desde as regras semânticas, até as já mencionadas regras de correspondência16. A questão que pode ser agora levantada é se tais regras são ou não elementos da teoria. Se não o são, por ‘teoria’ entendemos apenas um cálculo não interpretado, desprovido, portanto, de conteúdo empírico. Se o são, a cada mudança em suas formulações, teríamos, a rigor, uma nova teoria.

Outro problema relaciona-se com a prática científica. Como exposto acima, as alegações dos modelistas não se restringiam à interpretação de teorias como corpos estáticos, mas buscavam explicar como elas são efetivamente desenvolvidas. E, se tais preocupações não necessitavam estar presentes nas reconstruções das teorias, não obstante eram crescentes as convicções que, de algum modo, a atividade científica ‘real’, passada ou corrente, deveria ser mais reconhecível nas análises proporcionadas pela filosofia da ciência. E. Nagel, em seu The Structure of Science (Nagel 1961/1962), mescla sua análise epistemológica das teorias — no que segue, em geral, os contextualistas — com observações metodológicas sobre o papel relevante dos modelos — utilizando muito do material exposto pelos modelistas. Segundo ele, o modelo é um modo de apresentar uma teoria através de noções relativamente familiares e, dado que na atividade científica as teorias raramente são apresentadas como um conjunto de axiomas não interpretados — postulados abstratos, nas suas palavras — e determinadas regras de correspondência, ele inclui os modelos, entendidos como interpretações dos postulados, entre os três componentes usualmente presentes nas teorias. De fato, é difícil enunciar completamente, e com precisão, os postulados livres de toda interpretação e,

de fato, é difícil formular em detalhes as regras de correspondência, muitas vezes

tacitamente assumidas. Além disso, algumas teorias efetivamente surgiram a partir de

algum modelo inicial e são, portanto, desde o início, associadas a alguma interpretação para seus postulados. Contudo, em nenhum caso, segue, do fato de uma teoria ter sido apresentada nos termos de um modelo, que isto dispense as regras de correspondência como as genuínas ligações entre os termos dos postulados e o contexto experimental. Com isso, a noção de modelo é reconduzida a um papel acessório se comparada aos dois outros componentes das teorias.

No entanto, apesar de um modelo poder ser extraordinariamente valioso ao sugerir linhas de investigação que nunca ocorreriam a nós quando a teoria é apresentada de um modo completamente abstrato, ao apresentar uma teoria nos termos de um modelo corremos o risco de os fatores adventícios de um modelo enganar-nos acerca do conteúdo real da teoria. Pois uma teoria pode receber interpretações alternativas através de diferentes modelos (...) [Nagel 1961/1962, p.96-7]

Preocupações com esses dois problemas — interpretação e prática — estão presentes na elaboração da concepção alternativa para as teorias científicas efetuada pelos teóricos da visão semântica. No entanto, é inegável que as primeiras foram as que deram impulso ao seu projeto. O passo inicial foi distinguir as teorias de suas formulações:

A Concepção Semântica obtém seu nome do fato de ela construir as teorias como aquilo a que suas formulações se referem quando às formulações é determinada uma interpretação semântica (formal). [Suppe 1989, p.4]

A partir daí, o foco da análise epistemológica deixa de ser um conjunto de enunciados, entidades lingüísticas, e passa a recair sobre os modelos, entidades não- lingüísticas. Embora o conceito de modelo tenha a mesma origem da anteriormente associada aos contextualistas, aqui é necessária uma qualificação. Isso porque a noção de modelo semântico pode significar tanto um conjunto de funções responsável pela atribuição de nomes a objetos (e predicados a conjuntos de objetos, ou relações), como o próprio conjunto dos objetos (e relações). Apenas essa última acepção permite que uma teoria seja identificada a uma estrutura abstrata, livre de uma linguagem particular.

Nas tentativas de aliar essa concepção a um novo projeto de axiomatização, diversos quadros matemáticos foram sugeridos a fim de definir tal estrutura17, sempre com o cuidado de não identificar tais definições às teorias. Nessas formalizações, os próprios objetos são considerados entidades abstratas (no sentido que uma entidade matemática é uma entidade abstrata), mas os objetos podem ainda ser considerados objetos físicos, de modo que uma estrutura pode, portanto, ser instanciada em um modelo abstrato ou em um modelo físico.

Se na visão semântica, de saída, o problema da interpretação dos termos que aparecem nas formulações da teoria deixa de apresentar dificuldades, contudo, o problema de dizer sobre o que versa a teoria precisa de novo tratamento, ou seja, é necessário estabelecer qual o tipo de relação que uma teoria guarda com o seu objeto. Isso é feito através da alegação de que há um certo aspecto do mundo que é estruturalmente idêntico ao modelo apresentado. Isso só é possível manter uma vez esclarecido que, a rigor, o ‘alvo’ do modelo é também um modelo, que, por sua vez, é construído a partir dos dados. A relação em questão pode ser então apresentada como a de isomorfismo, uma relação entre dois modelos na qual é possível estabelecer a correspondência ponto a ponto entre os elementos coordenados nos dois modelos.

Nem todos os proponentes da visão semântica subscrevem a abordagem formalista descrita nos parágrafos anteriores. Giere a adota como um modo de aproximar a filosofia da ciência da prática científica. E é inegável que através da abordagem semântica proporcionaram-se diversas análises ao mesmo tempo precisas e ‘realísticas’ de teorias em diferentes disciplinas, sendo, portanto, legítima a afirmação de que ela mantém um contato maior com a prática científica do que os projetos de axiomatização

17 Em geral, cada autor se manteve, ou tem se mantido, fiel às suas ferramentas prediletas: por exemplo, Suppes e os estruturalistas alemães com predicados teórico-conjuntistas, Suppe com estruturas

anteriores. Ao descrever a visão semântica ele identifica o que, a seu ver, é uma clara vantagem:

Os empiristas lógicos estavam bem cientes de que os próprios cientistas não apresentam suas teorias sob a forma de sistemas formais interpretados. Assim, as análises filosóficas de quaisquer ciências requeriam uma prévia ‘reconstrução racional’ do conteúdo dessa ciência numa linguagem formal apropriada. O foco sobre os modelos permite que esse degrau seja pulado. Pode-se usar, portanto, qualquer linguagem suficientemente rica, inclusive a linguagem dos próprios cientistas, ao se falar sobre o conteúdo de qualquer ciência. [Giere 1988, p.48]

A variante não formal da visão semântica elaborada por Giere será analisada mais detalhadamente nas seções seguintes. Por ora, cabe apenas indicar que, nela, a ênfase sobre a individuação de uma teoria diminui consideravelmente e a noção de isomorfismo é substituída pela noção, mais flexível, de similaridade. É curioso notar, acerca do desenvolvimento das idéias de Giere, que quanto mais ele se dirige para as questões relacionadas à utilização de modelos na prática científica, mais ele se afasta daquelas relacionadas à interpretação.

Finalmente, retornemos à situação de divergência deste início de século exposta na abertura deste capítulo. Se na citação de Frigg e Hartman18 ecoa a abordagem apresentada no capítulo anterior, devemos contudo declarar que esta não deve ser assumida como um solo comum das perspectivas atuais. Ela é, no entanto, muito cara aos que entendem seus estudos orientados para uma análise da prática da ciência de um modo ainda mais radical do que Giere. Isso porque eles propositadamente dispensam uma caracterização prévia do que vem a ser uma teoria, ou mesmo do que vem a ser um modelo. Não é o caso, contudo, que eles não tenham uma idéia geral a respeito dessas noções, como mostra o título da obra que pode ser considerada a maior referência desses estudos: Modelos como mediadores (Morgan e Morrison 1999).

A mediação em questão é a exercida pelos modelos entre, de um lado, a teoria e, de outro, o mundo. Como caracterização geral, esse lema já se encontra em desacordo com as noções de modelo, sintática ou semântica, anteriormente apresentadas, pois ela assume uma autonomia dos modelos em relação às teorias. Na visão enunciativa, os modelos são parasitários de uma teoria: seja como a classe de interpretações possíveis de um cálculo ou uma apresentação alternativa específica da teoria. Já na visão semântica, a distinção entre modelos e teorias é abandonada: uma teoria é um conjunto de modelos. Vale ressaltar que a base dessa assunção é eminentemente empírica. É do relato de estudos de caso que se extrai a conclusão de que os modelos, ou de que grande parte deles, exercem funções que não poderiam ser exercidas caso eles não fossem autônomos em relação às teorias. É também com base em descrições que é sustentado que a construção de modelos raramente deriva de uma teoria, mas conjuga elementos de diferentes fontes. Em particular, vale ressaltar que os modelos apresentados nos estudos de caso não são selecionados com base em uma definição prévia, mas eleitos como objeto de estudo ao serem reconhecidos pela comunidade científica que o emprega como sendo um modelo19.

Certamente isso ajuda a explicar a diversidade característica desses estudos, bem como a suspeita levantada sobre qualquer caracterização geral, unificada, dos modelos e de suas funções na ciência. Nesse sentido, a visão semântica — cujos expoentes tornaram corrente a expressão ‘received view’ — é tomada agora, após um longo ciclo de predomínio, como sendo a visão aceita da atualidade e à qual dirigem suas críticas.

19 Como conseqüência, quando antes, na visão semântica, a apresentação da noção de modelo era feita através de uma definição e seguida de uma expressão do tipo ‘e isso está de acordo com o uso que os cientistas fazem do termo’, creio que agora isso tornou-se mais complicado. Se o próprio uso do termo ‘modelo’ pelos cientistas é considerado algo metodologicamente relevante para uma análise filosófica da ciência, então não estamos dispensados de investigações empíricas sobre esse ponto. Que isso seja levado a sério por alguns filósofos (em Bailer-Jones 2002, a autora realiza uma série de entrevistas com o intuito de ‘obter um material contra o qual as posições filosóficas podem ser medidas”), mostra o