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2.1 Introdução

2.1.2 Novo Vocabulário?

Em O retorno dos naturalistas, Kitcher (1992/1998) resume nossa seção 1.2 em uma declaração: “A epistemologia pós-fregeana é inflexivelmente proposicional”. Tal caráter, no entanto, passa ao largo de suas preocupações. Seu artigo certamente almeja avançar uma reforma de tal epistemologia, mas a partir de uma posição naturalista que é por ele caracterizada pela rejeição de princípios epistemológicos a priori e pela reintrodução da psicologia na epistemologia. Ainda, ele pretende que tal reforma não descambe, por fim,

no abandono de um projeto normativo6. Especificamente sobre a concepção da ciência como um corpo de enunciados, seu artigo não identifica relações profundas entre ela e suas duas características definidoras do naturalismo. Indiretamente, no entanto, tal concepção poderia ser contestada. Kitcher identifica duas possíveis críticas à manutenção desse quadro numa espistemologia naturalizada:

Primeiro, estudos recentes do conhecimento científico têm enfatizado o papel que as habilidades não-verbais desempenham em processos que as epistemologias pós- fregeanas consideravam em termos da relativamente não problemática adoção de enunciados. O renovado interesse pela natureza dos experimentos derrubou certos preconceitos sobre a aquisição de ‘evidências empíricas’. Segundo, a ênfase do naturalismo no uso do nosso melhor conhecimento científico na epistemologia deveria estender-se à reformulação das questões epistemológicas básicas. Os resultados das ciências cognitivas sobre a natureza das nossas representações deveriam ser empregados ao se levantar essas questões. Na medida em que uma parte, a maior parte ou a totalidade do conhecimento humano apresenta-se como fundamentalmente não- proposicional, a estrutura tradicional da epistemologia estará superada. [Kitcher 1992/ 1998, p.64]

Apesar de os estudos referidos na primeira serem antes de tudo o resultado do trabalho de historiadores e sociólogos, o argumento de ambas as críticas é encaminhado por Kitcher dentro dos domínios da psicologia — ou, de um modo geral, das ciências cognitivas. São elas que, informadas por quaisquer outros relatos, estariam em condições de orientar mais este afastamento da tradição. O que está em jogo são as categorias básicas através das quais são formuladas as questões epistemológicas, nas quais a cognição é tratada em termos da aceitação ou rejeição de enunciados, e que acompanham noções centrais na filosofia da ciência, como as de verdade, justificação e crença.

6 A essas duas rejeições e, principalmente, à preservação do aspecto normativo com um caráter meliorativo, Kitcher associa um naturalismo tradicional por oposição a quaisquer outras perspectivas

Quanto a isso, Kitcher se mostra cauteloso e sua preocupação com a prática corrente da filosofia da ciência faz com que considere equivocada a rejeição do vocabulário epistemológico tradicional. Por considerar a inexistência de qualquer alternativa, o ataque a uma abordagem proposicional só nos deixaria escolher entre uma terminologia inadequada e outra não desenvolvida. Sua sugestão é que continuemos aplicando, no direcionamento dos problemas epistemológicos, aqueles estudos cognitivos que se mostrem consistentes com o vocabulário tradicional e, enquanto isso, acompanhar o desenvolvimento de propostas capazes de suplantá-los para, então, substituir a terminologia da filosofia da ciência. Não se trata aqui, portanto, de uma defesa da visão enunciativa.

À época da publicação deste artigo, Paul Churchland já havia posto em curso uma tal proposta e creio que é a ela, especificamente, que Kitcher se refere. Segundo Churchland, os processos subjacentes à cognição poderiam ser mais bem apreciados em termos de uma descrição calcada em redes neurais. De uma concepção do aprendizado como a modificação de arranjos sinápticos seguiria a caracterização de uma teoria como um padrão de conexões sinápticas, cuja configuração global determina o processamento de sensações e daí para a resolução das demais questões filosóficas sobre a ciência7.

Passada uma quinzena de anos, a paciência então sugerida por Kitcher se afiguraria hoje como um posicionamento. Não apenas porque uma proposta não veio suplantar as perspectivas proposicionais, mas porque, dada a configuração do campo das ciências cognitivas, não podemos projetar para um futuro próximo tal ‘revolução’8. Na ausência

7 Churchland (1992) utiliza suas conclusões em apoio da filosofia de Feyerabend. Andersen (2001a) afirma que as observações de Kuhn sobre o aprendizado de conceitos na ausência de regras (Kuhn 1974), e suas simulações por computador nos fins dos anos sessenta, são “claramente semelhantes” aos argumentos expostos por Churchland sobre o mesmo tema.

8 Anderson (2003) observa que “argumentos sobre princípios teóricos, como se os humanos realmente representam as coisas em termos de entidades mentais semelhantes a proposições, têm sido até hoje inconclusivos”. Para essa e outras questões de base das ciências cognitivas, as controvérsias apresentadas em Kirsh (1991) continuam controversas.

de uma orientação única por parte de tais estudos, as alternativas ora proporcionadas se equiparam e cada uma delas poderia ser considerada capaz de prover a epistemologia de seu vocabulário. No entanto, essa mesma situação solapa o otimismo expresso em 1992 de que a transferência de domínio resolveria, para a filosofia da ciência, tal questão. Atualmente, creio que faça mais sentido optar ou não por formular os problemas epistemológicos pensando o conhecimento como primordialmente proposicional e, posteriormente, valer-se das pesquisas empíricas sobre a cognição que se mostrem particularmente úteis para seus encaminhamentos.

A principal noção relacionada a essa discussão de Kitcher é a de representação. Ela será mais detalhadamente discutida no capítulo seguinte (Cf. 3.2), mas adianto que não considero necessário descartá-la ou pôr em curso uma ‘política de terra arrasada’ em relação ao vocabulário epistemológico. Por ora, cabe apenas dissociar a noção de representação da noção de enunciado e creio que isso pode ser feito de um modo mais direto, independente de quaisquer resultados das pesquisas empíricas das ciências cognitivas.

Como vimos, nem Frege nem Carnap utilizam originalmente a expressão ‘representação lingüística’ para se referir aos enunciados. Até isso começar a ser feito, ‘representação’ era ‘representação mental’ e poderia ou não, a depender de seu conteúdo objetivo, para Frege, ou de seu conteúdo teórico, para Carnap, se apresentar como um enunciado. Que a partir de meados do século XX — e provavelmente até hoje, para muitos — ‘representação’ seja ‘representação lingüística’ e, particularmente, proposicional, isso é o resultado de uma acomodação do vocabulário epistemológico às perspectivas que se mostravam promissoras9. Que elas não mais o sejam — tanto de um modo geral, por decorrência de um outro processo estendido que cabe à história da

9 Frege é ainda mais incisivo na manutenção de uma diferença categorial. O termo ‘representação’ é invariavelmente utilizado para designar estados subjetivos. Quando Kitcher associa a ‘representação lingüística’ — como um termo básico do vocabulário para formular problemas filosóficos — a “uma

filosofia da ciência investigar, ou especificamente de acordo com os fins deste estudo, pelas razões apresentadas na introdução —, faz com que a noção de representação volte a ser exposta a uma flutuação cuja direção é determinada pelos interesses manifestos nas pesquisas contemporâneas.

Este estudo assume a necessidade de modificações e, certamente, a tais modificações corresponderá a necessidade de reavaliar outras noções e questões outrora assumidas. Entretanto, suas motivações não são, especificamente, as de descartar vocabulários.