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2.2 O que se entende aqui por função?

2.2.2 Análise funcional em Kuhn

Ao caracterizar a perspectiva teórica de Kuhn, Hoyningen-Huene busca, segundo suas palavras, identificar o foco que guiara o projeto kuhniano (Hoyningen-Huene 1989/1993, pp.24-27). Como indicador desse foco, ele elege a noção de estrutura e, preliminarmente, relaciona algumas das feições gerais que temos em mente ao falarmos da estrutura de algo: (1) que esse algo não é inteiramente homogêneo, mas possui partes; (2) que tais partes não se encontram em relações arbitrárias ou aleatórias umas com as outras, mas que são aproximadamente determinadas e constantes; e (3) que, devido à ordenação dessas partes, esse algo pode afigurar-se como um todo, não obstante sua multiplicidade interna. Tais feições são preservadas nos usos específicos da noção em diferentes discursos científicos, mas, uma vez que não encontra em tais usos elaborados algum que seja congruente com a noção kuhniana, Hoyningen-Huene a constrói através de uma inspeção do uso do termo ‘estrutura’, tal como ele ocorre no livro de 1962. Sua conclusão oferece uma versão concreta das feições gerais acima arroladas na qual a estrutura de episódios na história da ciência é entendida como um padrão universal de desenvolvimento histórico que determina a ordenação temporal de diferentes processos.

Das estruturas, a mais abrangente é a descrita no modelo de fases, referente ao desenvolvimento científico como um todo, mas podemos falar de estruturas mais específicas — da estrutura da descoberta, das revoluções, etc — ao identificar os processos que estão em jogo em cada caso. Ademais, isso corresponderia ao maior interesse, por parte de Kuhn, por alguns momentos tomados individualmente. A discussão de Hoyningen-Huene termina aqui. É difícil não admitir que ela seja

manifestamente orientada para uma obra específica, o Estrutura embora, é claro, seu livro não o seja. Ao colocar em primeiro plano a estrutura como o foco, o modelo de fases aparece como um vertedouro indispensável para onde confluem as investigações kuhnianas. Com isso, torna-se difícil determinar o foco daquelas análises específicas de Kuhn que não se refiram diretamente ao modelo de fases, mas não deixam de destacar elementos considerados essenciais no desenvolvimento científico.

O que proponho nesta seção é prolongar a discussão de Hoyningen-Huene adotando como indicador a noção de função. Assim como ocorre em relação à noção de estrutura, não podemos indicar a cuidadosa introdução de seus sentidos pelo próprio Kuhn. Mas se a intenção é a de estabelecer um foco a ser interpretado como aquilo através do qual podemos ler o que guiou suas investigações, ao adotar a noção de função como indicador podemos perscrutar uma variedade de obras, anteriores e posteriores ao

Estrutura. Além disso, mantém-se a congruência com as análises de Hoyningen-Huene

uma vez que se admita que as relações entre as partes de uma estrutura, além de serem temporalmente orientadas, são efetivamente elaboradas por Kuhn como relações funcionais.

O artigo publicado na Isis em 1961, The Function of Measurement in Modern

Physical Science, é fruto de uma apresentação em 1956 e de uma revisão em 1958. Em

duas oportunidades (Kuhn 1977a, p.xvii; Kuhn 1997/2000, p.295), Kuhn alude à preparação desse texto como sendo de fundamental importância na cristalização do conceito de ciência normal. A estratégia então adotada foi a de, uma vez reconhecido que a medição cumpriu um papel central na física, questionar a natureza desse papel e as razões de sua eficiência peculiar:

As duas questões centrais deste artigo – como a medição efetivamente funcionou na ciência física e qual foi a origem de sua eficácia especial – serão abordadas diretamente. Para esse propósito, e apenas para ele, a história será verdadeiramente ‘filosofia ensinada pelo exemplo’. [Kuhn 1961/1977, p.179]

A ‘abordagem direta’ de Kuhn consiste em deslocar a atenção das análises centradas na avaliação dos papéis atribuídos à medição segundo suas reconstruções em manuais, ou em elaborações sistematizadas de um domínio de estudos, para a pesquisa quantitativa tal como ela é empregada no processo de desenvolvimento das teorias. É nesse movimento que identificamos, na perspectiva kuhniana, o primado da prática sobre os resultados. E é concernente a assuntos como esse que a história adquire relevância, pois dela provêm fontes capazes de indicar as funções efetivamente realizadas pelas medições.

A partir daí o artigo prossegue distinguindo as medições ‘normais’ das ‘extraordinárias’ e procurando exibir seus motivos e seus efeitos. Ao fim, através de uma ordenação temporal e funcional, uma estrutura é identificada e apenas nessa generalização parece consistir a contribuição de uma perspectiva histórica em filosofia da ciência. Em termos mais gerais, no entanto, Kuhn indica que a referência a um modelo universal pode estar ausente. Afinal, seu apelo não está em defender uma teoria indutiva da ciência fundada em ‘fatos’ históricos. O seguinte trecho insiste nas relações entre história e filosofia.

Quando o historiador da ciência emerge da contemplação das fontes e da construção da narrativa, ele tem o direito de alegar estar familiarizado com os elementos essenciais. Se então disser: ‘Não posso construir uma narrativa viável sem dar um lugar central a aspectos da ciência que os filósofos ignoram, nem posso encontrar vestígios dos elementos que eles consideram essenciais’, merece ter uma audiência. [Kuhn 1977b, p.18]

Ele aparece em uma das muitas discussões sobre a diferença dos ofícios do historiador e do filósofo, mas pode ainda ser lido como a descrição de uma etapa prévia a qualquer tentativa de expor, de forma positiva, um padrão para o desenvolvimento científico. Mesmo nesse caso, o que mais contribui para a exposição de tal padrão não está relacionado às generalizações, mas à seleção apropriada dos elementos a serem

destacados. Seleção esta indissociável de questões sobre que funções exerceram, ou exercem em geral, tais e tais elementos no desenvolvimento científico.

Até aqui tratamos exclusivamente de práticas identificáveis e de como da investigação sobre suas funções pode emergir uma imagem de ciência. Antes de expor a abordagem de Kuhn para um expediente específico, os experimentos mentais, é interessante registrar o quanto estão articuladas as ‘observações’ da atividade científica e as noções por ele construídas para analisá-la.

Nos últimos escritos de Kuhn, quando a inspeção histórica detalhada cede lugar a uma “simples olhadela”, a análise funcional permanece presente, apenas deslocada para um nível mais abstrato. Tomando a noção de ‘léxico’ como exemplo, podemos identificar em diferentes textos as tentativas de estabelecer uma terminologia mais apurada através da atribuição de funções às noções empregadas. Nesse processo, a própria estrutura apresentada através do modelo de fases é passível de ser revista e fica em aberto o que poderia substituí-la. Em The Road since Structure, Kuhn retoma o paralelismo entre o desenvolvimento biológico e o científico e arrisca:

A diversidade léxica e os limites que ela, por princípio, impõe sobre a comunicação podem ser o mecanismo de isolamento requerido para o desenvolvimento do conhecimento. É muito provável que seja a especialização decorrente da diversidade léxica que permita às ciências, vistas coletivamente, solucionar os enigmas postos por uma gama mais abrangente de fenômenos naturais do que uma ciência lexicamente homogênea seria capaz de alcançar. [Kuhn 1991a/2000, pp.98-99]

Enquanto a primeira frase nos informa, em outras palavras, sobre ‘a função da incomensurabilidade’, a segunda associa tal função a algo sugerido pela observação.

Um segundo exemplo finaliza esta breve digressão. Ele se refere ao manifesto descontentamento de Kuhn com algumas perspectivas teóricas até certo ponto próximas às dele justamente em relação ao que adotei nessa seção como seu foco.

Interesse, política, poder e autoridade sem dúvida desempenham um papel importante na vida científica e em seu desenvolvimento. Mas a forma tomada pelos estudos sobre ‘negociação’ tornaram (...) difícil de ver o que mais tem algum papel. (...) A Natureza, ela própria, o que quer que possa ser, não parece tomar parte no desenvolvimento das crenças a seu respeito [Kuhn 1992/2000, p.110]

E é a proximidade que faz com que Kuhn atribua relevância filosófica à avaliação dos descaminhos dessas perspectivas. Independente da forma de sua resposta, ela acabará por expor sua convicção de que faltam a estes relatos a consideração a alguns ‘elementos determinantes do desenvolvimento científico’10.