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3. Algumas considerações sobre a Cannabis

3.1 A planta

A Cannabis sativa L. é uma planta da família das Canabiáceas88, oficialmente classificada pela primeira vez na comunidade científica por Carolus Linnaeus, em 1753 (FRANÇA, 2015: 7).

Os registros históricos da canábis mais antigos vêm da Ásia e os chineses foram os primeiros a documentar a domesticação da planta (LI, 1974: 437; THOMAS, 2012: 2)89. Os

88 Durante algum tempo houve certa divergência na comunidade científica a respeito da correta classificação da Cannabis sativa. Inicialmente, quando da sua documentação por Linnaeus a planta foi classificada como

pertencente à família Urticaceae em razão da semelhança visual com outras herbáceas do grupo. Depois passou a ser incluída na família botânica Moraceae. Atualmente, contudo, a comunidade científica acordou na reclassificação da Cannabis sativa L: suas peculiaridades são tantas que não há família botânica na qual ela possa ser inserida seguindo os padrões consistentes de classificação utilizados na biologia. Criou-se, então, a família botânica Cannabaceae (Canabiáceas, em português), que abarca todos os gêneros e espécies da herbácea. Para mais informações, cf. THOMAS, 2012: 1-4.

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primeiros registros de utilização da canábis na China têm mais de 6.000 anos e remetem ao período Neolítico (LI, 1974: 437)90.

Os registros históricos indicam ao menos cinco formas distintas de utilização e aproveitamento da Cannabis na antiguidade chinesa (LI, 1974: 437-439; FLEMMING & CLARKE, 1998: 280-286): (i) do caule eram extraídas as fibras de cânhamo, muito utilizadas na indústria têxtil e nas expedições marítimas; (ii) as sementes da planta eram consumidas e utilizadas na alimentação; (iii) o óleo extraído das sementes da planta era utilizado na preparação de alimentos e na produção de cosméticos; (iv) as flores, folhas e raízes eram amplamente utilizadas para fins medicinais; e (v) as flores e a resina eram utilizadas para induzir alucinações em cerimônias ritualísticas e para fins recreativos.

A canábis é uma planta altamente resistente cujo desenvolvimento ótimo se dá em condições climáticas temperadas e tropicais (THOMAS, 2012: 2). Diz-se ser a canábis altamente resistente porque a planta consegue subsistir em ambientes extremamente hostis, tendo viajado ao redor do globo sem o envolvimento de seres humanos por séculos (RIZZO, 1972; VAVILOV, 1992; GREEN, 2011: 4).

A despeito de sua origem asiática, a canábis se difundiu ao redor do globo primordialmente através de elementos da natureza. A semente da planta pode ser transportada entre regiões distantes através do vento, abelhas, pássaros e outros animais (GREEN, 2011: 4-5). Além disso, a expansão do cultivo da planta ao redor do mundo está historicamente associada aos diferentes fluxos migratórios da civilização humana (THOMAS, 2012: 3; GREEN, 2011: 4-5)91.

Com o distanciamento de seu habitat natural ao longo da história e sob influência das práticas humanas, a canábis viu-se constantemente sujeita à hibridização. Hoje, com seu cultivo difundido nos quatro cantos do globo, as Canabiáceas mais comumente encontradas possuem características bem diferentes daquelas originalmente cultivadas (THOMAS, 2012: 3).

90 LI (1974) faz uma revisão histórica e arqueológica da utilização da Cannabis na antiguidade chinesa.

Partindo de descobertas arqueológicas documentadas e registros históricos da antiguidade oriental a utilização da canábis na cultura chinesa é reconstruída.

91 Há registros, por exemplo, da introdução da Cannabis no norte europeu através dos Vikings, que buscaram

adentrar o continente para escapar do frio extremo. Estima-se também que o cultivo de canábis foi muito difundido na América do Norte pelos colonos ingleses, que utilizavam a planta principalmente para produção do cânhamo e para consumo recreativo. Neste sentido, cf. THOMAS, 2012: 2.

Muito embora as herbáceas incluídas nas Canabiáceas possuam um espectro de características muito distintas, há traços comuns que são compartilhados (SMALL & CRONQUIST, 1976: 405; CATALÁN, 1995).

A Cannabis é uma planta dioica, ou seja, possui dois sexos e a fecundação ocorre entre indivíduos (plantas) de diferentes fenótipos, através da união do pólen masculino com o óvulo feminino. É também angiospérmica – possui semente protegida por flores, que são unissexuais, discretas e cobertas por pelos granulosos.

Explicitamos desde já uma informação extremamente relevante para este trabalho: é aceito na comunidade científica que apenas nas flores fêmeas da Cannabis estes pelos granulosos secretam uma resina com propriedades psicoativas (HILLIG & MAHLBERG, 2004: 966-967; SMALL & CRONQUIST, 1976: 408-412; COSTA, 1970: 91)92.

Isso porque, como se verá adiante, praticamente todo THC (tetra-hidrocanabinol) presente na canábis concentra-se na resina secretada nos pelos das flores fêmeas (HILLIG & MAHLBERG, 2004: 967; GREEN, 2011: THOMAS, 2012: 3). O THC é a substância com maior efeito psicoativo na canábis, responsável por proporcionar os efeitos associados ao consumo da planta.

O caule da Cannabis é altamente fibroso: dele extrai-se o cânhamo, fibra amplamente utilizada para diversos fins industriais (COSTA, 1970: 90; WIELGUS, 2008: 199-207). Suas folhas são desenhadas em porções lineares. As plantas geralmente possuem entre 30 cm e 4 metros, a depender da subespécie e das condições de cultivo. A canábis é também heliotrópica, ou seja, desenvolve-se melhor em espaços abertos diretamente sob a luz do sol (THOMAS, 2012: 2-4).

Classifica-se a Cannabis como herbácea anual: seu ciclo de vida (crescimento, reprodução e morte) se completa em um ano ou menos.

92 No mesmo sentido: SCHULTES, 1970: 11-38; SMALL, 1972: 1947–1949; SMALL, 1975: 978-987;

3.1.1 Taxonomia da Cannabis

O gênero mais comum das Canabiáceas é Cannabis93 e não há consenso na comunidade científica sobre a classificação das espécies de Cannabis (SMALL, 1979: 5-6; HILLIG & MAHLBERG, 2004: 966; EMBODEN, 1981: 15-16). Pesquisadores disputam há anos a classificação das herbáceas em uma, duas ou três espécies (SCHULTES, et. ali., 1974: 337-338)94.

Por ora nenhuma corrente majoritária se estabeleceu, muito provavelmente porque esta disputa é também a respeito do conceito de espécie9596.

Neste trabalho optamos pela classificação da Cannabis em duas espécies: Cannabis sativa e Cannabis indica (LAMARCK, 1795: 694-695; EMBODEN, 1981: 16. A opção se justifica por razões didáticas, já que a Cannabis é comumente apresentada no Brasil como planta de duas espécies97.

Cabe apontar, contudo, que o Ministério da Saúde do Brasil parece adotar o sistema original de classificação da canábis, entendendo-a como planta de espécie única, a Cannabis

93 O outro gênero da família das Canabiáceas é Humulus, cuja espécie mais conhecida é a Humulus lupulus, o

lúpulo utilizado na produção de cerveja.

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O primeiro registro taxonômico da Cannabis foi feito por Carolus Linnaeus em 1793, que indicou a existência de apenas uma espécie do gênero Cannabis, a Cannabis sativa-L (SMALL & CRONQUIST, 1976: 406). Alguns anos depois Linnaeus enfrentou oposição de Jean-Baptiste de Lamarck, que defendia a classificação bipartida em duas espécies: Cannabis sativa e Cannabis indica (LAMARCK, 1795:694-695). No século XX, pesquisadores intensificaram os pleitos pela reclassificação das herbáceas para reconhecer a existência de mais de uma espécie (EMBODEN, 1981: 16). Há ainda quem reivindique o reconhecimento de uma terceira espécie: a Cannabis ruderalis (CALLAWAY & LAAKKONEN, 1996: 32-34; THOMAS, 2012: 2). A planta é originária das porções central e leste da Ásia, sendo há que documentação robusta sobre o cultivo de Cannabis ruderalis na Rússia para fins fabris e industriais. Estas plantas difeririam da Cannabis sativa e da

Cannabis indica na quantidade de THC, relação THC/CBD, tamanho, velocidade e ciclo de florescimento

(THOMAS, 2012: 4). A Cannabis ruderalis cresce em temperaturas mais frias do que as outras e resiste a condições que poderiam ser insustentáveis para as outras espécies.

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Cf., neste sentido: RIEGER, et. ali., 1991: 458-459. Os autores sugerem que o conceito de espécie seja: “grupos de populações que efetiva ou potencialmente se cruzam naturalmente e que são reprodutivamente isolados de outros grupos”. A despeito da tentativa de elaboração do conceito, os autores reconhecem que há um alto grau de abstração inerente que permeará o debate.

96 Apesar da naturalidade da disputa teórico-conceitual sobre a definição de espécie, a taxonomia da Cannabis

tem sido fortemente criticada na comunidade acadêmica. Argumenta-se que a correta classificação e compreensão das plantas canábicas foi negligenciada por muitos anos, implicando um repertório poroso de conhecimento que é cientificamente mais frágil do que o utilizado em outros aspectos da botânica. Neste sentido, cf: SCHULTES, et. ali., 1974: 337-367.

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sativum ou Cannabis sativa L, que se subdivide em duas subespécies (Cannabis sativa sativa e Cannabis sativa indica) e múltiplas variedades98.

A Portaria do Ministério da Saúde nº 344/1998 arrola as substâncias controladas e especifica as substâncias de circulação proibida, em conformidade com o art. 1º da Lei nº 11.343/06. Dentre as “listas” de controle apresentadas pelo Ministério, a Lista-E arrola as “plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas”. Nela consta a inscrição da “Cannabis sativum“, apenas, sem qualquer outra referência, o que insinua uma adesão ministerial ao critério taxonômico original da planta, tal como apresentado por Linnaeus.

Inobstante o debate, as principais diferenças entre as duas (sub)espécies se apresentam em três aspectos: (i) dimensão das plantas, (ii) concentração de THC e relação CBD/THC e (iii) efeitos percebidos pelos usuários (GREEN, 2003: 13).

A Cannabis sativa tende a atingir maiores alturas, com menos ramos, dando origem a flores compridas e mais finas (SCHULTES, 1970: 24-26; THOMAS, 2012: 2-4). Já a Cannabis indica alcança menores alturas, com muitos ramos, geralmente criando formato cônico ou piramidal (GREEN, 2003: 13). Além disso, a Cannabis indica pode ter uma relação CBD/THC de 4 a 5 vezes maior que a Cannabis sativa. Isso significa que a indica possui concentração de THC nas porções consumíveis da planta de 4 a 5 vezes maior que a sativa.

A concentração de THC impacta diretamente a percepção dos efeitos pelos usuários: predomina na Cannabis indica a sensação inebriante de relaxamento, diretamente associada ao THC, ao passo na que na Cannabis sativa predomina a sensação muitas vezes descrita como “cerebral”, de equilíbrio entre estimulação e relaxamento (MCPARTLAND & RUSSO, 2001: 3-4).

A domesticação da canábis pelo homem permitiu o desenvolvimento de plantas híbridas, oriundas da fecundação entre plantas de espécies diferentes (THOMAS, 2012: 2-3). As plantas híbridas mesclam características das duas espécies de maneiras que só podem ser determinadas concretamente, considerando os tipos de semente e suas particularidades (SMALL, 1975: 978-982; VAN BAKEL et al. 2011: 12).

98 Variedade aqui referida é uma categoria classificatória da biologia hierarquicamente inferior às subespécies.

No Brasil predomina o cultivo da Cannabis sativa e de plantas híbridas (FRAGA, 2006: 102; SOUZA & RAYMUNDO, 2007: 23). A sativa se adapta melhor ao clima tropical e cresce livre na natureza em altas temperaturas (THOMAS, 2012: 3).