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5. A fundamentação da tipificação do plantio de canábis: definindo

5.1 De que quantidade estamos falando?

5.1.4 Quantidade e os elementos objetivo e subjetivo

Foi possível identificar em alguns acórdãos controvérsias sobre o teor dos laudos de criminalística. Algumas decisões discutiram se quesitos apresentados pela defesa aos peritos sobre as características biológicas do cultivo eram essenciais para compor o acervo probatório. Como vimos, prevaleceu o entendimento de que a comprovação de que as plantas são do gênero Cannabis basta para tipificação penal:

217 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9103869-50.2005.8.26.0000. 6ª

Câmara Criminal. Relator: Luiz Felipe Nogueira Junior. São Paulo, SP, j. 06 de outubro de 2005.

218 Alguns acórdãos enfrentaram alegações apresentadas pela defesa dos réus sobre nulidade processual por

violação de direito de defesa decorrente da rejeição de quesitos que deveriam ter sido apresentados aos peritos (cf. notas 210 e 211 supra). Nestes casos foi possível identificar que a defesa expressamente havia requerido a apresentação de quesitos para o laudo pericial sobre as plantas. Os quesitos, que foram indeferidos, traziam questões sobre sexo, condições de cultivo e capacidade de produção, que a defesa expressamente requereu fossem avaliadas pelos técnicos.

O apelante foi denunciado e condenado como incurso nas penas do tráfico de entorpecentes porque, segundo a denúncia, no dia 04 de maio de 2.001, por volta das 13:40 horas, na Rua Américo Carlos de Almeida, n° 270, Jardim Primavera, na cidade e comarca de Monte Aprazível - SP, semeava e cultivava, para fins de tráfico, 45 pés de Cannabis Sativa L, conhecida como maconha, medindo cada um aproximadamente 07 (sete) centímetros, substância entorpecente que determina dependência física e psíquica, o que fazia sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. (...)

Por fim, o questionamento da Defesa quanto ao exame químico toxicológico não merece acolhida. A análise feita, tanto no laudo de constatação (fls. 27), quanto no exame químico toxicológico (fls. 56), levou em conta os elementos que compõem a substância periciada, concluindo que se trata do vegetal Cannabis Sativa L, composto de Tetrahidrocanabinol, entre outros, responsável pelos efeitos farmacológicos, estando incluído na Portaria n° 344 - ANV1SA (SVS/MS), de 12.05.98.219

O argumento é o de que a Portaria nº 344/98 da ANVISA/SVS/MS proíbe todo e qualquer cultivo de canábis, razão pela qual a materialidade dos delitos de plantio se comprova pela informação de que os vegetais são pertencentes ao gênero Cannabis. Este entendimento não nos parece adequado.

Vimos que os arts. 28, §1º e 33, §1º, II, da Lei de Drogas referem-se a “plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância” e “plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”, respectivamente, na descrição do núcleo objetivo dos tipos penais de cultivo.

Estas expressões implicam duas exigências distintas para a configuração do elemento objetivo dos delitos de cultivo. Num plano abstrato, é necessário que a lei ou “listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União” (art. 1º, parágrafo único da Lei de Drogas) indiquem quais são as plantas que se destinam ou constituem matéria-prima para a preparação de drogas.

Em um plano concreto, também é necessária a comprovação de que as plantas apreendidas são ao menos potencialmente capazes de produzir drogas. Ou seja, no caso da Cannabis a tipificação dos delitos de cultivo requer ao menos a comprovação de que as plantas são do sexo feminino.

Isso porque as plantas do sexo masculino não produzem flores e contém quantidades ínfimas de THC em suas estruturas. As plantas de canábis do sexo masculino, portanto, não

219 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9125404-40.2002.8.26.0000. 1ª Câmara

são nem “destinadas à preparação” de drogas, nem “constituem matéria-prima para a preparação de drogas”220. Quando muito as plantas do sexo masculino podem gerar sementes que germinem e produzam plantas fêmeas capazes de produzir flores. No entanto, esse potencial de geração de sementes não pode ser considerado “matéria-prima” para produção de drogas porque a planta macho em si não é capaz de fazê-lo.

Esse entendimento parte da premissa de que as drogas são o objeto do controle penal estabelecido na Lei de Drogas. O cultivo de determinadas plantas não é proibido em razão das plantas em si. As plantas importam para as disposições penais enquanto matéria-prima para produção de drogas.

Assim, entendemos ser essencial para a configuração da tipicidade objetiva dos delitos de cultivo a comprovação de que as plantas de canábis sejam ao menos potencialmente capazes de gerar flores consumíveis.

Além disso, a Lei de Drogas também dispõe que quantidade de drogas é relevante para determinação dos fins de consumo pessoal e tráfico (§2º do art. 28). Isso implica a necessidade de compreensão das características físicas que influenciam produtividade dos cultivos para que se possa dimensionar a quantidade de droga que pode ser produzida. Ou seja, ainda que desconsideremos a importância das características biológicas das plantas para o elemento objetivo dos delitos de cultivo, elas são essenciais para que possamos diferenciar os casos de consumo dos de tráfico.

Para determinar qual a capitulação penal de um cultivo é essencial ao menos estimar a quantidade de droga que as plantas poderiam efetivamente gerar. Não se pode afirmar que determinada quantidade de plantas não poderia se destinar apenas ao consumo sem antes discutir quanta droga poderia ser produzida.

Esta abordagem sobre a tipificação dos delitos de cultivo proporciona ferramentas importantes ao operador do direito e impõe a necessidade de diálogo com outros campos do conhecimento. Isso é especialmente importante para que possamos evitar que decisões sejam constantemente fundamentadas em presunções descompassadas com os aspectos concretos analisados nos autos.

220 De Launey (1996) conduziu uma pesquisa qualitativa com cultivadores de canábis que produzem maconha

para venda a terceiros na Austrália. Nas entrevistas realizadas com os cultivadores, De Launey (1996: 127) relata que todos afirmaram não ser possível produzir drogas recreativas a partir das plantas macho de canábis. Isso é consistente com as informações científicas sobre os padrões de concentração dos canabinoides nas plantas macho e fêmea (KIMURA & OKAMOTO, 1970: 819-820; HEMPHILL et ali., 1980: 112-122; AVICO et ali., 1985: 61-65; ELSOHLY, 2002: 27-36).

Afirmações como a de que quem é preso “cultivando entorpecente - maconha - em sua própria residência, em fartíssima quantidade - mais de 10 kg (!!), entre árvores, arbustos em vasos e folhas em fase de secagem, f. 62 -, mostrando, nitidamente, comércio, não tem como justificar a situação”221 desconsideram as especificidades do cultivo de canábis. Pior, estas afirmações são utilizadas para fundamentar decisões que trazem graves consequências à vida e à liberdade dos indivíduos.

Além destas questões sobre produtividade do cultivo, para determinar a finalidade de consumo pessoal é necessário discutir concretamente os padrões de consumo222 do indivíduo.

Aqui também a maior parte dos acórdãos analisados abordou a noção de padrões de consumo de modo bastante superficial. Prevaleceram decisões que traçam associações entre as expectativas críveis ou razoáveis do magistrado sobre padrões de consumo sem qualquer referência às circunstâncias individuais do usuário:

O conjunto probatório figura harmonioso, já que as afirmações dos agentes da lei e a confissão encontram-se em sintonia com as demais provas colhidas, em especial a apreensão de 07 (sete) vasos de maconha encontrados na residência, tornando inconteste a responsabilidade de André pelo crime tráfico de drogas.

A natureza da droga (maconha) e as circunstâncias em que se deram a prisão justificam o reconhecimento do narcotráfico, visto que, apesar do acusado André não ter sido surpreendido comercializando o tóxico, foi encontrada expressiva quantidade da droga sendo cultivada em 07 (sete) vasos. Observo que o fato das plantas estarem em estágio inicial de crescimento, como mencionando no depoimento dos policiais, não o exime do crime de tráfico, pois a expressiva quantidade de droga encontrada, que é capaz de, em pouco tempo, após sua colheita e preparação, difundir a substância nos mais diversos meios sociais, é incompatível com a tipificação de usuário prevista no artigo 28, § 1º da Lei nº 11.343/06.223 (grifamos)

E a destinação a terceiros mercantil ou não evidencia-se pela quantidade de material apreendido. Não é crível nem razoável que alguém, procurando manter seu vício sem precisar adquirir drogas de traficantes, mantenha em sua residência tamanha quantidade de plantas e petrechos para industrialização artesanal, indicativo de que a

221 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9088613-67.2005.8.26.0000. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Luis Soares de Mello. São Paulo, SP, j. 28 de agosto de 2007.

222

Sobre a noção de padrões de consumo, cf. SMART & WHITEHEAD, 1972: 39-47; BABOR, 1975; LIMA FILHO, 2010; GARCIA, 2013.

223 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0002980-19.2010.8.26.0470. 6ª

Câmara Criminal. Relator: Marco Antonio Marques da Silva. São Paulo, SP, j. São Paulo, SP 26 de setembro de 2013.

destinação do material só pode ser o fornecimento ao consumo de terceiros.224 (grifamos)

Não bastasse, tendo em vista a natural deterioração do produto em decorrência de armazenamento, o preço das drogas e a facilidade de aquisição delas, não é lógica a conclusão de que um mero usuário tenha consigo mais do que o necessário para consumo em curto espaço de tempo.225 (grifamos)

Alguns argumentos contrariam inclusive o bom senso: é justamente em razão da sua condição de viciado em maconha que um indivíduo cultivaria grandes quantidades de plantas para “manter seu vício sem precisar adquirir drogas de traficantes”. Aliás, todo o propósito do plantio recreativo da canábis é poder produzir quantidades de droga suficientes para períodos maiores de tempo.

Além disso, é problemática a afirmação de que um “mero usuário” não guarda consigo mais droga “do que o necessário para consumo em curto espaço de tempo”. A assertiva poderia se justificar no contexto da tipificação da posse de drogas prontas, mas não no contexto do cultivo de canábis. Os usuários que decidem plantar buscam otimizar a produção para que consigam estocar a droga produzida e não mais ter de recorrer ao mercado ilícito (POTTER, et. ali., 2014: 264-268).

Outras decisões parecem confundir padrões de consumo de drogas com padrões de vida, como é evidenciado no trecho abaixo:

Conforme também, de forma perspicaz, salientado pelo representante do Ministério Público (fls. 139), ‘Curioso que, segundo as declarações do

apelado, o valor em dinheiro encontrada em sua casa era do sogro. E como nenhuma outra quantia em dinheiro foi apreendida, é de se estranhar que em plena segunda-feira de manhã, por volta das 10h00, o recorrido e sua companheira estivessem ainda dormindo, sem nenhuma preocupação aparente com a obtenção de dinheiro para o sustento da casa’. Assim, o conjunto probatório releva a ocorrência do crime de

tráfico (...)226 (destaques do texto original)

O trecho acima claramente aponta para um dos problemas da não especificação de parâmetros de quantidade para a definição do usuário e do traficante de drogas. A ausência de explicitação sobre os critérios para as quantidades de droga abre espaço para que

224 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0111498-34.2012.8.26.0050. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Edison Brandão. São Paulo, SP, j. 12 de agosto de 2014.

225 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9195542-85.2009.8.26.0000. 5ª

Câmara Criminal. Relator: Marcos Zanuzzi. São Paulo, SP, j. 25 de fevereiro de 2010.

226 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0000125-07.2006.8.26.0115. 12ª

considerações sobre a vida pessoal dos indivíduos sejam utilizadas na fundamentação da tipificação penal.

Há ainda outro aspecto essencial para a determinação do elemento subjetivo do tipo que diz respeito à intersecção entre as características do cultivo e os padrões de consumo do usuário.

Vimos que o ciclo de cultivo da canábis dura de 4 a 10 meses, a depender de inúmeros fatores, muitos dos quais não podem ser controlados no âmbito do cultivo ilegal. O indivíduo que decide cultivar a própria canábis o faz para evitar a aquisição pelo mercado ilegal. Muitas vezes os frutos de um plantio são pensados para durar até que novo ciclo de plantio se complete, de modo que seja possível consumir a droga sem recorrer ao tráfico.

Ainda que assumíssemos que todos os cultivos tenham a menor duração possível para o ciclo das plantas, a expectativa é a de que se produza droga suficiente para ser consumida em no mínimo quatro meses. Este planejamento do cultivo é diretamente impactado pela capacidade produtiva das plantas e está intrinsecamente relacionado com os padrões individuais de consumo do usuário (DECORTE, 2010; HAMMESVIK et ali, 2012: 458-464; POTTER, et. ali., 2014: 268).

Mesmo nos poucos acórdãos em que há referência às alegações do réu sobre seu padrão de consumo de canábis a questão foi enfrentada com fórmulas gerais:

A autoria também é certa, pois, em pretório, os apelantes admitiram que as plantas e as drogas apreendidas no local dos fatos lhes pertenciam, aduzindo, porém, que se destinavam ao próprio consumo. Sedrek disse ser dependente químico há quinze anos. A plantação pertencia a ambos e a balança apreendida era utilizada para a exata divisão das drogas entre eles. Assim, economizaram dinheiro e evitavam passar por constrangimento no ponto de venda. Os vasos estavam numerados para

o controle da produção, pois colhiam dois pés por mês. Cultivaram,

inicialmente, uma planta que lhes rendeu aproximadamente 30 gramas

de maconha, com os quais confeccionaram cerca de quinze cigarros,

que foram consumidos ao longo de uma semana. As demais drogas apreendidas também lhes pertenciam. Consome cerca de 10 a 15

gramas de maconha por dia, mas em nada interfere no seu trabalho.

Trabalhava das 8 às 12h30 e das 13h30 às 17h30, de segunda a sábado, e recebia cerca de R$ 1.500,00 mensais, mas quando foi preso, seu salário chegava a R$ 3.000,00. Estava regularmente matriculado no curso de propaganda e marketing da UNIP. O veículo lhe pertencia, mas era usado somente para o trabalho. A empresa em que trabalha é da esposa de seu pai. A balança foi encontrada na estante de livros e não no carro. Esteve internado para tratar o vício em 2006, por seis meses. Rodrigo contribuía com o aluguel do imóvel. As sementes foram separadas de um tablete, adquirido na boca. O restante das drogas havia

sido adquirido a cerca de uma semana. Adquiriram um livro em um sebo na cidade de Campinas, que ensinava o cultivo de maconha para o próprio consumo. Possuíam apenas um pé pronto para o consumo.

Adquiria caixas de papeis de boa qualidade, para preparar os cigarros.

Todavia, esses relatos não convencem e não se coadunam com demais elementos de convicção coligidos, os quais, ao reverso, confirmaram - na íntegra - os termos da inicial acusatória e evidenciaram a configuração do crime de tráfico (...)227 (destaques do texto original)

O argumento lançado no acórdão chama atenção porque a defesa do réu fornece explicações específicas para cada aspecto narrado na denúncia e submete ao tribunal argumentos relativos à capacidade de produção das plantas e ao padrão de consumo do acusado. No entanto, afirma-se no acórdão que “esses relatos não convencem”, fundamentando-se o não convencimento na fórmula geral de que “não se coadunam com demais elementos de convicção coligidos”. Não há, contudo, nenhuma explicitação no acórdão sobre quais seriam estes demais elementos de convicção.

O único conceito relacionado aos padrões de consumo de drogas que foi utilizado nas decisões é o de dependência.

No caso, indiscutível a condição de viciado do réu e não sendo exagerada a plantação, pode-se perfeitamente admitir que a conduta do réu se enquadra no referido artigo 28, parágrafo segundo, da Lei 11 343, de 23 de agosto de 2006.228

Assim, toda a prova dos autos incrimina o apelante, com segurança, pelo delito de tráfico de entorpecentes descrito na exordial, o qual gerou a condenação ora combatida. Foi instaurado incidente de dependência toxicológica, havendo a conclusão de que o apelante não apresenta quadro de dependência de drogas, não tendo, portanto, sua capacidade de entendimento alterada ou reduzida em relação ao tráfico.229

Indagado acerca da ilícita posse, admitiu a propriedade e asseverou que a finalidade era para consumo próprio (fl.58). Disse que era viciado, entretanto, tal escusa vem desmentida pelo exame de dependência toxicológica que concluiu não ser ele viciado (fls. 29/31 do apenso).230

227 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0052020-39.2008.8.26.0114. 5ª

Câmara Criminal. Relator: Juvenal Duarte. São Paulo, SP, j. 20 de maio de 2010.

228 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9120383-78.2005.8.26.0000. 2ª

Câmara Criminal. Relator: Ivan Marques. São Paulo, SP, j. 03 de novembro de 2008.

229 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9125404-40.2002.8.26.0000. 1ª

Câmara Criminal Extraordinária. Relator: Marco Antonio. São Paulo, SP, j. 25 de junho de 2003.

230 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9228279-54.2003.8.26.0000. 2ª

Acrescento que frequentemente os usuários passam também a comercializar entorpecentes, justamente para obter dinheiro e garantir seu vício e o próprio sustento.231

Estes acórdãos refletem um problema que se tem atribuído à Lei de Drogas: a medicalização do usuário de drogas (CARVALHO, 2010: 14-15). Duras críticas têm sido lançadas à forma como a lei aproxima as figuras do usuário de drogas recreativas e do dependente (BIZZOTO, et. ali., 2010: 2-5)232.

Algumas decisões parecem ter como premissa a associação entre o usuário e o dependente químico:

E não há que se falar em desclassificação da conduta para a forma de porte de drogas para consumo próprio, tendo-se em conta, repita-se, a enorme quantidade de droga apreendida, da qual compunha inclusive sementes da planta, além do que a perícia médica a que foi submetido o acusado, no incidente de dependência toxicológica juntado as fls. 37/38 do 5º apenso ao primeiro volume, dá conta de que o recorrente não apresentava sinais de dependência de drogas, como também foi hábil a comprovar que se trata ele de pessoa plenamente imputável.233

Nenhum dos acórdãos, por exemplo, refere-se ao conceito de tolerância fisiológica ao consumo de drogas (BABOR, 1975: 1548-1552; JONES et ali., 1976: 221-239; LICHTMAN & MARTIN, 2005: 691-717). Usuários frequentes de maconha em geral possuem organismos mais tolerantes aos efeitos dos canabinoides, o que induz o consumo de quantidades maiores.

Por estas e outras razões é que se disputa cientificamente se é possível ou não afirmar que existe dependência de maconha (ROSELLI et ali., 2005: 248)234. A utilização dos “laudos de dependência toxicológica” a que se referem alguns acórdãos, portanto, é

231 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0000725-16.2012.8.26.0439. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Edison Brandão. São Paulo, SP, j. 25 de junho de 2013.

232

Santoucy et ali. (2010: 176-185) conduziram uma pesquisa empírica com operadores do sistema de justiça criminal do Distrito Federal que dialoga diretamente com este problema. Os autores afirmam que há uma percepção generalizada dentre os agentes do sistema de justiça criminal de que o consumo de drogas está geralmente associado à dependência e a condições médicas dos usuários. Alguns dos acórdãos do nosso corpus parecem apontar para o mesmo sentido.

233 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0009116-64.2007.8.26.0073. 8ª

Câmara Criminal. Relator: Marco Antônio Cogan. São Paulo, SP, j. 18 de outubro de 2012.

234 Em seu site, o médico brasileiro Drauzio Varella disponibiliza uma entrevista em que ele discute a

controvérsia científica que existe sobre a dependência de maconha. Na entrevista, Drauzio Varella ressalta que a individualidade dos padrões de consumo da droga é muito elástica, de modo que é difícil estabelecer cientificamente os patamares da dependência. A questão é altamente controvertida nas áreas médicas. A entrevista está disponível no link: http://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/maconha/. Acesso: 12/01/2016.

problemática em si mesma. No plano teórico não há consenso científico sobre a aplicabilidade do conceito de dependência ao consumo de maconha. Isso implica reconhecer a fragilidade da utilização dos laudos no processo penal para determinar se os acusados são ou não dependentes de maconha.

A forma como foram abordadas as questões sobre padrões de consumo dos acusados revela mais sobre as percepções dos magistrados do que sobre os padrões em si. Mais: a fundamentação dos acórdãos do nosso corpus revelou mais sobre as concepções dos juízes sobre características de cultivo e consumo de canábis do que sobre critérios de determinação da finalidade nos delitos de plantio.

5.2 Condições em que se desenvolveu a ação, antecedentes, circunstâncias e conduta do