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5. A fundamentação da tipificação do plantio de canábis: definindo

5.1 De que quantidade estamos falando?

5.2.1 Conduta do agente e o direito à não-incriminação

A conduta do agente também foi referida em poucas decisões. Alguns acórdãos mencionaram a conduta do réu nos interrogatórios policial e judicial e avaliaram negativamente o exercício do direito ao silêncio:

Preso e autuado em flagrante, o apelante, já à primeira hora, assumiu comprometedora postura silente, quando é certo que aquele que se vê injustamente acusado trata, logo, de anunciar a injustiça da acusação, se convidado a falar sobre ela. Como, então, acabassem apreendidos os três pés da erva alucinógena encontrados em sua residência, tudo isso já compunha quadro bastante significativo a propósito da realidade da imputação.

Em juízo, por outro lado, embora sobrevindo a costumeira negativa de autoria, o apelante foi comprometido pelo que testemunhou sua cunhada Maria Luiza de Almeida (fls. 73), que, embora sem confirmar tratar-se de maconha a erva plantada na residência, não deixou de reconhecer a realidade da apreensão dela por ali acontecida, enfatizando, até, que o réu usava aquilo para fazer chás247 (grifamos)

245 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0055329-71.2005.8.26.0050. 6ª

Câmara Criminal. Relator: José Raul Gavião de Almeida. São Paulo, SP, j. 20 de outubro de 2011.

246

Sobre a noção de seletividade do sistema de justiça criminal, cf., dentre muitos outros: BIANCHINI, 2000: 51-64; WACQUANT, 2001: 401-412; WACQUANT, 2010: 197-220; CONTRUCCI, 2010: 181-208; GUIMARÃES & REGO, 2012; MONTEIRO & CARDOSO, 2013: 93-117; LEMOS, 2015: 51-62.

247 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9036715-54.2001.8.26.0000.2ª

Nenhum homem inocente, podendo falar, prefere o silêncio para defender-se de injusta acusação. Se permaneceu calado, ainda que direito seu garantido pela Constituição da República (art. 5º, nº LXIII), dificilmente se eximirá de juízo adverso’ (TJSP - Apelação Criminal nº 9154735- 91.2007.8.26.0000 - 5ª Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. Carlos Biasotti j. 06/11/2008). ‘Muito embora o silêncio do interrogando seja uma faculdade procedimental, é difícil acreditar que alguém, preso e acusado de delito grave, mantenha- se calado só para fazer uso de uma prerrogativa constitucional’ (RJTACrimSP, vol. 36, p. 325; rel. José Habice) (...)

Ora, se o réu era mero usuário de drogas, difícil entender porque não tenha ofertado tal versão na delegacia de polícia, ainda que lhe seja facultado o direito ao silêncio, pois estava sendo acusado de delitos de extrema gravidade. Assim, ainda que o silêncio não possa ser interpretado em desfavor do réu e não é hábil, por si só, a ensejar a condenação, nada impede que seja pontuado em cotejo com os demais elementos de convencimento.248

Aquilo que é referido na decisão como “comprometedora postura silente” do réu é conhecido na dogmática penal como exercício do direito fundamental à não-incriminação (MORGAN, 1949; DOLINKO, 1985: 1063; FAYOS GARDO, 1993: 284-293; MONTÓN REDONDO et ali., 1995: 199). O direito ao silêncio está expressamente previsto no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal249 e no art. 186 do Código de Processo Penal250.

Ainda mais problemática é a assertiva expressa de que se o acusado “permaneceu calado, ainda que direito seu garantido pela Constituição da República (art. 5º, nº LXIII), dificilmente se eximirá de juízo adverso”. Essa afirmação esvazia completamente a área de

248

Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0000725-16.2012.8.26.0439. 4ª Câmara Criminal. Relator: Edison Brandão. São Paulo, SP, j. 25 de junho de 2013.

249 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”

250

“Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)”

proteção251 do direito à não-incriminação à medida que implicitamente reconhece o silêncio enquanto atributo de culpa252.

Além disso, o parágrafo único do art. 186 do Código Penal prevê expressamente que o silêncio “não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”253

. A afirmação de que, quanto ao silêncio, “nada impede que seja pontuado em cotejo com os demais elementos de convencimento”, portanto, é contrária à determinação legal de que o silêncio não pode ser utilizado para prejudicar a situação do réu.

A existência de uma regra expressa que proíbe a interpretação do silêncio como “postura comprometedora” é vista na doutrina penal como uma medida destinada à efetivação do direito ao silêncio254. É justamente nesse sentido o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que “nenhuma conclusão desfavorável à situação individual da pessoa que invoque essa cláusula de tutela poderá ser extraída de sua válida e legítima opção pelo silêncio”255.

Importa aqui indicar que a noção de “conduta do agente” foi pouco utilizada enquanto elemento para tipificação penal no nosso universo de análise. Prevaleceu no universo de análise uma concepção de conduta processual do agente, com poucas referências à conduta social.

Nos casos raros em que houve menção à conduta social do agente, a questão foi tratada a partir das considerações individuais dos magistrados sobre o comportamento dos indivíduos. Nesse sentido é que se lançaram afirmações como: “é de se estranhar que em plena segunda-feira de manhã, por volta das 10h00, o recorrido e sua companheira estivessem ainda dormindo, sem nenhuma preocupação aparente com a obtenção de dinheiro para o sustento da casa”256. O sentido que é dado ao comportamento do acusado é atrelado à

251 Sobre o conceito de área de proteção, cf. ALEXY, 2008b: 301-321; DIMOULIS & MARTINS, 2007: 136-

141.

252 Sobre as consequências do exercício do direito ao silêncio, cf. RATNER, 1957: 472-511; MCNAUGHTON,

1960.

253 O parágrafo único do art. 186 do Código Penal foi incluído pela Lei nº 10.792 de 1 de dezembro de 2003. 254

Neste sentido, cf. NUCCI, 1999: 431; TOURINHO FILHO, 2009: 279.

255 A questão foge do escopo do nosso trabalho, mas vale indicar que a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal é uníssona ao reconhecer que “o réu não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu “status poenalis” ou que atinjam a sua esfera jurídica”. Neste sentido, cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 80.494/MS. Autoridade Coatora: Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF, 6 de novembro de 2001.

256 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0000125-07.2006.8.26.0115. 12ª Câmara

finalidade de tráfico da situação de cultivo. A referência ao horário em que o réu acorda com a consideração de que seria incompatível com quem se preocupa com o “sustento da casa” é altamente problemática. Há antes um pré-juízo, e não um juízo, sobre a conduta social do agente.