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4. Resultados da pesquisa empírica

4.1 Algumas considerações sobre os acórdãos anteriores à

Foram lidos e fichados 67 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo proferidos antes do dia 08 de outubro de 2006, data em que a Lei nº 11.343/06 entrou em vigor. O acórdão mais antigo disponibilizado no repertório online de jurisprudência do TJSP foi julgado em 03/11/1997 e o último acórdão julgado antes da vigência da nova Lei de Drogas foi julgado em 25/09/2006. O universo de análise desta pesquisa, portanto, é composto acórdãos proferidos em um período de oito anos e onze meses.

Todos estes casos foram julgados à luz dos dispositivos da Lei nº 6.368/76. Em especial, a tipificação do cultivo de canábis remete aos artigos 12, §1º, II116 e 16117 da lei. A figura do cultivo de plantas para preparação de drogas era tipificada expressamente pela lei apenas no art. 12, §1º, II, sendo-lhe atribuída a mesma pena aplicável ao tráfico de drogas. O delito de porte para consumo era tipificado no art. 16 da lei sem qualquer referência ao cultivo.

Diante deste repertório normativo, três entendimentos principais sobre a interpretação dos dispositivos da Lei nº 6.368/76 eram apresentados pela doutrina (JESUS, 2010: 49; GOMES, 2006: 130; FREITAS JÚNIOR, 2006: 42-43).

O primeiro deles defendia uma interpretação dos dispositivos de modo a entender que qualquer situação de cultivo de plantas destinadas à preparação de drogas deveria ser tipificada como tráfico de drogas, incidindo o disposto no art. 12, §1º, II da lei (FREITAS JÚNIOR, 2006: 43; JUNQUEIRA, 2013: 222). Assim, independentemente de qualquer

116 “Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou

oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:

I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda ou oferece, fornece ainda que gratuitamente, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima destinada a preparação de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.”

117 “Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine

dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa.”

característica do plantio ou do agente, todo cultivador deveria ser tipificado como traficante. Este primeiro entendimento prevaleceu no Superior Tribunal de Justiça118.

O segundo entendimento foi construído a partir da ideia de que o direito penal admite excepcionalmente a analogia in bonam partem em benefício do réu (ROXIN, 2007: 158; MIR PUIG, 2007: 292-296)119. O argumento é o de que diante de uma lacuna normativa é admitido ao operador do direito promover a aplicação analógica de dispositivos em favor do réu (MIRABETE & FABRINI, 2010: 30; PRADO, 1996: 541-548).

Tendo em vista que a Lei nº 6.368/76 tipificou a figura do cultivo em um parágrafo dentro de um artigo, parte da doutrina penal entendeu que os dispositivos (art. 12 caput e §1º, II) deveriam ser interpretados conjuntamente. Assim, a tipificação do plantio enquanto modalidade do tráfico de drogas dependeria necessariamente da comprovação do dolo específico de destinação da droga a fornecimento para terceiros. Não bastaria, portanto, a atribuição do plantio ao agente. Seria necessário comprovar que o plantio se destinava a fornecimento para terceiros.

Este entendimento parte da premissa de que o dolo específico compõe o elemento subjetivo do tipo penal do tráfico de drogas. Desta forma, se é exigida a finalidade de fornecimento a terceiros para caracterizar o tráfico na modalidade porte, deve-se exigir a mesma finalidade para caracterizar o tráfico na modalidade plantio.

De outro lado, se não se comprovar a destinação a terceiros ou, ao contrário, se for comprovado que o plantio se destina a consumo próprio, deve-se aplicar analogicamente o disposto no art. 16 da Lei nº 6.368/76, tipificando-se a conduta como porte para consumo

118 Neste sentido, conferir os seguintes precedentes da Quinta e da Sexta Turma do STJ:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 47.495. Origem: Tribunal de Justiça de Tocantins. Quinta Turma. Relator: Ministro Felix Fischer. Brasília, DF, julgamento em. 13/12/2005.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 509.959. Origem: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Quinta Turma. Relator: Ministro Felix Fischer. Brasília, DF, julgamento em 06/05/2004. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 316.617. Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Relator: Ministro Felix Fischer. Brasília, DF, julgamento em 26 de novembro de 2002.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 401.184. Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Sexta Turma. Relator: Ministro Paulo Medina. Brasília, DF, julgamento em14 de outubro de 2003. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 210.484. Origem: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Sexta Turma. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília, DF, julgamento em 10 de abril de 2001.

119 Sobre a analogia em benefício do réu, Mir Puig (2005: 125) adverte: “Quando favorecer o réu (analogia in bonam partem) não chocará, ao contrário, com o sentido de limite garantidor que possui o texto legal: esse

limite só busca garantir ao cidadão que não poderá ser afetado por uma pena que não estava prevista na letra da lei, e não que não possa ser menos punido, ou até isento de pena, se a lei não o previr literalmente” (tradução livre). A analogia in bonam partem, nesse sentido, opera como uma ampliação da área de proteção do princípio fundamental nulla poena sine lege. A garantia da literalidade da lei penal só pode ser flexibilizada quando a analogia ampliar o seu escopo.

pessoal. Daí a analogia in bonam partem: se a lei distingue a tipificação dos casos de porte de drogas a partir da finalidade, o mesmo deve ser feito para distinguir os casos de plantio, que são nada menos que uma modalidade específica de porte.

Muito embora essa interpretação tenha sido bastante contemplada no âmbito das Justiças Estaduais120, a orientação majoritária do Superior Tribunal de Justiça era no sentido de reconhecer ser prescindível a comprovação da finalidade específica de tráfico nos casos de cultivo121.

Por fim, um terceiro entendimento também foi defendido na doutrina e nos tribunais brasileiros. Esta terceira corrente defende que o plantio para consumo pessoal era figura materialmente atípica sob a égide da Lei nº 6.368/76 (JESUS, 2001: 50; CAPEZ, 2006: 702). O argumento também parte da premissa de que o plantio a que se refere o art. 12, §1º, II da lei é uma modalidade específica de tráfico de drogas, exigindo-se para sua tipificação a comprovação da existência do elemento subjetivo do tipo, qual seja a finalidade de fornecimento da droga a terceiros.

No entanto, escorados no art. 5º, XXXIX da Constituição Federal122 e no art. 1º do Código Penal123 os patronos desta terceira corrente argumentam que não é possível aplicar a analogia in bonam partem às normas incriminadoras porque apenas a lei pode tipificar um

120 Marcão (2004: 218-219) afirma que esse segundo entendimento foi o que prevaleceu, de modo geral, nos

tribunais brasileiros: “É majoritária a corrente jurisprudencial que, a despeito da omissão da Lei n. 6.368/76, que não prevê no art. 16 as condutas de semear, cultivar ou colher para uso próprio, plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determine dependência física ou psíquica, entende ser aplicável a interpretação in bonam partem, ampliando o alcance da norma”. No mesmo sentido, cf. ANDREUCCI, 2007: 48.

121 Houve, no entanto, ao menos uma oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça se manifestou em

favor da possibilidade de aplicação analógica do art. 16 da Lei nº 6.368/76 aos casos de cultivo para consumo pessoal. Neste sentido, cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 60.674. Origem: Tribunal de Justiça do Paraná. Sexta Turma. Relator: Ministro Luiz Vicente Chernicchiaro. Brasília, DF, julgamento em 15 de agosto de 1995. Vale a informação: este precedente do STJ foi julgado pela Sexta Turma, que acabou mudando seu entendimento após os anos 2000. Em 1995, quando do julgamento do Recurso Especial nº 60.674, participaram da sessão e acompanharam o relator os Ministros Vicente Leal, Adhemar Maciel e Anselmo Santiago. Os Ministros Maciel e Santiago aposentaram-se em novembro de 1998 e o Ministro Chernicchiaro aposentou-se em 02/08/1999. Em 2001 a composição da Sexta Turma havia mudado completamente: passaram a integra-la os Ministros Felix Fisher, Hamilton Carvalhido e Paulo Medina, que capitanearam a mudança de orientação da Turma a respeito da interpretação do art. 12, §1º, II, da Lei nº 6.368/76.

122 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”

123

crime (ARÁN & CONDE, 2000: 132-133; HASSEMER, 2005: 353; ROXIN, 2007: 149)124. Assim, considerando que a tipificação do plantio para fins de tráfico exigiria a comprovação do dolo específico de destinação a terceiros, o plantio para consumo próprio seria fato atípico.

À luz destes três entendimentos avaliamos ser importante para a pesquisa investigar concretamente como os magistrados os interpretavam e os aplicavam durante a vigência da Lei nº 6.368/76. Afinal, além de aspectos teóricos, como o cabimento ou não da analogia in bonam partem com relação às normas que criam tipos penais, a finalidade do cultivo se mostrou um fator relevante na aplicação da lei. E é, grosso modo, justamente isso que esta pesquisa se dispõe a investigar: o que determina se o cultivo é destinado ao tráfico ou ao consumo pessoal?

Desta forma, buscamos identificar nas 67 decisões lidas qual o entendimento manifestado pelos juízes sobre a interpretação dos artigos 12, §1º, II e 16 da Lei nº 6.368/76. Além disso, buscamos identificar nos casos em que as duas últimas correntes predominaram quais os elementos foram utilizados pelos magistrados na fundamentação das decisões que tipificavam determinada situação de plantio como tráfico de drogas ou como porte para consumo.