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5. A fundamentação da tipificação do plantio de canábis: definindo

5.4 O conjunto probatório

5.4.1 Prova indiciária e induções

Prevaleceu a prova indiciária267 para fundamentar a cognição sobre a destinação do cultivo, quase sempre calcada em depoimentos de policias e testemunhas que se limitaram a atestar fatos secundários268.

267 Sobre o conceito de prova indiciária, cf. MALUF, 1984: 192-223; COELHO, 1996; RODRIGUES SANTOS, 2011: 64-71.

268 Aqui referimo-nos a fatos secundários em relação aos fatos juridicamente relevantes, cuja comprovação está

em disputa no processo. Concebemos, portanto, os fatos secundários enquanto “partículas do fato principal” (NUCCI, 2009: 126). O conjunto de indícios sobre fatos secundários é o que deve ser considerado na formação de um panorama geral da imputação.

Nos termos do art. 239 do Código de Processo Penal, o indício é definido como “a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Ou seja, indícios são informações que permitem a conexão lógica com a existência ou não de um fato - são “o dedo que mostra um objeto” (MITTERMAIER, 1997: 323).

Assim, assumindo uma concepção geral da prova como sendo relacionada à convicção da certeza sobre algum aspecto da realidade (NUCCI, 2009: 13; GASCÓN ABELLÁN, 2010: 76), o indício é uma circunstância que aponta para a existência deste aspecto da realidade.

É possível afirmar que há dois grandes aspectos fáticos que precisam ser provados: a autoria, ou seja, a conexão entre o fato e o sujeito, e a chamada “materialidade”, que diz respeito à existência do fato em si. No caso das situações de cultivo, há ao menos três provas que precisam ser produzidas: prova de que o cultivo existe, prova de que o cultivo é de canábis e a prova da destinação (consumo ou tráfico) das plantas.

Muito embora a tipificação penal das situações de cultivo englobe diversos aspectos de um mesmo conjunto fático, focalizamos nossa observação e nossa discussão na determinação da finalidade do plantio. Em outras palavras, o aspecto da realidade cuja prova nos interessa é um “fato psicológico”, refere-se ao que o indivíduo intentava fazer ou não fazer com as plantas de canábis. Assim, buscamos identificar quais elementos foram apontados como prova de que uma situação de cultivo era destinada a consumo pessoal ou ao fornecimento de drogas a terceiros.

É possível entender os elementos previstos no §2º do art. 28 da Lei de Drogas (e no antigo art. 37 da Lei nº 6.348/76) como indícios potenciais. Isso significa que estes elementos, quando empiricamente presentes, constituem indícios que devem ser considerados para a comprovação da finalidade de consumo ou tráfico.

Nas seções anteriores afirmamos as circunstâncias de apreensão de plantas, drogas e “materiais” foram vistas como indícios que apontam ou para a finalidade de tráfico ou para a de consumo. Se o fato que buscamos compreender é a finalidade, estes indícios são os dedos que apontam para a intencionalidade do sujeito.

O que mais nos chamou atenção foi a apresentação dos raciocínios “lógico-indutivos” (GASCÓN ABELLÁN, 2010: 73) sobre a conexão entre os indícios e o fato psicológico. Alguns exemplos ajudam a concretizar essa questão:

[o]bservo que o réu tinha em sua estufa improvisada nada menos que seis vasos (3 pequenos e 3 grandes), os quais serviriam certamente para receber sementes da planta, a indicar que a sua conduta não se dirigia a semear planta somente para si mesmo.269

E a destinação a terceiros mercantil ou não evidencia-se pela quantidade de material apreendido. Não é crível nem razoável que alguém, procurando manter seu vício sem precisar adquirir drogas de traficante, mantenha em sua residência tamanha quantidade de plantas e petrechos para industrialização artesanal, indicativo de que a destinação do material só pode ser o fornecimento ao consumo de terceiros.270

Vale explorar os exemplos em maior detalhe. No primeiro caso, o indício é a existência de uma estufa improvisada com seis vasos vazios. A conexão feita é a de que esta circunstância indica a finalidade de tráfico.

No segundo caso, os indícios são a existência de plantas de canábis (no caso, 7 plantas) e “petrechos para industrialização artesanal” – seja lá o que isso possa significar. A partir destes indícios são feitas duas conexões. A primeira delas é a de que estas circunstâncias não indicam que o indivíduo possa ter plantado canábis para seu próprio consumo. A segunda delas é de que as circunstâncias indicam que a finalidade “só pode ser o fornecimento ao consumo de terceiros”.

Discutimos anteriormente a fragilidade empírica dessas conexões à luz de um repertório de conhecimento multidisciplinar sobre o cultivo de canábis. Aqui é importante apontar a fragilidade jurídica destas conexões feitas.

Uma distinção útil é entre indícios imediatos e indícios mediatos. Nas palavras de Mittermaier (1997: 325):

Os indícios podem ser divididos em dois tipos: os imediatos e os mediatos. O primeiro aponta diretamente ao fato que deseja e acredita ser o objeto decisivo, sem que, para isso, necessite de pistas. O segundo, por sua vez, forma, no seu tempo, uma cadeia de fatos que, quando sólidos, apontam, por fim, ao desfecho requerido, sendo este último o mais frágil dos tipos de indício.

À parte quaisquer discussões sobre a correção da terminologia, esta distinção é importante para nós porque remete às diferentes direções e sentidos que os indícios podem

269 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0048705-69.2006.8.26.0050. 9ª

Câmara Criminal. Relator: Souza Ney. São Paulo, SP, j. 24 de setembro de 2008.

270 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0111498-34.2012.8.26.0050. 4ª

assumir (SALAVERRÍA, 2014: 146-147). A ideia é que alguns indícios imediatos podem ter valor probatório suficiente, ao passo que os indícios mediatos devem ser integrados em um conjunto de outras circunstâncias para que possam ter valor probatório significativo (VERRINA, 2012: 394).

Pensemos em dois exemplos de materiais apreendidos nos casos que discutimos anteriormente: balança de precisão e prensador de maconha. Vimos que alguns acórdãos entenderam estes dois materiais igualmente como indícios imediatos de tráfico. Essa associação imediata, no entanto, é feita sem suporte no repertório de conhecimento sobre o cultivo e o consumo de canábis.

Se entendermos a balança de precisão como indício – o dedo -, devemos nos perguntar para qual direção e sentido ele aponta. Podemos afirmar que a balança de precisão aponta na direção da existência de uma situação de cultivo mais “profissionalizada”. Entendemos, contudo, que este indício não aponta necessariamente para um cultivo profissional para fins de tráfico. É comum a utilização de balanças de precisão em qualquer situação de cultivo, para consumo ou tráfico. Para que seja possível afirmar a existência da finalidade, entendemos ser necessário avaliar outros indícios que possam apontar na direção e sentido da existência da finalidade de tráfico.

Por outro lado, o indício do prensador de maconha possui valor probatório muito mais significativo no contexto das situações de cultivo de canábis271. Este indício aponta na direção e sentido da existência da finalidade de tráfico: a prensagem é altamente incomum dentre os cultivadores de canábis que o fazem para consumo próprio. No entanto, o prensador de maconha persiste sendo um indício à medida que não podemos afirmar com mínima certeza que o destino das plantas era produzir drogas para fornecimento a terceiros. Nada impede que o indivíduo prense sua própria maconha, por quaisquer motivos que sejam. É apenas algo altamente improvável.

É possível conceber nos nossos exemplos o prensador enquanto indício imediato de tráfico e a balança enquanto indício mediato. O ponto importante é a diferença do ônus argumentativo na fundamentação das decisões que incorporam estes elementos para a tipificação penal.

Outro trecho elucida esse ponto:

271 É importante frisar que nossa afirmação é completamente contextualizada dentro da realidade do cultivo de

canábis. Vimos que os growers que cultivam para consumo pessoal não costumam prensar as flores da canábis porque a prensagem compromete fortemente a qualidade, a potência e o gosto da maconha.

Quem é apanhado em pleno "iter criminis", como aqui, cultivando entorpecente - maconha - em sua própria residência, em fartíssima quantidade - mais de 10 kg (!!), entre árvores, arbustos em vasos e falhas em fase de secagem, f 62 -, mostrando, nitidamente, comércio, não tem como justificar a situação. Não há explicação razoável ou verossímil para tal porte de entorpecente, senão aquele que o entenda destinado ao comércio. Fugir desta realidade é fechar os olhos ao óbvio e desprezar o bom-senso. Essa certeza visual, evidente e cristalina dos acontecimentos, então, consubstanciada na flagrância delitiva, e na perfeita e bem realizada operação da Polícia Militar, é marco indelével de autoria.272

Aqui novamente é possível identificar um indício mediato interpretado como imediato, gerando uma “conexão lógica” o a existência da finalidade de tráfico. A afirmação de que “não há explicação razoável ou verossímil para tal porte de entorpecente, senão aquele que o entenda destinado ao comércio” assume que o indício – “10kg entre árvores, arbustos em vasos e folhas em fase de secagem” – como sendo imediatamente relacionado à intenção de tráfico.

Há uma questão altamente preocupante decorrente desta abordagem. A interpretação de indícios mediatos como sendo imediatos reduz o ônus argumentativo do julgador e favorece a utilização da retórica – na acepção grega clássica do termo, referindo-se à eloquência enquanto elemento de persuasão273. Isso significa que, no contexto da fundamentação das questões fáticas a lógica indutiva que circunscreve os indícios é substituída pela gramática da eloquência e da persuasão.

São muitos os problemas que disso podem decorrer. Retomemos duas premissas que discutimos neste trabalho: (i) a prova conecta-se com a convicção do magistrado sobre a certeza de um fato (ainda que psicológico); e (ii) a motivação consiste na explicitação das razões de convencimento do juiz, englobando a forma pela qual se enxerga a relação entre as provas e os fatos e a subsunção das normas jurídicas a estes fatos.

272 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9088613-67.2005.8.26.0000. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Luis Soares de Mello. São Paulo, SP, j. 28 de agosto de 2007.

273 Aqui nos referimos à acepção geral de retórica, cuja origem se atribui à Grécia antiga e cuja fama foi

propagada pelos filósofos sofistas. Platão (1989: 62) define a retórica como “a arte da persuasão exercida nos tribunais e nas outras assembleias a propósito daquelas coisas que são justas e injustas”. Contrapomos essa acepção “clássica” às propostas de reformulação do conceito de retórica jurídica que protagonizaram o debate sobre a teoria da argumentação jurídica na segunda metade do século XX. Dentre os inúmeros autores que se aventuraram na tentativa de reconstruir o conceito de retórica, podemos mencionar três protagonistas: Chaïm Perelman (1988), com sua proposta para a nova retórica; Manuel Atienza (2006), com sua concepção de direito enquanto argumentação e sua proposta conceitual sobre a argumentação pragmática; e Neil MacCormick (2008) com a concepção de retórica enquanto processo argumentativo no âmbito do Estado de Direito.

Se a lógica indutiva que deve conectar as provas e os fatos é substituída pela eloquência discursiva, somos obrigados a assumir que a convicção do magistrado não se formou pela prova, mas sim por outros elementos. Temos aí uma inversão importante entre as premissas e a conclusão a indicar que “o teto pode ser construído antes das paredes” (CALAMANDREI, 2000: 177)274.

Nesse sentido, a motivação das decisões no que diz respeito a esse aspecto fático tende a deixar de exercer seu papel de “signo mais importante e típico da racionalização da função judicial” (CALAMANDREI, 1960: 66) e passar a exercer um papel discursivo que se utiliza da eloquência enquanto elemento de persuasão. Isso tende a esvaziar tanto a função

endoprocessual da fundamentação quanto sua função política (IBAÑEZ, 2006: 63-64)275.

Fundamentar a decisão judicial, nessa linha, destina-se ao convencimento de certos atores interessados – sobretudo as partes e juízes de instâncias superiores – e não à racionalização que permite o “controle do discurso” (IBAÑEZ, 2006: 107) à luz do arcabouço jurídico existente. Pior: a fundamentação esposada nestes contornos tende a dificultar o controle das decisões à medida que a gramática da retórica se utiliza da eloquência propositadamente com o fim de persuasão e desfocaliza a argumentação jurídica.

Em concreto, isso implica a substituição da gramática silogística e da precisão linguística inerente ao raciocínio lógico pela eloquência argumentativa. São abertas as portas para afirmações como “fugir desta realidade é fechar os olhos ao óbvio e desprezar o bom- senso” ou “essa certeza visual, evidente e cristalina dos acontecimentos (...) é marco indelével de autoria”. A legitimidade decisória que decorre, em tese, da sua racionalização dá lugar a uma espécie de legitimação por adjetivação. Afinal, é mais difícil discordar da “certeza cristalina” dos fatos do que do sentido que as provas e indícios parecem apontar.

No universo de análise este tipo de inferência feita a partir de indícios se mostrou tão frequente quanto problemático. Isso foi ainda mais evidente nos acórdãos que tipificaram situações de cultivo para fins de tráfico, o que é muito pior, considerando que as sanções para o crime de tráfico são graves.

274 Vale reproduzir a citação completa: “[à]s vezes acontece que o juiz, ao formar sua sentença, inverta a ordem

normal do silogismo; isto é, encontre antes a conclusão e, depois, as premissas que servem para justificá-las. (...) As premissas, não obstante seu nome, frequentemente são elaboradas depois – em matéria judiciária, o teto pode ser construído antes das paredes” (CALAMANDREI, 2000: 176-177).

275

A função endoprocessual a que nos referimos é a de permitir com que as partes do processo consigam compreender correta e precisamente as razões de decidir, as interpretações fáticas e jurídicas realizadas pelo magistrado, e assim possam impugnar a decisão. A sua função política, por outro lado, relaciona-se com a concepção do “dever de motivar como consequêcia, prioritariamente, de exigências de caráter político: busca- se, com ele, uma garantia contra o arbítrio" (IBAÑEZ, 2006: 63).

Não foram poucos os acórdãos cuja fundamentação indicou essa inversão entre conclusão e premissas. É possível afirmar que o estudo destas decisões revelou mais sobre a percepção pré-processual dos magistrados sobre o cultivo de canábis do que sobre a reprodução da realidade empírica na prova dos autos e a mecânica de aplicação das normas penais.

Vários autores já se debruçaram sobre essa questão específica da produção probatória na esfera penal e sua relação com a convicção do magistrado e fundamentação das decisões276. Não há aqui nenhuma novidade no plano teórico. No que concerne aos propósitos deste trabalho, contudo, o baixo grau de racionalidade na justificação das decisões (RODRIGUEZ, 2013: 11), sobretudo em matéria de prova, dificulta a compreensão da lógica de aplicação de conceitos dogmáticos. Se na esfera penal, “a verdade garantida pela estrita legalidade é diretamente um valor de liberdade” (FERRAJOLI, 2002: 438), um grande problema que decorre desse baixo grau de racionalização é o seu impacto direto na liberdade física dos indivíduos.