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5. A fundamentação da tipificação do plantio de canábis: definindo

5.3 Materiais apreendidos

Assim formulamos uma das subperguntas de pesquisa: Outros elementos foram utilizados na determinação da finalidade das situações de cultivo? Se sim, qual(is) e de que forma eles foram apresentados na fundamentação das decisões?

As preliminares indicaram que a maior parte dos acórdãos mencionava apenas apreensões das plantas e/ou outras drogas. Algumas decisões referiam-se a materiais apreendidos junto com as plantas e que seriam relacionados ao cultivo. Por essa razão, quando analisamos as decisões do nosso corpus criamos uma categoria geral sobre “materiais apreendidos”.

Em 33 dos 135 acórdãos do nosso universo de análise há referência à apreensão de algum tipo de material junto com as plantas e/ou drogas. Dentre estes 33 acórdãos, 31 tipificaram as situações de cultivo como sendo para fins de tráfico (art. 33, 1º, II, da Lei de Drogas) e mencionaram expressamente na sua fundamentação que os materiais apreendidos indicariam a finalidade de tráfico.

Mas afinal, que materiais são estes? Foi possível identificar ao menos dois tipos de materiais associados ao cultivo nas decisões: o que podemos chamar de “materiais de cultivo” e “materiais de embalo e preparo para venda”. Enquanto os primeiros são acessórios e ferramentas utilizadas para cultivar qualquer planta, os materiais associados à venda são instrumentos utilizados na separação e acondicionamento da droga pronta para consumo (as flores secas).

Muitos acórdãos trataram indiscriminadamente materiais de cultivo e materiais de preparo como sinônimos, afirmando serem indicadores da finalidade de tráfico:

O que entendeu a nobre defesa ser flagrante preparado cuidou-se de efetiva diligência policial, respaldada por mandado de busca domiciliar, e que redundou na prisão em flagrante do réu e na descoberta de que ele cultivava ‘maconha’ num dos cômodos da residência, utilizando-se de baldes com terra onde as mudas eram plantadas e um engenho de

lâmpadas e ventilador para fins de efeito de estufa (cf. fls. 165/171).”257 (grifamos)

Acusado cultiva maconha em sua residência. Policiais Militares, por conta de denúncia anônima, comparecem ao local dos fatos e logram localizar e apreender várias árvores e arbustos do entorpecente, além de instrumental para preparação da droga, mormente uma estufa improvisada, ventiladores, luminárias, manuais apostilados com técnicas de plantio do entorpecente. Diante dessas circunstâncias, o acusado é detido em flagrante. Condenação acertada. Elementos mais que suficientes a garantir autoria e materialidade delitiva. Esta caracterizada pelo (i) boletim de ocorrência, f. 6/8, (iii) auto de exibição e apreensão, f. 8/9, (iii) laudo de constatação prévia, f. 18, (iv) exame químico toxicológico, f. 61/63, a bem constatar tratar-se de substância entorpecente - maconha, e (v) laudo pericial do local, f. 205/214, demonstrando a grande quantidade de arvores e arbustos de maconha, estufa improvisada e plantas em fase de secagem.258 (grifamos)

Nem se olvide que havia no local papel alumínio, plástico e fitas adesivas, cuja apreensão, nas circunstâncias relatadas na denúncia, constitui mais do que indício da destinação a terceiros. Aliás, sequer se compreende a necessidade de tais materiais se as plantas efetivamente se destinassem ao consumo próprio do réu. A quantidade de material, de resto, mostra-se incompatível com o mero consumo, ainda que considerada a condição de viciado de R., mormente ao se considerar o tamanho das plantas, entre 10 e 60 centímetros, segundo informação do policial, capaz de fornecer quantidade razoável de entorpecente.259 (grifamos)

[o]bservo que o réu tinha em sua estufa improvisada nada menos que seis vasos (3 pequenos e 3 grandes), os quais serviriam certamente para receber sementes da planta, a indicar que a sua conduta não se dirigia a semear planta somente para si mesmo.260

No capítulo 3 vimos que o cultivo indoor de canábis (com iluminação artificial) requer a utilização de algumas ferramentas básicas para reprodução das condições físicas do ambiente natural da planta. É muito comum o uso de estufas, que possuem sistemas próprios de iluminação, ventilação e irrigação (POTTER et ali., 2011: 9-16; DUNCOMBE & POTTER, 2012: 618).

257 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9056581-14.2002.8.26.0000. 1ª

Câmara Criminal de Férias de Janeiro de 2004. Relator: Pericles Piza. São Paulo, SP, j. 21 de janeiro de 2004.

258 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9088613-67.2005.8.26.0000. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Luis Soares de Mello. São Paulo, SP, j. 28 de agosto de 2007.

259 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0000778-05.2011.8.26.0286. 5ª

Câmara Criminal. Relator: Pinheiro Franco. São Paulo, SP, j. 31 de janeiro de 2013.

260 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0048705-69.2006.8.26.0050. 9ª

Não é possível afirmar que estes materiais constituem “indício da destinação a terceiros”. São ferramentas de cultivo que certamente serão utilizadas por quem queira cultivar as plantas em ambientes sem luz solar. Estufas profissionais ou improvisadas não indicam a produtividade do cultivo e não podem ser interpretadas automaticamente como indícios da finalidade de tráfico. São apenas materiais que indicam a existência de um cultivo indoor, podendo ser utilizado para produzir maconha para consumo pessoal ou para terceiros.

O mesmo se pode dizer sobre “papel alumínio, plástico e fitas adesivas”. Entendemos ser inapropriada a assertiva de que a apreensão destes materiais “constitui mais do que indício da destinação a terceiros”. Plásticos e fitas são materiais corriqueiramente encontrados em quaisquer residências. Ainda que pudéssemos assumir que estes materiais foram apreendidos em circunstâncias que os conectassem ao cultivo, eles também podem ser utilizados para controlar as condições de crescimento das plantas e a densidade do cultivo (VANHOVE et ali., 2011: 160)261 no contexto da produção para consumo pessoal.

Além disso, plásticos e fitas também são comumente utilizados por usuários para embalar e armazenar as flores secas colhidas. O planejamento do cultivo inclui a preparação das plantas para colheita após o ciclo de florescimento. A colheita é feita geralmente de uma só vez, recolhendo todas as flores das plantas ao mesmo tempo. Após a colheita, as flores precisam ser armazenadas em ambientes fechados e escuros para o processo de secagem e cura (LOJA, 2011: 92-93). É durante o processo de secagem e cura que a resina das flores secas aumenta a secreção de THC por seus poros (GÁLLEGO, 2006: 63).

Quando secas, as flores são geralmente embaladas em plástico para serem armazenadas sem prejudicar a qualidade da maconha (GÁLLEGO, 2006: 70). Este embalo é feito tanto por usuários quanto por traficantes, e seu objetivo é preservar a qualidade da maconha. Como as flores secas da canábis são consumidas in natura, cuidados para o armazenamento são necessários porque se trata de material orgânico que se submete aos processos de decomposição ao longo do tempo.

Aqui o que mais preocupa é a associação automática entre estes materiais e a finalidade de tráfico. A partir das afirmações feitas nos acórdãos não é possível identificar a

261 É comum a utilização de técnicas de controle de crescimento das plantas que envolvem a manipulação física

das condições de cultivo. Um exemplo muito comum destas técnicas é a amarração de alguns caules das plantas para induzir maior ou menor crescimento vertical. Essas técnicas específicas visam controlar a densidade do cultivo, ou seja, a quantidade de plantas por área de plantio (TOONEN et ali., 2006: 1050-1054), e também visam otimizar a utilização do espaço horizontal de cultivo – algo especialmente importante nos cultivos indoor ou nos cultivos em ambientes que haja limitação de altura.

destinação dos materiais. Podem ser utilizados tanto para embalagem de maconha quanto para amarração das plantas. Ainda, deve se considerar que usuários também armazenam a droga produzida a partir do cultivo, sobretudo quando o cultivo é produtivo e gera uma quantidade significativa de flores secas.

Em alguns casos foi relatada a apreensão de fertilizantes e balanças de precisão. Foi possível identificar as relações feitas entre as balanças de precisão e a pesagem da maconha pronta para venda:

Consta da denúncia que pautados em inúmeras denúncias anônimas indicando o cultivo de mudas de maconha no local dos fatos, pelo réu, policiais militares se para lá se deslocaram onde constataram a veracidade das informações inominadas, assim como também encontraram na residência do réu acessórios para o cultivo (adubos, fertilizantes e ferramentas) assim como para o acondicionamento delas (balança de precisão e fitas adesivas), apreendendo, ainda, no interior do guarda roupas, duas porções da mesma droga e em uma bacia grande folhas secas também daquela mesma substância entorpecente.262

Réu que, quando interrogado em Juízo, simplesmente negou, gratuitamente, o fim narcotraficante da questionada posse, alegando ser apenas usuário do entorpecente. Mas, como já destacado, os policiais militares, acima nominados, encontraram, em poder do réu, 01 (uma) porção pesando 33 gramas de "maconha", pronta para a venda, além de 50 (cinquenta) sementes e 02 (dois) pés, ambos de "maconha" e 02 (duas) balanças de precisão, conforme o auto de exibição e apreensão (fls. 15/17).

(...)

Assim, certa a materialidade criminosa narcotraficante, a respectiva autoria também é certa e deve ser imputada ao réu, quer porque a quantidade da substância entorpecente encontrada em seu poder, 01 (uma) porção pesando 33 gramas de "maconha", pronta para a venda, além de 50 (cinquenta) sementes e 02 (dois) pés, ambos de "maconha" e 02 (duas) balanças de precisão, servem, inquestionavelmente, de prova da mercancia, não se perdendo de vista que os milicianos receberam notícia de que no local dos fatos era realizada a traficância263

Muito embora balanças de precisão sejam comumente utilizadas para acondicionamento e embalo de maconha para venda, no contexto do cultivo de canábis também é muito comum a sua utilização para pesagem de fertilizantes e adubos (CERVANTES, 1993: 3-4; VANHOVE et ali., 2011: 159).

262 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9195542-85.2009.8.26.0000. 5ª

Câmara Criminal. Relator: Marcos Zanuzzi. São Paulo, SP, j. 25 de fevereiro de 2010.

263 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0006802-60.2012.8.26.0368. 1ª

Isso porque a fertilização mineral da terra impacta diretamente as características do cultivo, o desenvolvimento das plantas e a sua capacidade de floração (GALOCH, 1978: 153). Fertilizantes e aditivos para a terra exercem um papel importante no controle de pH das plantas, por isso devem ser manipulados com cuidado e, sobretudo, com precisão (CERVANTES, 1993: 5; ROSENTHAL, 1998: 14-15). Nesse aspecto, a pesagem destas substâncias é primordial.

Alguns acórdãos se referiram à apreensão de “petrechos para industrialização artesanal”264 de maconha. Não foi possível identificar quais seriam os “petrechos”, muito menos o que se quer dizer com “industrialização artesanal” de maconha. A expressão parece uma contradição em seus próprios termos e definitivamente reflete uma compreensão muito superficial do processo produtivo da maconha.

Afirmamos diversas vezes ao longo deste trabalho que a maconha é composta das flores secas extraídas diretamente das plantas de canábis (POTTER et ali., 2011: 3). Isso significa que a maconha não exige preparo para consumo. Basta colher as flores e aguardar o processo de secagem natural para que as flores possam resinar e produzir THC (ROSENTHAL, 1998: 3; LOJA, 2011: 95).

A noção de “industrialização artesanal” de maconha parece inconsistente com os aspectos concretos da preparação da droga. Pode ser uma noção que faça sentido no contexto do preparo de drogas sintéticas, como a cocaína, mas definitivamente não o faz no contexto do cultivo de canábis. Nem mesmo o haxixe é produzido “industrialmente”. Ele é produzido a partir da secagem da resina encontrada nos pelos granulosos da canábis.

Também encontramos referências à apreensão de “pedaços de plásticos e papéis de seda, usados na embalagem da substância entorpecente”265. Ainda que pedaços de plástico possam ser usados para embalar a maconha, papéis de seda certamente não o são. Papéis de seda são utilizados na preparação de cigarros de tabaco ou maconha para consumo, não para embalar a droga para venda.

Apenas um acórdão do universo de análise menciona a apreensão de um objeto que efetivamente constitui “material de preparo” para venda: as prensas ou prensadores. A maconha comercializada no Brasil é, em sua maior parte, prensada (MACEDO, 2010: 8-9).

264 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0111498-34.2012.8.26.0050. 4ª

Câmara Criminal. Relator: Edison Brandão. São Paulo, SP, j. 12 de agosto de 2014.

265 Cf. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 0003540-55.2005.8.26.0366. 13ª

A prensagem é utilizada para diminuir o volume da droga, o que facilita o seu transporte e otimiza sua possibilidade de distribuição.

Usuários de maconha que cultivam as próprias plantas não costumam prensar as flores produzidas. A prensagem tende a comprometer a qualidade da droga, favorece a criação de culturas de fungos e acelera a produção da amônia a partir da decomposição de tecidos mortos das flores. Embora não seja impossível que o usuário prense sua maconha, é altamente incomum. É comum o embalo da droga em plásticos e seu armazenamento em recipientes fechados, mas não sua prensagem. A existência de prensadores, portanto, pode indicar a finalidade de tráfico.

Outros materiais, como livros sobre cultivo de canábis, também foram interpretados como indícios da finalidade de traficância:

Foram encontrados em poder do apelante 19 fotografias abordando exposições da planta ‘cannabis’, diversas literaturas inclusive

estrangeiras com temas exclusivos sobre o cultivo de maconha, requinte demais para um mero usuário, uma balança digital sabiamente

utilizada por traficantes para pesagem de pequenas quantidades de drogas destinadas à venda, um triturador e prensador de maconha, dois rolos de fita adesiva 3M, cor prata, e 13 envelopinhos contendo folhas de seda para enrolar cigarros.266 (grifamos)

As afirmações são tão interessantes quanto problemáticas. A literatura sobre cultivo de canábis seria “requinte demais para um mero usuário” e a balança digital “sabiamente utilizada por traficantes para pesagem”. Nessa lógica, usuários de maconha não podem ser “requintados” nem podem pesar fertilizantes para suas plantas. Estas considerações não possuem suporte na literatura especializada e revelam um grau relevante de desconhecimento dos aspectos concretos do cultivo de canábis.

Aqui os exemplos são riquíssimos e apontam para duas questões importantes. Em primeiro lugar, em quase todos os casos com apreensão de materiais além das plantas as situações de cultivo foram tipificadas como tráfico de drogas. Ainda, a forma como estes materiais foram mencionados na fundamentação da tipificação penal parece indicar que esta categoria (materiais) foi utilizada como complemento aos elementos do §2º do art. 28 da Lei de Drogas.

Além disso, as afirmações lançadas nos acórdãos indicam uma associação entre profissionalização do cultivo e tráfico de drogas. Dito de outra forma, as afirmações indicam

266 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Criminal nº 9165693-20.1999.8.26.0000. 3ª Câmara

uma confusão entre cultivadores profissionais e traficantes (BOUCHARD & NGUYEN, 2011: 110).

A profissionalização do cultivo de canábis é decorrência do interesse e da disponibilidade de recursos do cultivador. No contexto dos plantios de canábis, há uma tendência de profissionalização dos usuários à medida que evoluem suas experiências de cultivo (DECORTE, 2010: 344-345; BOUCHARD & NGUYEN, 2011: 122; POTTER, et. ali., 2014: 267-269).