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2. Construindo a Pesquisa: Problema, Métodos e Fontes

2.4 Por onde navegamos? As fontes da pesquisa

A pesquisa é pensada para ser uma peça dentro de um grande mosaico. O mosaico representa um repertório de conhecimento que articula ao menos três dimensões80: a política, a lei81 e a aplicação da lei. As conexões entre estas dimensões são estudadas por diversos domínios do saber, através de diversos interlocutores.

A pesquisa pretende dialogar principalmente com três destes interlocutores, em graus diferentes. Em maior grau pretende-se dialogar com a dogmática penal, em especial a literatura sobre a dogmática da Lei nº 11.343/06. São interlocutores desta pesquisa os acadêmicos que se aventuram na tarefa de compreender os aspectos operacionais do momento em que o direito encontra o caso concreto, isto é, "as tecnologias para aplicação da lei" (RODRIGUEZ et ali., 2012: 75).

Também se pretende dialogar com a literatura sobre a relação entre dogmática e processo: afinal, se a dogmática se debruça sobre o encontro do direito com os fatos, os casos concretos, o processo regula, dentre outras coisas, a forma pela qual o direito reconhece ou não determinados fatos. O encontro do direito com os fatos cria os fatos jurídicos, que muitas vezes são construídos a partir de um conjunto de regras processuais. Dogmática e processo, portanto, são indissociáveis.

Por fim, pretende-se dialogar com a literatura sobre modelos de controle de drogas e de regulamentação do plantio de canábis, dentro do que se pode chamar política de drogas. Aos colegas das ciências sociais e da ciência política fica aberta a agenda para outras pesquisas sobre o tema: ainda que as questões que possam ser abordadas por estas perspectivas sejam igualmente interessantes, é preciso focalizar a pesquisa nos pontos mais

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A divisão das dimensões é pensada apenas como forma de organizar o repertório de conhecimento que circunscreve o fenômeno que se pretende investigar. É antes uma estratégia didática do que uma tentativa de organizar e classificar as dimensões em si tal como aparecem no caso do plantio de maconha.

81 Aqui entendemos, lei enquanto qualquer diploma formal que articule um conjunto de regras, ou um diploma

fortes que a metodologia escolhida permite alcançar. O terreno permanece em aberto aos que nele quiserem se aventurar.

A articulação deste sistema tripartido funciona como se estivéssemos diante de um mosaico com peças de três formatos diferentes. As peças se conectam entre si: são imbricadas de tal forma que a distinção dos três tipos de peças só é perceptível quando o mosaico não está formado. A forma pela qual as peças se encaixam umas às outras depende da compreensão da figura que se pretende montar. Sem compreender a figura é impossível antever como as peças se encaixam e em que direção e sentido elas devem ser ordenadas.

Tanto a escolha das peças quanto a imagem a ser formada dependem das opções feitas pelo pesquisador (o montador do mosaico), em função da pergunta de pesquisa. As escolhas e a ação do montador importam mais do que as peças e a imagem. Afinal, é o montador (pesquisador) quem determina quais são os contornos do mosaico.

Este trabalho é nossa peça, fruto de nossas escolhas. Escolhemos como construímos nossa peça, delimitando seu tamanho e formato através da metodologia de pesquisa empregada. Escolhemos ainda em que parte do mosaico encaixaremos nossa peça, e de que forma a posicionaríamos em relação às outras peças já existentes.

O mosaico hoje possui algumas peças, com as quais se pretende conectar, mas ainda precisa de muitas outras para aos poucos se formar. A tarefa fica a cargo daqueles que quiserem contribuir com a montagem do mosaico para formação das imagens pretendidas. Só assim conseguiremos articular a política, a lei e a aplicação da lei no contexto da regulação do cultivo de canábis no Brasil.

Espera-se, assim, que os aspectos qualitativos da pesquisa possam dialogar com a literatura sobre a dogmática penal da lei de drogas e também com parte da literatura sobre modelos de controle de drogas. Os principais interlocutores da pesquisa, contudo, são da dogmática penal: não poderia assim deixar de ser considerando a própria formulação do problema de pesquisa.

Todos os intérpretes que se debruçaram sobre os aspectos dogmáticos da Lei nº 11.343/06 tiveram de ao menos comentar a problemática trazida pela pergunta de pesquisa. Todos se viram obrigados a comentar a questão sobre o que define o plantio para fins de tráfico em oposição ao cultivo para consumo. Ainda que não tenham se debruçado especificamente sobre questões concretas da definição da finalidade do plantio, certamente tiveram de apresentar as ferramentas com as quais o operador do direito (Judiciário,

Ministério Público, Autoridade Policial) deve construir a fundamentação da tipificação penal.

Esperamos, ainda, que as informações produzidas nesta pesquisa possam dialogar com outros interlocutores, inclusive não juristas. Há uma preocupação adicional que permeia este trabalho: é preciso decodificar82 os elementos jurídicos e traduzir a linguagem do direito. Muito embora a pergunta de pesquisa veicule questões diretamente ligadas à dogmática penal, o problema de pesquisa se insere em uma discussão maior sobre a diferenciação entre as figuras do usuário e do traficante de drogas

O compromisso com a decodificação da linguagem jurídica pode ajudar a entender a operacionalização concreta de um aspecto do modelo de controle de drogas adotado pelo Brasil (a estratégia de dupla tipificação do plantio). Esperamos que ao menos parte dos resultados da pesquisa ajude a compreender as dificuldades e implicações práticas da estratégia de política pública adotada no país.

A estratégia escolhida pelo legislador brasileiro para a tipificação dos crimes de drogas foi pensada dentro de um contexto, com uma finalidade específica83. Ela traz uma série de implicações, com vantagens, desvantagens, dificuldades e problemas.

As implicações deste modelo regulatório aparecem de forma mais saliente nos casos de cultivo de canábis: alega-se frequentemente que o plantio se destina a consumo próprio justamente para que o indivíduo não tenha conexão com o universo do tráfico ilícito de drogas. Por esta razão é que se espera que a pesquisa possa dialogar, ainda que de forma complementar, com a literatura sobre modelos de controle de drogas e regulação do plantio de canábis.

Em um primeiro momento a delimitação das fontes com as quais se pretende dialogar se deu por uma revisão da literatura nas duas dimensões mencionadas acima. A seleção das fontes na dogmática penal se deu em torno de uma revisão das obras jurídicas que se debruçam sobre aspectos da Lei de Drogas, especialmente a questão da determinação da finalidade do plantio, essencial para a tipificação do cultivo de canábis.

82 Código é, segundo Luhmann (1986: 43), a comunicação distintiva de que os sistemas sociais se utilizam para

diferenciar-se dos demais. O direito enquanto sistema social opera segundo um código específico, o código

lícito/ilícito (MOELLER, 2006: 216). Este código se especifica com a construção do vocabulário jurídico,

altamente específico e construído para enfatizar o processo de diferenciação do direito frente aos outros sistemas sociais. O que aqui se quer dizer com decodificar é traduzir esta linguagem altamente específica em termos compreensíveis por quem não é treinado a ler o vocabulário jurídico.

83 Referimo-nos aqui à opção legislativa por não utilizar o modelo das “threshold quantities” (HUGHES, 2010;

A literatura sobre modelos de controle de drogas foi selecionada em razão do recorte temático: é preciso dialogar com a questão da regulamentação do cultivo de canábis e das formas de operar a diferenciação entre a figura do usuário e a figura do traficante de drogas.

Para selecionar o material teórico que utilizamos neste trabalho buscamos textos no acervo da Biblioteca Karl A. Boedecker, da FGV SP, no Sistema Integrado de Bibliotecas da Universidade de São Paulo e em bases de dados de artigos acadêmicos – HeinOnline, SSRN, Scielo, LexisNexis, Applied Social Sciences Index and Abstracts (ASSIA), Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), Biblioteca Virtual da FAPESP, dentre outros.

Nas bases de dados nacionais buscamos textos utilizando palavras-chave e expressões como: “maconha e cultivo”; “plantio de canábis”84; “política de drogas”, dentre outras. Já nas bases de dados estrangeiras buscamos textos utilizando expressões como: “cannabis grow”85; “drug law”; “drug policy”; “cannabis regulation”, dentre outras.

Foram encontrados centenas de textos durante a pesquisa preliminar. Durante a execução do projeto de pesquisa selecionamos os textos que dialogam com os aspectos que se pretende abordar nesta pesquisa. Em especial, selecionamos textos que dizem respeito a regimes jurídicos do cultivo de canábis e diferentes estratégias de criminalização

Durante a elaboração da pesquisa evidenciou-se a necessidade de buscar materiais em repertórios de outros campos do conhecimento para compreender aspectos biológicos da planta Cannabis, assim como aspectos agrícolas do seu cultivo. Por essa razão, expandimos nossa revisão de literatura para buscar informações produzidas em outras áreas do saber, sobretudo a botânica e a agronomia.

Buscamos os primeiros artigos sobre aspectos não jurídicos do cultivo de canábis no Journal of the International Hemp Association86, que foi a primeira publicação internacional dedicada a discutir o cultivo da planta fora do contexto recreativo. A partir da leitura de artigos sobre as características gerais do cultivo da planta, identificamos algumas palavras- chave utilizadas na literatura estrangeira e expandimos nossa busca para as bases de dados disponíveis online.

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Considerando que a palavra canábis é muitas vezes grafada em latim como cannabis ou substituída pela palavra “maconha”, testamos as combinações de vocábulos utilizando todas as grafias possíveis.

85 Em inglês costuma-se utilizar o termo grafado em latim para se referir à canábis.

86 As edições do jornal dos anos de 1994 a 1999 estão disponíveis no link:

Para selecionar os textos sobre as características da canábis e seu cultivo utilizamos principalmente a plataforma internacional da base de dados Scielo e a base de artigos acadêmicos do Google, o Google Scholar87. Utilizamos vários critérios de pesquisa, mas focalizamos a busca em alguns termos principais: “cannabis cultivation”; “cannabis crops”; “cannabis yield”; “production capacity”; “growing conditions”; “growth factors”; “crop density”.

Embora a maior parte da literatura sobre o cultivo de canábis seja estrangeira, encontramos materiais nacionais sobre a planta e seu cultivo, principalmente nas áreas de botânica e história. Entre a literatura estrangeira destacaram-se os artigos estadunidenses e holandeses, o que pode ser explicado pelo fato de Holanda e Estados Unidos serem os dois países com as políticas mais liberais sobre o cultivo de maconha.

Utilizamos também uma vasta literatura europeia sobre o cultivo de Cannabis para fins industriais, sobretudo para as indústrias têxtil e cosmética. Com a recente flexibilização da estratégia repressiva da guerra às drogas em diversos países do globo houve um crescimento considerável nos estudos científicos sobre a canábis e diversos aspectos do seu cultivo.

O propósito de trazer este tipo de material para as discussões deste trabalho é discutir em que medida os argumentos que são utilizados na fundamentação das decisões são consistentes com as informações que vem sendo produzidas nos diversos repertórios de conhecimento científico sobre o cultivo de canábis. Por muito tempo a produção científica sobre a canábis permaneceu nas trevas. Hoje, no entanto, o repertório de conhecimento científico sobre a planta vem se tornando mais e mais sólido, de modo que a cada dia se tornam mais acessíveis informações sobre a Cannabis, seu consumo e seu cultivo.

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