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2 POLÍTICA AGRÁRIA NO BRASIL

2.1 A POLÍTICA AGRÁRIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição Federal de 1988 dedicou em seu Título VII, denominado Da Ordem Econômica e Financeira, um capítulo próprio, Capítulo III, ao que convencionou chamar Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária. Observa-se, porém, que a Constituição Federal não fez uso da expressão política agrária.

Desta forma, entende o Professor Rafael Augusto Lima que esta ementa trazida pela Constituição tem redação defeituosa, uma vez que bastaria dizer Da Política Agrária136. Tal observação por parte do autor decorre do fato de ter adotado a teoria sobre a política agrária de Vivanco, que trabalha com a política agrária como gênero, sendo a reforma agrária, a política agrícola e a política fundiária seu desdobramento em espécies. Tal crítica reflete o tratamento estanque dado pelo constituinte à política agrária.

Apesar da redação confusa, o constituinte parece ter deixado claro que existem diferenças entre a política fundiária, a política agrícola e a política de reforma ou reforma agrária.

135 MANIGLIA, Elizabete, op. cit., p. 27-28.

Para o Professor Rafael Augusto Lima o princípio da justiça social no Direito Agrário significa fundamento

para a permanência no solo daquele que o tornou produtivo, o acesso à propriedade da terra, assistência do Estado ao produtor agrícola [...]. Desse princípio, portanto, decorrem todos os demais, inclusive o da função social da terra. LIMA, Rafael Augusto de Mendonça, Direito agrário... op. cit., p. 80

136

LIMA, Rafael Augusto de Mendonça, Direito agrário... op. cit., p. 3.  Como será visto no tópico 2.3.1 deste mesmo capítulo.

Neste sentido e na visão do constitucionalista José Afonso da Silva:

A Constituição faz clara distinção entre política agrícola e fundiária e reforma agrária. A política agrícola delineada no art. 187 não importa modificação na estrutura das relações de produção e da propriedade fundiária e tem por objetivo propiciar facilidades, benefícios e incentivos aos produtores agrícolas (v. Lei 8.171, de 1991, que dispões sobre a política agrícola). É uma política a favor dos proprietários rurais, não se prevendo nela sequer aperfeiçoamento das relações de trabalho no campo, capaz de assegurar à população rural condições de trabalho, de subsistência e atividades em favor de um padrão de vida condizente com a dignidade do trabalhador rural, a não ser apenas quando o citado artigo reclama a participação efetiva dos trabalhadores rurais ao lado dos produtores no planejamento e na execução daquela política. A reforma agrária, [...] já é um processo de intervenção fundiária que envolve a modificação das relações de propriedade agrária.137

Na análise feita por José Afonso da Silva, o autor aponta que na política agrícola não há alterações na estrutura fundiária e nem nos índices de produtividade, enquanto na política de intervenção fundiária haveria necessária mudança na estrutura agrária. A primeira seria apenas uma política de incentivo e benefícios aplicáveis ao proprietário e produtor rural, enquanto a segunda teria uma abordagem sociologicamente maior, já que implicaria em reforma na estrutura agrária, existindo uma aparente relação entre a política fundiária e a política de reforma.

Lucas Abreu Barroso, em estudo sobre a política agrária como instrumento jurídico de efetividade dos fundamentos e dos objetivos da Republica Federativa do Brasil, previstos respectivamente nos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal de 1988, expressa:

A inclusão da política agrária na Constituição Federal de 1988 se fez por meio dos artigos 184 a 191, que compõe o Capítulo III “Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária”, do Título VII “Da ordem econômica e financeira”. [...] Deu-se, ainda, pelo artigo 153, VI, contido na Seção III “Dos impostos da União”, do Capítulo I “Do sistema tributário nacional”, do Título VI “Da tributação e do orçamento”.138

137 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 743.

Ao descrever a política agrícola no âmbito constitucional, José Afonso da Silva, conforme citação no corpo do texto, entende que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 187, beneficia apenas o proprietário e o produtor rural e que a política agrícola não se preocupa em cuidar das condições de trabalho do trabalhador rural. Entretanto, ressalta-se que a ordem econômica, na qual o constituinte inseriu a política agrícola, foi tratada de forma separada da ordem social pela Constituição, conforme ensina ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da

intervenção do Estado no domínio social. São Paulo: Malheiros, 2009. p 33. Destaca-se, ainda, que os direitos

sociais previstos no artigo 7º e ss., da Constituição Federal, desde a Emenda Constitucional nº 28 de 2000, são aplicados com igualdade entre trabalhadores rurais e urbanos.

138

BARROSO, Lucas Abreu. A política agrária como instrumento jurídico da efetividade dos fundamentos e

objetivos da República Federativa do Brasil na Constituição Federal de 1988. In: BARROSO, Lucas Abreu;

Como visto na citação acima, Lucas Abreu Barroso inclui o imposto sobre a propriedade territorial rural, previsto no artigo 153, VI, da Constituição Federal de 1988, como matéria que compõe o estudo da política agrária.

Assim, conclui o autor que a previsão constitucional do imposto territorial rural do artigo 153, VI, da reforma agrária nos artigos 184 a 186 e da política agrícola ou desenvolvimento rural nos artigos 187 a 191, como institutos constitucionais da política agrária, apesar de ser matéria tratada anteriormente pelo Direito Agrário brasileiro, acabou por trazer novos contornos à política agrária e reforçando sua aplicação pelas leis infraconstitucionais.139

Ressalta-se que o Professor Lucas Barroso, assim como Rafael Augusto Lima, também adotou a política agrária como gênero, o que reflete a influência da teoria sobre a política agrária de Vivanco entre os agraristas brasileiros, mesmo que a Constituição Federal de 1988 e que o Estatuto da Terra de 1964 não tenham feito alusão expressa ao termo política agrária. Desta forma, o termo política agrária como gênero é adotado por parte da doutrina agrarista brasileira por influência da teoria sobre a política agrária desenvolvida pelo agrarista argentino Vivanco em 1967.

Mais precisamente, ao se fazer uma análise literal da forma como a Constituição Federal de 1988 organizou o Capítulo III, do Título VII, então denominado Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, assim ficou distribuída a matéria nos seguintes artigos:

O artigo 184 trata das hipóteses de desapropriação para fins de reforma agrária. O artigo 185 trata dos imóveis insuscetíveis de desapropriação para a reforma agrária.

O artigo 186 se refere à previsão constitucional da função social da terra e os requisitos para o seu cumprimento.

Especificamente o artigo 187, seus incisos e parágrafos, tratam da política agrícola e dos instrumentos para a sua efetivação.

O artigo 188 trata da destinação de terras públicas para fins de reforma agrária. O artigo 189 se refere ao título de domínio dos imóveis distribuídos por meio da reforma agrária.

O artigo 190 trata da aquisição de terras por pessoas físicas ou jurídicas no território

brasileiro.

Por fim, o artigo 191 trata da usucapião de imóvel rural.

Conclui-se, assim, que a política agrária é espécie de política pública com previsão expressa na Constituição, mesmo que não tenha havido menção ao termo política agrária como gênero, dos quais seriam espécies a política agrícola, a política fundiária e também uma política de reforma. Tal previsão significa que diretrizes mínimas foram traçadas em uma estrutura constitucional para orientar o planejamento e a execução de uma política agrária no Brasil, diretrizes que deverão ser observadas pelo legislador infraconstitucional.

Vale ressaltar ainda que, a Constituição Federal de 1988 trouxe de forma expressa a necessidade de coexistência entre política agrícola e reforma agrária no Brasil, conforme disposição do § 2º, do artigo 187, bem como do caput do artigo 188, este, por sua vez, ao tratar da destinação de terras públicas e devolutas à reforma agrária, expressa a necessidade de tal destinação ser compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária. Aqui, a Constituição Federal de 1988levanta um tema que surgiu no Brasil no início do século XX que envolve a questão agrária e a questão agrícola.

Em estudos realizados sobre esta temática, José Graziano da Silva aponta que foi na década de 1930 que começaram a surgir no Brasil as discussões sobre questões agrárias e questões agrícolas, diante da crise da produção agrícola cafeeira, agravada com a depressão iniciada a partir da queda da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929. Continua o autor explicando que no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 a questão agrária entrou na pauta de discussões sobre o polêmico rumo que deveria tomar a industrialização brasileira.140

Com o chamado milagre brasileiro, ocorrido a partir de 1967, em que o país entrou em um crescimento acelerado da economia, acreditava-se que a questão agrária estivesse resolvida diante do aumento da produção agrícola, sem que houvesse necessidade de mexer na estrutura fundiária brasileira141.

Assim, questões agrárias e questões agrícolas são entrelaçadas, confundidas e camufladas no decorrer da história do Brasil.

As questões agrárias deveriam refletir nas discussões sobre o acesso à terra, às questões de reforma na estrutura fundiária, enquanto as questões agrícolas tratariam das formas de produção, do planejamento agrícola, dos incentivos governamentais e

Conforme será estudado no tópico seguinte do presente trabalho acadêmico.

140 SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 7.

financiamentos para a produção agropecuária142. Na verdade, nada mais é que a relação existente entre a política fundiária e a política agrícola na realidade fática.

Expressa José Graziano da Silva que:

Em poucas palavras, a questão agrícola diz respeito aos aspectos ligados às mudanças na produção em si mesma: o que se produz, onde se produz e quanto se produz. Já a questão agrária está ligada às transformações nas relações de produção: como se produz, de que forma se produz.143

Continua José Graziano da Silva:

Essa separação entre questão agrária e questão agrícola é apenas um recurso analítico. É evidente que na realidade objetiva dos fatos não se pode separar as coisas em compartimentos estanques. Ou seja, a questão agrária está presente nas crises agrícolas, da mesma maneira que a questão agrícola tem suas raízes na crise agrária. Portanto, é possível verificar que a crise agrícola e a crise agrária, além de internamente relacionadas, muitas vezes ocorrem simultaneamente. Mas o importante é que isso não é sempre necessário. Pelo contrário, muitas vezes a maneira pela qual se resolve a questão agrícola pode servir para agravar a questão agrária.144

Muitas vezes as questões agrícolas são utilizadas para camuflar os anseios da população por reformas envolvendo as questões agrárias, como ocorreu com a política agrícola do governo militar no Brasil145.

O mesmo acontece quando se adota um modelo único de produção agrária capitalista que signifique a exclusão de outras formas de relação com a terra e com os recursos naturais, como vem acontecendo no Brasil com a pressão do agronegócio sobre as terras indígenas, as terras das populações tradicionais e sobre as terras destinadas a proteção ambiental146.

Desta forma, o desenvolvimento da atividade agrária e da economia rural está intimamente ligado às questões fundiárias. Para que a política agrícola possa ser eficaz é preciso que haja segurança jurídica para o proprietário ou possuidor da terra, ou seja, para que o rurícola possa investir no desenvolvimento da atividade agrária, o seu acesso à terra tem que estar juridicamente garantido.

142

ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O acesso à terra no estado democrático de direito. Frederico Westphalen: Editora da URI, 1998. p. 156.

143 SILVA, José Graziano da, op. cit., p.11.

144

IBIDEM, p. 10-11.

145

ALVES, Fábio, op. cit., p. 119 e ss.

146 ISAGUIRRE-TORRES, Katya; FRIGO, Darci. Série cadernos da agrobiodiversidade: desenvolvimento rural, meio ambiente e direitos dos agricultores, agricultoras, povos

e comunidade tradicionais. Curitiba: Terra de Direitos, 2013. v. 2. p. 9 e ss. Disponível em:

http://terradedireitos.org.br/2014/03/21/publicacao-da-terra-de-direitos-debate-a-agrobiodiversidade-e-a-superacao-da-producao-capitalista-no-campo/ Acesso em: 01 jul. 2014.

Exemplo disso foi dado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM – ao trabalhar com um projeto de pesquisa para a pecuária intensiva como novo modelo para a pecuária na Amazônia. Para que o projeto se torne viável constatou-se necessário a informação adequada sobre o novo modelo, a assistência técnica de qualidade, acesso ao crédito e também de segurança jurídica para que o produtor invista na propriedade, esta segurança jurídica significa regularização fundiária e ambiental147.

Fica claro nesse exemplo que o projeto para o desenvolvimento da pecuária intensiva na Amazônia trata-se de uma política agrícola, com planejamento e utilização dos instrumentos de política agrícola para que a produção seja viável e efetiva. No entanto, para que a política agrícola possa se desenvolver é preciso que a política fundiária também esteja garantida, isto é, que haja a regularização fundiária.

Política fundiária e política agrícola devem andar de mãos dadas, uma não pode excluir a outra, já que uma depende do bom desenvolvimento da outra para se garantir, ou seja, as questões agrárias que envolvem o acesso à terra como princípio de justiça social depende dos incentivos vindos dos instrumentos da política agrícola para que a vida social, econômica e cultural possa existir no âmbito rural.

O mais clássico exemplo de interdependência das questões agrárias e agrícolas corre por conta da realidade econômica e social dos assentados da reforma agrária. Os beneficiários da reforma agrária muitas vezes são pessoas que há tempos estão destituídos da terra, morando em acampamentos e nas estradas e quando recebem um lote da reforma agrária, é preciso uma política agrícola efetiva para tornar a terra produtiva, auxílio técnico-profissional, financiamentos para compra de sementes e insumos agrícolas, bem como o auxílio necessário para cumprimento dos requisitos de proteção ambiental.

A distribuição de terras sem qualquer atuação estatal por meio de políticas agrícolas não faz a reforma agrária, significaria apenas mera distribuição de terras. Questão agrária e questão agrícola, isto é, política fundiária e de reforma só serão possíveis a partir de uma forte e estruturada política agrícola auxiliada por seus instrumentos de efetivação.

Questões agrárias e agrícolas são partes integrantes de um gênero denominado política agrária. Entretanto, o conteúdo da política agrária no âmbito jurídico e quais são suas espécies, coube a literatura jurídica se debruçar sobre o assunto, uma vez que tanto o Estatuto da Terra de 1964 quanto à Constituição Federal de 1988 se estruturaram sem qualquer referência específica sobre o termo política agrária.

147 Disponível em: http://www.forestcom.com.br/blog/ipam-lanca-video-sobre-pecuaria-intensiva-na-amazonia/#more-3280. Acesso em: 01 jul. 2014.

2.2 A POLÍTICA AGRÁRIA NA DOUTRINA BRASILEIRA: UM DIÁLOGO COM A