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3 POLÍTICA AGRÍCOLA

3.3 POLÍTICA AGRÍCOLA CONTEMPORÂNEA

3.3.1 Política agrícola e agricultura familiar

Conforme expressa Juliana Santilli:

Ao longo da história, desenvolveram-se no Brasil dois modelos de produção agrícola, bastante distintos: a agricultura camponesa (e familiar), em suas diferentes formas e expressões, e a agricultura patronal, hoje convertida no que se convencionou chamar de “agronegócio, direcionada para a exportação de commodities e a geração de divisas para elevar o superávit da balança comercial brasileira.278

Sobre o agronegócio, segue a autora:

277 GRAZIANO, Xico, op. cit., p. 12.

O agronegócio se caracteriza pela produção baseada na monocultura, especialmente de produtos cujos valores são ditados pelas regras do mercado internacional (soja, milho, trigo, algodão, café etc.), pela utilização intensiva de insumos químicos e de máquinas agrícolas, pela adoção de pacotes tecnológicos (que, mais recentemente, incluem as sementes transgênicas), pela padronização e uniformização dos sistemas produtivos, pela artificialização do ambiente e pela consolidação de grandes empresas agroindustriais.279

Quanto à possível relação entre a agricultura familiar e o agronegócio, ensina Juliana Santilli que:

Apesar de serem modelos agrícolas que comportam muitas divisões internas, podemos dizer, grosso modo, que a agricultura camponesa e a patronal são duas grandes categorias bastante distintas entre si. A agricultura camponesa, pouco valorizada pela historiografia oficial, foi desenvolvida por ex-escravos e por outros trabalhadores livres, que viviam nas proximidades dos engenhos e das minas de ouro, posseiros que ocupavam pequenas faixas de terra na Região Centro-Sul etc.280

A agricultura camponesa assumiu, no tempo e no espaço, uma grande diversidade de formas sociais, sendo muito difícil estabelecer um único modelo agrícola camponês, conforme explica Juliana Santilli281. Esta diversidade que acomete até mesmo o modelo da agricultura familiar no Brasil vem sendo prestigiada pela política agrícola no plano legislativo.

A política agrícola brasileira vem trilhando novos caminhos ao reconhecer como um dos seus fundamentos a diversidade social, ambiental, cultural e econômica. Exemplo disto são as políticas agrícolas destinadas à agricultura familiar, formuladas a partir da Lei nº 11.326 de 2006.

A Lei nº 11.326 de 2006 institui a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais e, logo em seu artigo 1º, deixa claro que veio para estabelecer conceitos, princípios e instrumentos que deverão servir como diretrizes para o planejamento e execução das políticas agrícolas voltadas à agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais.

O artigo 2º, da Lei nº 11.326 de 2006, determina que a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais seja planejada e executada de

279

SANTILLI, Juliana, op. cit., p. 82.

280 IDEM.

acordo com a política agrícola nacional, estabelecida pela Lei nº 8.171 de 1991 e pela Lei nº 8.174 de 1991, além de estar compatível com as políticas destinadas à reforma agrária. Aqui, claramente se atende o preceito constitucional do artigo 187, § 2º, da Constituição Federal de 1988.

A Lei 11.326 de 2006, em seu artigo 3º, encarregou-se de definir quem é o agricultor familiar e empreendedor familiar rural, destinatário da Política Nacional da Agricultura Familiar, como aquele que desenvolve suas atividades no meio rural e preenche simultaneamente os seguintes requisitos:

1. Que detenha área máxima de quatro módulos fiscais, isto é, que não possua área superior a quatro módulos fiscais, seja a que título for;

Entretanto, quanto ao tamanho máximo da área rural a própria lei faz uma ressalva a este requisito no § 1º, do artigo 3º, isto é, em caso de condomínio rural ou outras formas de propriedade coletiva do bem rural, a área total poderá ser maior que quatro módulos fiscais, desde que a fração ideal individualizada não ultrapasse os quatro módulos fiscais para cada indivíduo proprietário.

2. A mão de obra na atividade econômica do seu estabelecimento ou empreendimento deve ser sua e da própria família;

3. A direção do empreendimento ou estabelecimento deve ser feita pelo agricultor e sua família;

4. Que o agricultor ou empreendedor consiga retirar da atividade econômica realizada em seu estabelecimento ou empreendimento rural o percentual mínimo de sua renda familiar.

A lei não faz distinção entre agricultura familiar e empreendimento familiar rural. Talvez desejasse o legislador englobar tanto a agricultura familiar que se mantém dentro de um desenvolvimento baseado em hábitos tradicionais e culturais e, ao mesmo tempo, o agricultor familiar que se desenvolve sob as regras da agroindústria familiar.

O Estatuto da Terra, em seu artigo 4º, II, definiu a propriedade familiar, enquanto o artigo 3º, da Lei nº 11.326 de 2006, preocupou-se em definir o agricultor familiar e empreendedor familiar rural.

Diante de tal questão, vale ressaltar a discussão retomada por Benedito Ferreira Marques quanto à necessidade ou não do título de propriedade do agricultor e empreendedor familiar como elemento caracterizador deste instituto jurídico agrário. De acordo com o autor, não deve prevalecer a necessidade do título de domínio em nome de algum membro da entidade familiar, apesar do Estatuto da Terra referir-se ao instituto agrário com a

denominação propriedade familiar, uma vez que:

[...] há a considerar que existem outras formas de acesso à terra, que não encerram, necessariamente, a titularidade dominial. É o caso, por exemplo, da concessão de uso real, que é até estimulada no próprio texto constitucional como instrumento para a distribuição de terras em projetos de reforma agrária (art. 189 da CF). Ora, o conceito legal de concessão de uso real (art. 7º do Decreto-lei nº 271, de 28.2.67) não passa de um direito real resolúvel, que não corresponde a um título de domínio.282

Aparentemente a Lei nº 11.326 de 2006 reforça o entendimento de que a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais se estende ao agricultor familiar e empreendedor rural familiar independentemente de título de propriedade. Isto fica mais claro a partir do artigo 3º, § 2º, da Lei nº 11.326 de 2006, ao estabelecer que outras formas de organização social, econômica e cultural passam a ser englobadas por esta lei, outras formas tais como os povos indígenas e as populações tradicionais que apresentam diversas formas de uso e ocupação da terra diversa da propriedade privada individualizada, o que será aprofundado no tópico seguinte.

Tal questão coaduna com a discussão no item 3.2, deste capítulo, sobre a superação do conceito de política agrícola do artigo 1º, § 2º, do Estatuto da Terra, isto é, a descaracterização do amparo à propriedade da terra como fundamento primordial da política agrícola.

A Lei nº 11. 326 de 2006 elegeu princípios e instrumentos para viabilizar a concretização da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.

Seu artigo 4º elegeu como princípios norteadores da Política Nacional da Agricultura Familiar, sem prejuízo da aplicação de outros princípios que couberem, a descentralização, a sustentabilidade ambiental, social e econômica, a equidade na aplicação das políticas, respeitando os aspectos de gênero, geração e etnia, bem como a participação dos agricultores familiares na formulação e implementação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimento Familiar Rural.

Aqui, merece destaque o princípio da participação dos agricultores na formulação e na implementação da política agrícola, o que demonstra a necessária participação social na formulação e execução das políticas públicas. É o agricultor que conhece as intempéries do dia a dia do âmbito rural, é somente ele quem poderá apontar as dificuldades ocorridas

durante a execução de uma política agrícola, bem como apontar o que precisa ser reavaliado para tornar a política agrícola científica possível na prática.

Já em seu artigo 5º, citada lei elegeu um rol de instrumentos ou medidas de política agrícola que deverão ser compatibilizados entre si para possibilitar o adequado planejamento e a execução da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimento Familiar Rural.

A agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais encontram dificuldades de sobrevivência com a expansão do sistema capitalista no campo e com a contínua apropriação da agrobiodiversidade por grandes empresas transnacionais em detrimento à lógica familiar e camponesa283. Por isso a importância de instrumentos que possam viabilizar a execução da política agrícola voltada à agricultura familiar. Entre esses meios é primordial destacar a relevância do associativismo e das cooperativas na sobrevivência do agricultor familiar e empreendedor familiar rural.

Quanto à sobrevivência da agricultura familiar e dos pequenos agricultores familiares na produção agropecuária no Brasil, diante da gigante proporção tomada pelo agronegócio no mercado de commodities, há pelo menos dois posicionamentos bem distintos.

De um lado expõe Xico Graziano que o drama das agriculturas modernas reside na manutenção de seus produtores, como forma de preservar o emprego e a ocupação no campo.284 Continua o autor explicando que:

O foco da política pública destinada para o campo deve estar centrado na manutenção do emprego no interior do país. Não é mais a terra o determinante da produção e da renda, mas sim a tecnologia, a produtividade e a inserção nos mercados competitivos, constituídos a partir de complexas cadeias produtivas. Transformar os milhões de pequenos agricultores, chamados familiares, em pequenos empresários empreendedores é o desafio maior, que somente será vencido com o auxílio do cooperativismo e do associativismo.

Mudança de atitude será o requisito básico para o novo agricultor. Ele deverá deixar as posições clientelistas e tornar-se pró-ativo, interessado, não dependente. Isso significa uma mudança cultural, uma verdadeira revolução. Aqui, nasce o futuro da agricultura brasileira.285

De outra banda, contra a inserção da agricultura familiar no agronegócio, estudos da Terra de Direitos apontam pela preservação da agricultura familiar como solução para a manutenção da segurança alimentar, isto é:

283

ISAGUIRRE-TORRES, Katya; FRIGO, Darci, op. cit., p. 11.

284 GRAZIANO, Xico, op. cit., p. 11.

As agriculturas familiar e camponesa, no contexto do desenvolvimento rural do país, detêm um papel importante na construção de uma política alimentar socialmente adequada e mais saudável em aspectos ambientais. Isso por que são os sujeitos que podem auxiliar na recuperação e conservação da agrobiodiversidade, isto é, do conjunto de espécies da biodiversidade utilizadas na agricultura e na alimentação e que muitas vezes se encontra relacionado com práticas e saberes tradicionais.286

Isaguirre-Torres e Frigo, sobre a influência da política agrícola na agricultura familiar, explicam que:

O peso do Estado na consolidação da agricultura familiar é grande, isso porque interfere na organização territorial, define política de preços, determina o acesso e os padrões de inovação técnica, os mecanismos de incentivo e financiamento, organizando continuamente o modelo de produção e seu escoamento. Esse peso estratégico da agricultura no desenvolvimento deve ser dimensionado para o fim de captar as particularidades no setor, consideradas as condições sazonais, a alta competitividade e as dependências dos fatores naturais. Além disso, a determinação das políticas públicas para a agricultura familiar deve se ocupar de resguardar o acesso aos recursos genéticos da agrobiodiversidade, por ser esse o sustentáculo da transição da agricultura para outra ruralidade, já que é por meio delas que se pode obter alimentos saudáveis e melhorar as condições de vida dos agricultores. 287

Dentre as propostas do modelo agrário capitalista de produção para a inclusão da agricultura familiar, a título de exemplo, é possível citar os contratos de integração, que revelam o sistema de integração entre grandes empresas que fornecem as sementes e os insumos agrícolas, financiam todo o plantio do fumo, o produtor agrícola em regime familiar planta, utiliza de suas terras e de sua força de trabalho e depois vende a produção para a tais empresas que, de forma parcial, avalia o produto agrícola e dá o preço conforme seus critérios de avaliação. Ou o agricultor concorda e vende seu produto para a empresa que financiou todo o cultivo ou torna-se endividado. Exemplo dos contratos de integração ocorre com os fumicultores no sul do Brasil, conforme exposto nos estudos apresentados pela Terra de Direitos288.

No estudo apresentado pela Terra de Direitos a crítica ao contrato de integração se constrói sob o argumento deste contrato ser uma nova forma de servidão e de violação dos direitos humanos, ou seja:

286 ISAGUIRRE-TORRES, Katya; FRIGO, Darci, op. cit., p. 11.

287 IBIDEM, p. 11-12.

288

ALMEIDA, Guilherme Eidt Gonçalves de. Fumo: servidão moderna e violação de direitos humanos. Curitiba: Terra de Direitos, 2005. Disponível em: http://terradedireitos.org.br/2008/02/18/fumo-servidao-moderna-e-a-violacao-dos-direitos-humanos/ Acesso em: 01 jul. 2014.

Cabe registrar, a propósito do sistema de integração, a natureza atípica e mista dos contratos estabelecidos entre as indústrias do tabaco e os fumicultores (admitida pelo Código Civil/CC de 2002, artigo 425). Bem como, lembrar que não podem olvidar os limites que a função social impõe aos contratos (CC/2002, artigo 421), nem os demais preceitos de ordem pública (CC/2002, artigo 2.035, parágrafo único38). Ademais, importa ressaltar que esses contratos imperativamente estabelecidos, sem possibilidade alguma de interlocução na definição de seus termos, aos quais os agricultores submetem-se por adesão, são objeto de grande celeuma jurídica exatamente pelas variadas feições nele travestidas, como, por exemplo, a relação de consumo que envolve o fornecimento de materiais e insumos e a mascarada relação de emprego escondida por detrás do contrato de compra e venda, que bem pode ser compreendido enquanto prestação de serviço em domicílio ou contrato de trabalho temporário sem qualquer atribuição de responsabilidade e direitos trabalhistas. Um contrato que atribui status de fiel depositário da indústria ao trabalhador expropriado dos frutos resultantes do emprego de sua força de trabalho. Contrato de servidão, no qual se opera o confronto direto entre capital e trabalho, exemplo da modernização conservadora no campo. Símbolo da lógica do mando e obediência, cristalização do processo de apropriação do trabalho do camponês pelo capital conforme orienta a política agrária a partir da “revolução verde”, marco da manutenção do campesinato em relações desfavoráveis de dependência.289

Esse modelo de contrato de integração vem ganhando espaço entre os agricultores familiares, seja na produção do fumo como visto acima, seja na produção da cana-de-açúcar em contratos realizados com as usinas de açúcar e álcool, ou mesmo na produção pecuária.

Na tentativa de clarear a relação contratual no sistema de integração e proteger as partes integrantes do contrato, projeto de lei vêm sendo discutidos nas Casas Legislativas. O Projeto de Lei nº 330 de 2011 foi apresentado no Senado Federal pela então Senadora Ana Amélia (PP-RS), sofreu emendas na Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJ) e ganhou um texto substitutivo na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) formulado pelo relator, então Senador Acir Gurgacz (PDT-RO). O Projeto de Lei nº 330 foi remetido e aguarda aprovação na Câmara dos Deputados desde 01 de outubro de 2013.

Retomando as questões trabalhadas pela Lei nº 11.326 de 2006, a polêmica fica por conta de sua face socioambiental, o que significa a adoção dos direitos sociais, culturais e ambientais no planejamento da política agrícola voltada à agricultura familiar290. O Estado ao definir sua atuação, por meio de políticas públicas setoriais, deverá respeitar a

289 ALMEIDA, Guilherme Eidt Gonçalves de, o. cit., p. 97-98.

 Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=100728 Acesso em: 27 jan. 2015.

290 LIMA, André; ROCHA, Ana Flávia. Introdução. In: Rocha, Ana Flávia (org.). A defesa dos direitos socioambientais no Judiciário. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. p. 9-10.

heterogeneidade fundiária e a sociodiversidade brasileira, o que merece tratamento mais detalhado a seguir.