• Nenhum resultado encontrado

3 POLÍTICA AGRÍCOLA

3.3 POLÍTICA AGRÍCOLA CONTEMPORÂNEA

3.3.2 Política agrícola para os povos indígenas e populações tradicionais

3.3.2 Política agrícola para os povos indígenas e populações tradicionais

Incluir os povos indígenas e as populações tradicionais nas discussões jurídicas sobre a política agrícola exige muito cuidado, trata-se de um assunto velado, já que este grupo de pessoas apresenta particularidades sociais e culturais que não permitem que sejam equiparados ao agricultor familiar. No presente trabalho acadêmico visa apenas expor de forma descritiva o tratamento dado pela lei ao assunto em voga. Abordá-lo de forma mais profunda será um tema para futuro projeto de pesquisa.

A começar pelo âmbito internacional, a Convenção 169 da OIT que trata sobre as populações indígenas e tribais foi aprovada em junho de 1989 em Genebra e ratificada pelo Brasil em 20 de junho de 2002 pelo Decreto Legislativo nº 143, posteriormente promulgada pelo Decreto nº 5.051 de 19 de abril de 2004.

O Decreto nº 5.051 de 2004, em seu artigo 1º, adotou sem quaisquer ressalvas o texto da Convenção 169 da OIT, assumindo expressamente o compromisso de executar e cumprir na íntegra a Convenção 169 da OIT.

Quanto ao status normativo da Convenção 169 da OIT aplica-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, o qual vem se manifestando a favor da natureza supralegal dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Uma vez ratificados pelo Brasil, os tratados internacionais sobre direitos humanos têm posição específica no ordenamento jurídico brasileiro, estando abaixo da Constituição Federal de 1988, mas acima da legislação interna. Portanto, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão.

O artigo 19 da Convenção 169 da OIT determina a inclusão dos povos indígenas e

 Muito se discute o quanto seria um genocídio incluir os povos indígenas e populações tradicionais na atuação estatal por meio de políticas agrícolas. Sobre o tema, destaca-se a tese do antropólogo Ricardo Verdum. VERDUM, Ricardo. Etnodesenvolvimento: nova/velha utopia do indigenismo. 2006. 190 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, Universidade de Brasília. Brasília, 2006.

O Supremo Tribunal Federal vem adotando o status de norma supra legal para os tratados internacionais sobre direitos humanos desde 2008, a partir do julgamento do RE 349703, Relator: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675.

tribais no programa de política agrária de cada Estado, garantindo a esses povos condições equivalentes desfrutadas pelos demais setores da população.

Quanto aos sujeitos destinatários da Convenção 169 da OIT, Joaquim Shiraishi Neto defende que o termo tribal, em outros países, serve para designar grupos sociais que vivem de forma distinta do restante da sociedade e que no Brasil, de forma semelhante, existem as denominadas populações tradicionais. Segue o autor:

No Brasil, não há “povos tribais” no sentido estrito em que há em outros países, mas existem grupos sociais distintos que vivem na sociedade e essa distintividade é que aproxima da noção de “povos tribais”. O significado de “tribal” aqui deve ser considerado “lato sensu”, envolvendo todos os grupos sociais de forma indistinta: seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, faxinalenses, comunidades de fundos de pasto dentre outros grupos.291

Assim, a partir da consideração lato sensu do termo tribal, às populações tradicionais do Brasil que se diferenciam do restante da população nacional por suas características culturais, sociais e econômicas, que são regidas pelos próprios costumes e tradições, será aplicada a Convenção 169 da OIT.

Portanto, a aplicação da política agrária pelo Estado brasileiro nos termos da Convenção 169 da OIT, ao entrar em contato com as particularidades culturais do Brasil, será estendida aos povos indígenas e às populações tradicionais.

Ao ratificar a Convenção 169 da OIT surge para o Brasil, Estado signatário, o desafio de aplicá-la, uma vez que tratar da política agrária em relação aos povos indígenas e populações tradicionais no Brasil traz a tona mais de quinhentos anos de conflito agrário na história de territorialização de um país.

No presente estudo acadêmico, ao adotar como base a teoria sobre a política agrária de Antonino Carlos Vivanco, implica reconhecer a política agrária como gênero da qual são espécies a agrária em sentido estrito, a fundiária e a agrícola292. Portanto, aplicar a política agrária aos povos indígenas e populações tradicionais significa estender a eles tanto as políticas de ordem fundiária quanto as agrícolas.

Assim, quando o artigo 19 da Convenção 169 da OIT determina a extensão da política agrária de cada Estado, de forma equitativa, aos povos indígenas e tribais, está

291 SHIRAISHI NETO, Joaquim (org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil:

declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007. p. 45-46. Disponível em:

<http://www.novacartografiasocial.com/downloads/Livros/livro_docbolso_01.pdf> Acesso em: 13 dez. 2012.

afirmando pela participação desses povos na política fundiária, na política agrária em sentido estrito e na política agrícola de cada Estado.

Entretanto, uma primeira ressalva deve ser feita quanto à aplicação da política agrária em sentido estrito aos povos indígenas e populações tradicionais, isto é, quanto à aplicação da função social da terra e seus índices de produtividade, conforme salienta o Professor Marés ao explicar o artigo 231, § 1º, da Constituição Federal de 1988:

O § 1º acrescenta, ainda, que a habitação, a utilização econômica, a preservação do ambiente e a área de reprodução física e cultural devem ser realizadas segundo os usos, costumes e tradições indígenas. Isso diz respeito diretamente ao uso da terra e suas limitações. O primeiro deles é, evidentemente, em relação à função social da propriedade da terra garantida em vários artigos da Constituição, mas em especial no artigo 186. Pois bem, a função social da terra indígena é a garantia de vida e proteção do próprio povo que a habita, portanto não se pode aplicar as limitantes de produção de riqueza capitalista no mundo indígena.293

No mesmo sentido devem ser tratadas as terras ocupadas pelas populações tradicionais, uma vez que estas apresentam peculiaridades culturais, formas diferentes de apropriação da terra e dos recursos naturais e o uso comum destes recursos, o que difere seu território da posse e da propriedade privadas protegidas pelo Direito brasileiro294.

O artigo 19 da Convenção 169 da OIT dedica-se à política fundiária em sua alínea a, ao tratar da destinação de novas terras aos povos indígenas e tribais quando aquelas por eles ocupadas forem insuficientes para garantir-lhes o desenvolvimento natural de suas atividades ou para enfrentarem um possível aumento numérico da população.

Já a alínea b, do artigo 19, dispôs sobre a aplicação da política agrícola aos povos indígenas e tribais, estabelecendo a implementação dos meios necessários para que estes povos se desenvolvam nas terras por eles já habitadas.

O Estado brasileiro ao formular sua política agrícola deverá incluir entre os seus destinatários os povos indígenas e populações tradicionais, de forma equitativa a demais população nacional.

A Lei nº 8.171 de 1991, Lei Agrícola, percebe a existência da diversidade da estrutura fundiária e de diferentes formas culturais na produção da atividade agrícola em seu artigo 2º, VI, no qual aponta como um dos pressupostos de base, de fundamento, da política

293 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de, op. cit., p. 23.

294 GEDIEL, José Antônio Peres. Introdução: cartografias invisíveis. In: PORTO, Liliana; SALLES, Jefferson de Oliveira; MARQUES, Sônia Maria dos Santos (orgs.). Memórias dos povos do campo no Paraná: centro-sul. Curitiba: ITCG, 2013. p. 10-11.

agrícola o fato da atividade agrícola ser desenvolvida em estabelecimentos rurais que são heterogêneos na estrutura fundiária e com diferentes condições sociais, econômicas e culturais.

A partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, chega-se a conclusão de que a diversidade socioambiental também faz parte da elaboração da política agrícola no Brasil. Tal diversidade, tanto a fundiária quanto a socioambiental, forma a base de sustentação dos pilares da política agrícola nacional.

Assim, fica demonstrado o cumprimento, pelo menos no plano legislativo, das diretrizes propostas pela Convenção 169 da OIT quanto à inclusão dos povos indígenas e populações tradicionais na elaboração da política agrícola nacional.

A face socioambiental da Lei nº 11.326 de 2006, fica por conta de seu artigo 3º, § 2º, que estende aos povos indígenas e populações tradicionais a condição de beneficiários da Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Rurais. Sua face socioambiental é reforçada em seu artigo 4º, ao estabelecer dentre os princípios aplicáveis à Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, a sustentabilidade ambiental, social e econômica - inciso II, bem como a equidade na aplicação da política agrícola de forma a respeitar os aspectos de gênero, geração e etnia.

O legislador ordinário estabeleceu requisitos para o enquadramento do produtor rural no conceito de agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais. Ao estender a Política Nacional de Agricultura Familiar aos povos indígenas e populações tradicionais, também traçou requisitos a serem cumpridos, mas aqui respeitando as especificidades de cada realidade cultural e social.

A Lei nº 11.326 de 2006, artigo 3º, § 2º, nos incisos de I a VI, estendeu a política agrícola, voltada à agricultura familiar, aos silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores, povos indígenas, remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais, que cumpram os requisitos estabelecidos pela lei.

A Lei nº 11.326 de 2006 ao adotar a expressão demais povos e comunidades tradicionais não exauriu em seu elenco os beneficiários da política agrícola voltada à

Quanto ao conteúdo dos direitos socioambientais esclarecem André Lima e Ana Flavia Rocha: É de se destacar

que quando falamos de direitos socioambientais não estamos a priori falando de um novo direito, mas revelando uma nova face de alguns direitos já consagrados na Constituição dando-lhes uma leitura integrada, complementar e porque não dizer sinergética. O caráter socioambiental é dado pela composição, mais do que mera complementação, entre os direitos sociais, culturais e ambientais. Trata-se da lente que percebe mais que a interseção, a relação intrínseca entre a proteção e a valorização dos bens culturais, materiais e imateriais, assim como dos direitos sociais, e dos diferentes ambientes que os abrigam e permitem a reprodução física e cultural dos povos. LIMA, André; ROCHA, Ana Flávia, op. cit., p. 9.

agricultura familiar. Trata-se de rol meramente exemplificativo, que poderá ser preenchido por qualquer outra população tradicional que cumpra os requisitos exigidos pela lei.

Dentre os princípios estabelecidos pela Lei nº 11.326 de 2006 está o da equidade na aplicação das políticas agrícolas, que deverão ser planejadas e elaboradas respeitando os aspectos de gênero, geração e etnia, bem como a sustentabilidade ambiental, social e econômica - artigo 4º, II e III.

Portanto, a Lei nº 11.326 de 2006 ao estender a política agrícola aos povos indígenas e populações tradicionais assume sua face socioambiental, determinando ao Estado o dever de observar os direitos socioambientais no planejamento, na elaboração e na execução de suas políticas públicas voltadas ao meio rural.

Outra questão que envolve a política agrícola voltada à agricultura familiar, aos povos indígenas e às populações tradicionais diz respeito ao Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, instituído pela Lei nº 11.947 de 2009.

A Lei nº 11.947 de 2009, em seu artigo 14, trata da possibilidade de no mínimo trinta por cento dos recursos financeiros, repassados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, ser destinado à compra de gêneros alimentícios para merenda escolar. A procedência dos gêneros alimentícios deve ser da agricultura familiar e empreendimento familiar rural, preferencialmente das comunidades tradicionais indígenas, comunidades tradicionais quilombolas e assentamentos da reforma agrária.

A lei diz preferencialmente, não excluindo as demais populações tradicionais do Brasil. A Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais se estende a toda população tradicional do Brasil, não apenas aos povos indígenas e quilombolas. A partir de uma interpretação sistemática, que observa toda a estrutura jurídico-normativa, não é possível restringir a preferência da Lei nº 11.947 de 2009 apenas a uma parcela da população tradicional.

Povos indígenas e populações tradicionais representadas pelos quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, faxinalenses entre outros, uma vez enquadrados no programa de Política Nacional da Agricultura Familiar, deverão ser enquadrados na Lei nº 11.947 de 2009 no fornecimento de gêneros alimentícios destinados à merenda escolar.

O §1º, do referido artigo 14, trata da possibilidade de dispensa de licitação, desde que os preços sejam compatíveis com os de mercado, que o produto atenda as qualidades exigidas pelas normas específicas da questão, e que sejam observados os princípios administrativos dispostos no artigo 37, da Constituição Federal de 1988.

mínimo com a compra de produtos alimentícios destinados dos assentamentos da reforma agrária, das comunidades indígenas e quilombolas caso os produtos não atendam as condições higiênico-sanitárias adequadas, inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios e a impossibilidade de emissão do documento fiscal correspondente.

Aqui fica clara a importância da aplicação dos instrumentos de efetivação da política agrícola no caso da agricultura familiar, ainda mais quando se tratar de assentamentos da reforma agrária e de comunidades indígenas e quilombolas. Geralmente essa parcela da população não tem a tradição do associativismo ou do cooperativismo, além da dificuldade de preenchimento dos requisitos para financiamentos.

Tais instrumentos de efetivação da política agrícola possibilitam que o agricultor familiar possa preencher as regras exigidas para o fornecimento de produtos agropecuários destinados ao abastecimento alimentar nacional, as regras higiênico-sanitárias, bem como a sua permanência no meio rural.

De nada adianta a previsão no planejamento e na elaboração da política agrícola da participação dos povos indígenas e populações tradicionais se efetivamente não for possível sua participação, seja por questões burocráticas ou por adotarem tradições diferentes da demais população nacional.

É preciso compatibilizar lei e prática, viabilizar que a política pública possa ser aplicada diante da realidade social enfrentada pelos povos indígenas e populações tradicionais.

Assim, não basta incluir os povos indígenas e populações tradicionais no planejamento e elaboração da política agrícola, é preciso possibilitar a efetiva execução desta política, o que depende da atuação conjunta de todos os entes federativos, já que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 23, VIII, estabeleceu a competência comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios no fomento da produção agropecuária e na organização do abastecimento alimentar.

Portanto, para que a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais possa ser aplicada aos povos indígenas e populações tradicionais, União, Estados, Distrito Federal e Municípios deverão participar da execução dessa política. A forma mais eficiente para a execução é por meio dos instrumentos da política agrícola.

A polêmica em se aplicar uma política agrícola aos povos indígenas e populações tradicionais, primeiramente encontra barreira pelo fato de ser uma atuação estatal voltada a um povo que se organiza de forma diferente dos demais segmentos da sociedade brasileira.

indígenas ou populações tradicionais, mas é ocasionado pelo olhar etnocêntrico do Estado e do Direito ao tentarem aplicar suas próprias regras a um grupo de pessoas que apresentam organização social, econômica e cultural completamente diferente dos demais segmentos da sociedade.